Anjo miúdo

Foto Adriana Esteduto Machado

Foto Adriana Esteduto Machado

Como posso ser tão cega e não perceber o que essa criança está a horas tentando fazer?

Acordei de madrugada mais uma vez para escrever. A inquietude da minha alma tem me despertado todas as madrugadas, por volta das três horas da manhã como se fosse oito. Resignada, levanto, lavo o rosto, preparo um chá e vou para frente do computador tentar descobrir o que de tão urgente precisa sair de mim.

Mas nada acontece. Me distraio então com alguma pesquisa na internet, dou uma olhada nos meus e-mails e me lembro, como um despertadorzinho interno, da maravilhosa declaração de David Lynch a respeito da criação artística: “Se desejamos pegar peixes pequenos, podemos viver em águas rasas. Mas se desejamos pegar peixes grandes, então não escapamos de mergulhar em águas profundas”. Sei bem o que isso significa: meditação.

Meditar para mim é um esforço sobre-humano. Todas as vezes que tento meditar me deparo ainda mais com as turbulentas águas em que transbordam minhas idéias. O contato com essa realidade é assustadora. Somos um povoado de imagens e sentimentos que se misturam violentamente dentro da cabeça. Minha guru diz que a meditação é o único caminho para a paz interna. E que a paz é a única chance que temos de sobreviver ao caos em que o mundo se instalou. Através dela temos a chance de expandir nossa consciência e ir ao encontro da divindade que habita no fundo da nossa alma. Ela diz também que meditação não é nenhum bicho de sete cabeças. Basta sentar-se e permanecer em silêncio. Mas e quem disse que eu consigo ficar em silêncio com todas as urgências gritando dentro de mim?

Pois bem. Estava eu aqui de madrugada debruçada sobre essas questões, quando chega Catarina, minha filha caçula, descabelada agarrada ao seu urso e chamando chorosa por “mamãe, mamãe…” Ai puxa vida, pensei comigo, agora mesmo que a meditação foi para o beleléu. Peguei-a no colo e a coloquei na cama.

– Não mamãe, quero colo.
– Catarina, pelo amor de Deus minha filha, tá de noite, olha só lá fora, o sol ainda não chegou, você tem que dormir…
– Tá, mas no seu colo mamãe.
– Tá bem…

Coloco-a no colo e canto baixinho uma canção de ninar. Minha cabeça continua a ferver. Ansiosa, desejo desesperadamente que ela durma para que eu possa voltar ao meu universo conturbado de tão sérias questões a resolver. Devagar, a acomodo sobre o travesseiro macio. Saio de mansinho. Um minuto depois, ela sentada na cama, de olhos molhados, me chama:

– Mamãe, eu quero você.
– Filha, o que é que tá acontecendo com você meu anjo?
– Mamãe, quero colo.
– Tá bem, eu vou deitar do seu lado.
– Não, eu quero colo. Colo sentada.

Impaciente, saio de novo do computador e a pego no colo. Sento na cama. Ela me olha fundo nos olhos, dá um sorriso, faz um carinho no meu rosto e fecha os olhos. Só então eu compreendo. Meu anjo miúdo de cabelos cacheados tinha saído de sua caminha para vir até aqui me ajudar a meditar. Que burra! Como pude ser tão cega e não perceber o que essa criança estava a horas tentando me dizer? Deitada eu pegaria no sono com ela. Sentada, precisando fazê-la dormir, era uma chance de ouro que eu tinha de entrar em profundo estado de meditação. Bastava fechar os olhos e sentir nossos corações baterem juntos.

Nessa madrugada fiz uma meditação profunda. E agora sentada aqui no computador escrevendo, com o pensamento mais tranqüilo, percebo um barulhinho que vem da janela e que me chama a atenção. Olho depressa. É um passarinho, outro anjo miúdo, que me olha através do vidro da janela. O que ele veio me dizer eu já sei: não existe um caminho para a paz. A paz é o caminho.

Colecionando instantes

polaroid

Entrou na praça e viu.
Uma revoada de pombos vinha em sua direção.
Juntos faziam um desenho quase geométrico
no azul daquela tarde de sol.
No momento em que passaram sobre sua cabeça,
fechou os olhos e com a alma
fotografou o instante.
Sorriu.
Guardou a fotografia na gaveta dos sonhos e seguiu em frente.
Costumava fazer isso todos os dias de sua vida.
Colecionar instantes.
Esses, que tornavam sua existência sublime.
Alimentava o sonho infantil de pedir a Deus
um último desejo antes de morrer:
assistir por inteiro a seleção de instantes
que guardara ao longo dos anos.
Como num filme, onde teria enfim,
a essência do que fora sua felicidade.

Quimera do olhar

P1310565

Foto Clara Meira

Árvores. Folhas verdes. Vários tons de verde. Várias texturas de folhas. Céu azul. Nuvens brancas. Brancas, com tons de rosa e laranja. A laranja-fruta tem furinhos. Pequenininhos. Como os poros da pele. Que também pode ser colorida. Branca, vermelha, amarela, negra. Negra, como a cor da noite. Noite onde tem estrela brilhando. Ela pisca, ou é impressão? Não, impressão é o que os olhos sentem, porque o mundo é da forma que você o vê. Ou da forma que te ensinaram a ver. Poetas tem esse dom. Eu vejo o mundo vibrante se o dia tem sol. Mas se chove, vejo a vida triste, com toda a beleza que pode existir na melancolia. Eu gosto de ver chuva. De ver gota pingando no chão. Gota correndo do vento. Relâmpago. Trovão. Adoro ver essa luz eletrizando o céu. Luz elétrica. Luz linda é a luz da vela. Luz suave, doce, mágica. A luz do mundo, quando o mundo era simples. A luz que atravessa os poros e ilumina a alma. Luz perfeita para se escrever cartas de amor. Amor. Eu vejo amor por toda a parte. Na flor que desabrochou hoje no jardim. Na borboleta que é pétala que voa, como me ensinou Clarice. Vejo amor nos olhos da Clara. Nos abraços incriveis da Catarina. Vejo amor no suspiro profundo. No choro miúdo. Na gargalhada do Edu. Vi amor quando fiz pudim de leite ontem. Vi amor nos sorrisos felizes dos que comeram o pudim. Ah! As coisas de comer podem ser as mais lindas do mundo. Principalmente as que vem direto da natureza. Como os morangos, por exemplo. Kiwi, quando se revela por dentro. Carambola, quando vira estrela. Gominho de mexerica. Carocinho de mamão. Tudo tem sua beleza. Não foi Neruda que viu na cebola uma rosa de água com escamas de cristal? Eu não vejo mais, eu fotografo com a minha polaroid mental. E vou guardando tudo na memória até encontrar a palavra certa para cada imagem arquivada. Aquilo que minha retina viu e ficou pasma, eu corro para tentar traduzir em palavras. Acho que é por isso que tenho tido tanta urgência em escrever. Por medo de perder esse instante. Mas coisa feia eu não guardo. Por nada. Não perco meu tempo. Mas as lindas, ah… estas eu foco o olhar com o coração e deixo que elas me inundem. Como zeppelin voando no céu. Clara conversando com formiga. Sorriso desdentado de velhinha. Vento varrendo folha. Açúcar virando caramelo. Cata-vento ventando. Gato se espreguiçando. Córrego escorrendo. Copo de vinho tinto. Bocas se beijando de língua. Trilho de trem quando se bifurca. Avião rasgando o céu indo para longe. Arco-íris! Cavalo correndo livre. Noite virando dia. Dia virando noite. Ondas do mar fazendo espuma. Gelo boiando na água. Tinta de caneta virando poema. Última página de livro. Os cílios da minha mãe. Língua falando lápis-lazúli. Linhas do tempo na palma da mão. Mão fazendo pão. Mão carinhando alguém. Mão dando adeus. Mão pedindo. Mão oferecendo. Mão é uma coisa danada de linda. Pode ser mão pequena, delicada. Ou mão de homem da terra, toda enrugada. Mão maltratada pelo tempo. Mão de bebê. Para mim, mão é a parte mais linda do corpo. Acima dela, só mesmo o olho. Olho que é o único órgão que brilha, que se explica na íris e que se entrega na lágrima. Olho que pode ver tudo. Quantas vezes quiser. Que pode ver árvores. Folhas verdes. Vários tons de verde. Várias texturas de folhas. Céu azul. Nuvens brancas.

Ausência

trilho

Há sempre algo de ausente que me atormenta
Um avião que parte no céu
A saudade de um amor que nunca voltou
Um trilho de trem nunca mais percorrido
Fotografias de pessoas que já partiram
Navio escondido no fundo do mar
Móveis cobertos com lençol branco
Garrafa de vinho vazia
Flores secas
Perfume que carrega sentimento esquecido
Quadro antigo de lugar que não existe mais

Há sempre algo de ausente que me atormenta
Sentimento que não se explica
Só aperta o coração e faz suspirar
Para tentar arrumar o que não pode ser arrumado
Nem na alma
Nem em nenhum outro lugar

 

 

 

A doença do labirinto

Lucca_labirinto

para Bia Albernaz

Há muito tempo entendi que a estrada da vida não é uma linha reta e sim uma espiral sagrada aonde vamos percorrendo a existência em profundo desejo de ascendência. O que eu não sabia é que em determinados momentos a espiral dá lugar a labirintos e que só saímos dele se entendermos em profundidade o seu significado.

Há três semanas cheguei à emergência do hospital passando muito mal. Tonta, enjoada e com dores de cabeça, o diagnóstico da médica foi certeiro: labirintite. Dizem que a labirintite é uma inflamação no ouvido. Mas isso não é verdade. Labirintite é uma inflamação na alma. De origem exclusivamente emocional, a doença do labirinto é coisa séria e dependendo do Teseu, pode ser tão trágica quanto as piores tragédias da mitologia grega. No meu labirinto não há somente um, mas diversos Minotauros soltos querendo me pegar e o pior, sem ter nem meio metro de fio de Ariadne para me ajudar.

Dizem que o labirinto é, essencialmente, um entrecruzamento de caminhos, dos quais alguns não têm saída e outros só nos levam a alguns impasses. Não há quem me faça desassociar a imagem do labirinto à minha labirintite. Perder o chão é como perder o caminho. Estar perdida dentro de mim mesma é como chegar a uma determinada parte da jornada e perceber que algo muito importante está errado.

No livro “A Doença como Símbolo” a definição de labirintite é devastadora: a doença vem como uma alerta do corpo à alma para que ela pare de se enganar. Como se de repente o indivíduo precisasse voltar a olhar de frente para tudo aquilo que construiu e rever os valores e crenças na qual baseou sua vida. Pancada não?

Debruçada sobre o significado do símbolo descobri que o labirinto foi construído pela primeira vez na intenção de ser um inteligente sistema de defesa. E que há dois tipos de labirintos: aqueles que tem a intenção de confundir os viajantes – e não tem saída – e aqueles que, como numa viagem iniciatória, não tem a intenção de aprisionar o viajante e sim transformá-lo através da experimentação – já que percorrer é mais importante do que sair – e geralmente guarda em seu centro um precioso e sagrado tesouro.

É muita riqueza num símbolo só! Mas tomar consciência da verdade não me livra da labirintite, nem tampouco do labirinto no qual estou perdida. Tenho tomado uma quantidade absurda de remédios alopáticos, florais de emergência, trabalhado minhas questões na terapia. Diminui café, mate, chocolate. Durmo sentada e não abaixo a cabeça para mais nada. Tenho estudado sobre o assunto. Tenho escrito – à mão já que fui proibida de ficar no computador – e meditado. A única coisa que não fiz que a médica mandou fazer foi caminhar. Ah, eu acho tão chato caminhar. Será que isso significa alguma coisa?

Tudo significa algo na simbologia da existência humana. Mas a verdade é que não consigo ficar boa. Não consigo me sentir bem de novo. Não consigo achar uma saída nem achar nada de precioso no centro de coisa alguma. Na vertical já voltei a ter alguma controle. Sigo trabalhando, dirigindo, cuidando das meninas. Mas se abaixo, levanto ou me deito depressa, o mundo continua vibrando na sensação estranha de ter tomado um porre sem ter ingerido uma única gota de álcool.

Os espíritas tem uma explicação para o meu caso. Vários já vieram falar comigo. E o diagnóstico é sempre o mesmo: mediunidade não trabalhada. Dizem que minha tontura e mal estar nada mais é do que um chamado sério da alma para a necessidade de um desenvolvimento espiritual.

Pode ser. Não estou fechada para nada. Já estou em busca de mim mesma, buscar um centro espírita vai ser moleza. Mas que fique registrado no livro cósmico da vida: se a intenção é que eu expanda minha consciência ajudando ao próximo, de uma coisa tenho certeza; isso eu já venho fazendo ao longo dos meus quarenta anos. Tenho um respeito profundo pelo mundo e pelas pessoas. Sou amorosa e isso se multiplica a partir do meu coração em todas as minhas ações cotidianas. Descobri que posso curar alguns espíritos com aquilo que escrevo e isso tudo, de alguma forma, já é trabalhar minha mediunidade, não?

Mas se preciso fazer mais, farei. Se preciso ir mais fundo, eu irei.

Diz o “Dicionário de Símbolos” de Jean Chevalier:

“O labirinto conduz o homem ao interior de si mesmo, a uma espécie de santuário escondido, no qual reside o mais misterioso da pessoa humana. A transformação do eu, que se opera no centro do labirinto, e que se afirmará à luz do dia no fim da viagem de retorno, no término dessa passagem das trevas à luz, marcará a vitória do espiritual ao material e, ao mesmo, tempo, do eterno sobre o perecível, da inteligência sobre o instinto, do saber sobre a violência cega.”

Que o meu saber possa conter essa violência que tenho feito sofrer meu corpo. Que o meu amor vença todos os medos que surgirem em forma de Minotauros. E que a minha fé me faça encontrar a Ariadne que habita em mim e ela possa me alertar, através de sua coragem e inteligência, que não há verdade que doa mais do que a ilusão daquilo que construímos nos labirintos de nós mesmos.

Em busca do sentido perdido

Foto Gisele Magalhães

Foto Gisele Magalhães

Talvez exista algo mais denso do que o nosso próprio sangue. Algo mais profundo que a nossa humanidade. Algo mais vital do que o ar que a gente respira. É ter consciência para o que se vive. Que sentido encontramos para existir. Para estarmos aqui.

A vida é estranha e maravilhosa. Sempre costumo dizer isso. Mas têm momentos da minha caminhada, que nem mesmo com toda a paixão e gratidão por estar viva, eu não encontro direito o sentido para estar aqui. Existir com consciência é um desafio incomensurável.  Muitas vezes invejo os animais simplesmente por não poderem pensar. Eles são livres. Livres nesse mesmo planeta que habitamos e coexistimos. Nascemos, vivemos e morremos. Mas temos absoluta consciência de todo o processo e isso muda tudo. Apesar de tanta evolução, ainda acho muito estranho que tenhamos nos acostumado com isso. Basta olhar a coisa por uma perspectiva um pouco mais distanciada que vai ver que viver é uma coisa muito doida. Desde que o mundo é mundo. Imagina que vivemos nos tempos da caverna como primitivos há milhões e milhões de anos atrás?  Depois vivemos eras e eras de um tempo que nem sequer lembramos mais. Nos digladiamos na Idade Média, vivemos tempos sombrios em todas as guerras que nos enfiamos. E hoje?

Hoje vivemos um tempo onde a tecnologia e a globalização colocam uma lente de aumento no planeta e nos fazem sofrer barbaramente com a consciência de tudo que acontece ao redor da Terra. Não há coração que suporte assistir de perto toda a dor que o mundo passa. O mundo inteiro não cabe dentro de nós. Não deve caber. De vez em quando paro para pensar no futuro e acho ainda mais triste nos imaginar naquele mundinho hostil, úmido e em curto circuito de Blade Runner. Sei lá. O mundo parece ter se acostumado com tanto delírio. Se não fossem os loucos, os deprimidos e os artistas, eu poderia apostar que o mundo entrou num colapso de anestesia coletiva.

De tempos em tempos eu me perco. Aliás, eu passo mais tempo perdida do que achada. Mas a sensação da falta de sentido na vida é uma das coisas mais apavorantes que eu já senti. Hoje em dia existem muitos diagnósticos para esse vazio: depressão, pânico, ansiedade. No fundo é sempre a mesma coisa. O homem desconectado da sua essência mais profunda. Desconectado de si mesmo e seu propósito. Desconectado da divindade que habita dentro dele. Já li muito sobre isso, mas a teoria é sempre muito diferente da realidade e eu acredito que ninguém escolha por livre e espontânea vontade estar desconectado de si mesmo. Cara, isso foi acontecendo aos poucos com a humanidade por tudo que ela tem passado desde que o mundo é mundo, não? Sim. Mas e daí?

Daí que no ano passado – num dos surtos que tive quando perdi o mapa de onde estava – resolvi levar a sério essa coisa de vazio e entrei o mais fundo que pude no meu buraco. Escrevi, escrevi, escrevi. Num único caderno. Sem pensar em publicar. Sem mostrar para ninguém. Sem mentir, sem florear. Escrevia e me colava. Escrevia e me jogava fora. Escrevia e me passava a limpo. Foi um processo dolorido, esquisito, maravilhoso. Eu tinha descoberto um jeito de construir uma ponte do meu mundo interno para o mundo externo. Estava fazendo a coisa mais sincera e simples e profunda que já tinha feito. Quando terminei o caderno, tinha nas mãos uma fotografia da minha alma. E muitas pistas para descobrir finalmente, o que fazia e que não fazia sentido para mim. Foi uma catarse, mas valeu a pena.

Tenho pra mim que esse pode ser um bom mecanismo de salvação. Pesquisar e montar o próprio kit-sentido. Uma maletinha de primeiros socorros para quando a gente se perde. O meu não tá pronto, mas eu sigo construindo, dia a dia, os tijolinhos que sustentam a minha existência. Cada vez que eu descubro algo novo que faça sentido, um novo tijolo aparece. No lugar daquele vazio que fazia eco, agora tem um monte de Tatianas trabalhando muito para me transformar de geleca embrionária num ser cada vez mais forte, consistente e bonitão.

Talvez agora eu não me perca mais.

Porque todos os dias olho pro meu kit e reconheço de uma forma profunda e inexplicável o valor de cada uma daquelas coisas que estão ali: a maternidade, que me deu de presente duas filhas e a possibilidade de amar esse amor infinito que há dentro de mim e essa capacidade inata que temos de cuidar daqueles que fazem parte de nós. A natureza, que me ensina com sua beleza e força porque as árvores fazem sentido, e os prédios não. O xamanismo e seu fascinante caminho vermelho, que me fez entender com beleza e coerência que não existe um caminho para a espiritualidade, mas que a espiritualidade é o caminho. E por fim, a arte, que de alguma forma sempre me salvou nos momentos mais sombrios e que me mostra sempre a vida sob a lente mais generosa, ampliada e despretensiosa que pode existir.

Sentido. O dicionário Houaiss tem mais de vinte significados para a palavra sentido, mas nenhuma delas explica melhor o sentido da palavra do que o antigo provérbio xamânico que diz: “sinto, logo compreendo”.

Sinto a vida nas entranhas. Escrevo para compreendê-la. Que o Grande Espírito possa sempre me ajudar com essa missão. Hoje e todos os dias que restem da minha jornada por aqui. Aho!

Bicho preto

Neblina_do_Douro

De vez em quando eu sou capturada por um bicho preto que me leva para um lugar horrível.

Clarissa Pínkola Estés, autora do maravilhoso “Mulheres que Correm com os Lobos” chama esse bicho de predador. É um cara chato, inconveniente, que mora dentro da gente e que não serve para nada a não ser detonar a nossa autoestima e criatividade.

Esse bicho me pega quase todas às vezes que começo a escrever.

Escrever, mas escrever para quê?” ele pergunta.

Desgraçado.

Já li muitos textos de autores incríveis que se debruçam sobre essa mesma questão. Por que escrever? Para quem? Será que algum dia eles também foram apanhados pelo bicho preto?

Tenho muitas aflições. A primeira delas é uma preocupação altruísta de que meus textos sejam sempre sobre o meu “eu”. O que sinto, o que penso, o que vejo. Tudo bem que escolhi a crônica como veículo e ela geralmente é assim, o olhar do autor sobre alguma coisa. Mas será que não é cansativo para o leitor essa coisa de eu, eu, eu? Bom, tai um detalhe que Clarice Lispector nunca deve ter se preocupado. Ela não tava nem aí para isso. Falava de si como quem fala do melhor assunto sempre. Tive um amigo que vivia me dando conselhos sobre isso. Ele era de opinião que eu deveria escrever ficção ao invés de crônica porque através dela eu poderia colocar todas as minhas opiniões na boca de alguém inventado. E que isso de alguma forma disfarçava as minhas próprias sombras.

Mas não foi o que Carpinejar disse. Há alguns anos atrás fiz um curso de crônica com ele em São Paulo que mudou minha vida. Tipo divisor de águas. E ele era categórico no quesito “falar sobre si próprio”. Ele dizia com todas as palavras que o verdadeiro cronista não pode ter medo de se expor e que é isso que o leitor precisa para se identificar. E que ele tem que ter muito senso de humor porque no fundo a gente tem mesmo vergonha de ser o que é. “O papel da crônica é humanizar as relações”. Foi uma viagem inesquecível. Foi depois dela que eu resolvi tatuar a palavra coragem no meu pulso direito. Na mão que escrevo. Não basta ter pulso. É preciso coragem para se viver por inteiro.

Lygia Fagundes Telles também me ajuda a viver. É dela uma frase que tenho presa na porta do meu armário: “O escritor pode ser louco, mas não enlouquece seu leitor. Ao contrário: o escritor pode afastá-lo da loucura. A função do escritor é produzir sentido e só o sentido se opõe à loucura. Por isso não consigo parar de escrever. Se você para de escrever, se torna infeliz, pois está desfazendo uma vocação. Está tapando os ouvidos para um chamado. Você está traindo esse chamado e, assim, traindo a si mesmo”.

Talvez textos que fluam devam fazer parte de um propósito maior. Deepak Chopra fala sobre isso em “As Sete Leis Espirituais do Sucesso”. A lei do darma ou do propósito de vida diz que todos nós temos um talento e uma maneira única de expressá-lo. “Existe alguma coisa que você consegue fazer melhor do que todo mundo. E para cada talento singular, em sua forma única de se expressar, existem necessidades específicas. Quando essas necessidades se combinam com a expressão criativa de seu talento, surge a fagulha que cria riqueza.” Opa, essa fagulha aí eu ainda desconheço. Mas isso são outros quinhentos.

Outra aflição que tenho é sobre estilo. Leio meus textos e não consigo detectar estilo algum. Quase como se só ele pudesse definir minha identidade e sem identidade eu não pudesse me reconhecer em texto algum. A única coisa da qual tenho certeza é que ou eu estou com alma poética e fico tentando extrair metáforas profundas do caminhar de uma joaninha – o que me dá muito trabalho – ou estou com a alma inflamada e saio escrevendo feito uma máquina compressora, numa enxurrada de ideias de fazer batucar o teclado, com uma propriedade assustadora. Tipo agora. Tipo esse texto. Ele flui. Transborda de mim. Como se cada ideia, cada palavra, estivesse sendo psicografada por alguém que está aqui encostadinho em mim.

Mas nunca me esqueço da mãe de santo que cruzou meu caminho certa vez e me afirmou, com todas as letras, que meu escrever vinha dos meus humores. Aqueles líquidos que correm em nós e falam de tudo aquilo que sentimos. Aquilo sim foi o maior presente que o além poderia ter me dado. Eckhart Tolle, do “Poder do Agora” diz uma coisa genial: “uma emoção é uma reação do corpo à mente”. Se eu for mesmo essa coisa transbordante de emoções, tudo que preciso é construir pontes cognitivas para traduzir o que sinto.

Depois disso tudo, o que fica é uma tremenda vontade de dar um soco na cara desse bicho preto. E não me preocupar tanto em falar de mim. Falar de mim é falar de toda gente, que assim como eu, sente, sofre e absorve o mundo do jeito que pode. Se eu puder ajudar alguém com as minhas tentativas de tradução simultânea do mundo, pronto, já valeu a viagem.

E o estilo? Ô meu Deus… será que isso realmente importa? Meu estilo deve ser esse aqui: coração aberto, escancarado. Coração sem vergonha de dizer o que sente. Escrevo com o amor que me habita. E é com esse amor que um dia eu ainda acabo transformando esse bicho preto, numa pulguinha insignificante. Só para ter o prazer de matá-la espremidinha entre as unhas.

Que maldade.

 

Ensaio sobre a sangueira

tpm

TPM só pode ter sido um mecanismo diabólico inventado por Deus. Um plano maquiavélico que Ele tinha em mente, para fazer a gente virar o mundo do avesso todo mês. Ele sabia que o mundo precisava disso. Que geralmente é no avesso que está o direito. E obviamente que Ele sabia também que só a mulher podia dar conta desse serviço.

Desde a adolescência até a velhice, nós mulheres somos induzidas mensalmente a fazermos um pequeno mergulho no abismo de nós mesmas. Somos violentamente conduzidas por uma orquestra afinada de hormônios que nos fazem viver a seu bel-prazer. Quando é o estrogênio que manda, ficamos poderosas. Lindas, exalando sensualidade, com a libido à flor da pele, felizes e bem dispostas. Uma beleza. A natureza quer que a gente procrie. E faz a gente arrepiar no calçadão. Depois que passa o período da ovulação e a natureza se dá conta de que não houve nada de novo no front, traz de presente o período das trevas. A progesterona manda e a gente chora. O tempo todo, por qualquer motivo. De divas passamos à categoria de trapinho velho.  Ficamos tristes, sombrias e inchadas.

É real. A coisa toda é muito real. E o pior é que o assunto está para lá de batido. Todo mundo já falou sobre. Já discutiu sobre. E mesmo assim, a gente continua passando pela mesma história todo mês, sem descanso, sem pausa, se sentindo no mínimo injustiçada. Porque nada do que foi dito, nada do que foi escrito, aplaca a dor da incompreensão do nosso processo. Pelo menos, nos dias de hoje, nessa sociedade em que vivemos.

No tempo em que o homem vivia mais próximo da natureza e dos seus ciclos, a menstruação nas mulheres era coisa respeitada e reverenciada. Pela tradição indígena, por exemplo, uma mulher em seu ciclo lunar era considerada pela tribo, uma mulher em estado absoluto de graça. Ela tinha permissão de se recolher à Tenda da Lua e se isentar de todas as tarefas domésticas, como cozinhar e cuidar de seus filhos. O Tempo da Lua era considerado um tempo sagrado da mulher, quando ela recebia as honras por ser a Mãe da Energia Criativa. Durante esse ciclo ela deveria se libertar das energias antigas que seu corpo vinha carregando e se preparar para a religação com a fertilidade da Mãe Terra, aquela que ela seria portadora no próximo mês. Nossos ancestrais sabiam o quanto era importante dar espaço para que cada mulher pudesse se aprofundar em si mesma em seu espaço sagrado durante esse período. Afinal, eram elas as mães da tribo. Eram elas que davam continuidade à nação. Eram elas que abrigavam em seus ventres os sonhos de toda uma geração. Por isso, nada mais justo que em seu período de Lua, elas apenas descansassem.

Agora me digam, onde é que cabe essa coisa linda e respeitosa às mulheres hoje em dia? Se elas próprias estão tão distantes de sua sabedoria feminina? Hoje o que a mulher vive em seu período da Lua é um verdadeiro massacre da serra elétrica. Porque passa pelo processo tendo que disfarçar tudo o que sente. É um achatamento da sua natureza. Ela quer se recolher e não pode. Quer ficar quieta e não pode. É daí que nasce sua tristeza. Aquela que se transforma em melancolia. Até ultrapassar todos os limites e ver sua melancolia se transformar numa irritação profunda. Que não precisa de nada para virar uma raiva colossal do mundo e de todas as coisas vivas sobre ele. É complicado. Mas é verdade.

Nada do que vivemos é inventado. O que acontece é físico. Eu mesma vivi uma prova concreta disso no mês passado. Estava trabalhando num texto complexo e a coisa ia toda muito bem. De repente, um dia eu acordei e sentei para escrever. As palavras não se encaixavam. As idéias, que antes se concatenavam com tanta facilidade, agora tinham virado um grande mar de pensamentos confusos. Eu pensei: meu deus, o que é que tá acontecendo comigo? Olhei no calendário e batata. Tinha acabado de entrar no meu período pré-menstrual.

E os transtornos físicos que o corpo passa? A gente sofre e não reclama porque senão é chamada de fresca. Dor de cabeça. Indisposição. Inchaço. Cólica? Ah, isso é besteira! Toma um antiespasmódico e pára de reclamar! É igual gripe, todo mundo tem, é um horror mas ninguém respeita o mal-estar que se passa. Afinal de contas, é só uma gripe. Como assim é só uma gripe? Como assim é só uma TPM?

O Tempo da Lua é um desafio para a mulher. Todo mês ela entra em contato com o seu mundo interno porque os hormônios forçam esse contato. Eles manipulam essa necessidade para que a mulher, ao não fecundar nenhuma vida, possa ter a oportunidade de renovar a sua própria vida e regenerar seu corpo. É um rito de amadurecimento. Uma passagem que ela faz, todos os meses, pelo mais sombrio e profundo dela mesma. E é por isso que eu não entendo, mesmo com toda a dificuldade, o que faz uma mulher, um dia, resolver ir contra a sua natureza e não menstruar mais. Geralmente os motivos são sempre os mesmos: falta de paciência com o mal estar provocado pelo ciclo e nojo de seu próprio sangue. As mulheres que fazem isso assinam o divórcio com o seu feminino. E isso é uma pena. Porque ao se desconectarem de quem são, imediatamente condenam o mundo a um desequilíbrio energético colossal.

Por mais triste, confusa, inchada e irritada que eu fique, eu não abro mão de ser quem eu sou. Não abro mão de entrar em contato com essa força. E entender que é nesse período que eu vou ter a chance de ouro de ouvir o que meu corpo tem a dizer, o que as minhas sensações podem traduzir de mim mesma. É justamente nesse caldo de sangue que a minha sabedoria vai transmutar tudo aquilo que a minha consciência não conseguiu entender ao longo do mês.

Deus tinha mesmo um plano diabólico para nós mulheres, quando inventou a menstruação. Era justamente nos lembrar, mês a mês, que a força do mundo não está nas mãos de ninguém. Está no ventre das mulheres. Toda as vezes que ela decide ou não, fecundar o mundo. Ave Eva!

 

Emplastro de vinagre com sal

arame

Eu era pequenininha quando resolvi cruzar uma cerca de arame farpado. Me arrastei feito uma cobra no chão de terra batida para chegar depressa do outro lado. Desde pequena eu tenho pressa. Mas calculei mal o espaço para entrar. Voltei para casa carregada pela minha irmã, aos prantos, com três sulcos de pele rasgada nas costas. Foi quando eu entrei em casa que eu vi, refletido nos olhos da minha mãe, a gravidade do ferimento. O hospital ficava longe, a viagem era por uma estrada esburacada num jipe desconfortável e naquela hora, já anoitecia. Ela não teve dúvida. Foi na cozinha e voltou com um pote fundo cheio de vinagre com sal. Olhou sério para mim e disse:

– Filha, se prepara porque vai doer.

O emplastro de vinagre com sal da minha mãe era como um santo remédio. Ardia como fogo, mas me curava toda e qualquer ferida. Nunca precisei tomar antibiótico nem antitetânico na infância. Porque nada inflamava depois daquele emplastro. Naquele dia, a dor que eu senti para me livrar da dor, era como se uma faca tivesse cortando o próprio corte do arame.

Minha mãe tinha um compromisso com a verdade a respeito de dor. Quantas vezes fui tomar vacina e a enfermeira tentando ser simpática, sorria para gente dizendo: Olha fofinha, não vai doer nada tá? Vai ser bem rapidinho. E ela enfurecida saia atropelando a mulher, para ajoelhar na minha frente e dizer: Isso não é verdade, filha. Isso é uma injeção e vai doer sim. Mas é pro seu bem, você precisa passar por isso. Depois fulminava a enfermeira com o olhar e mandava na lata: Não se mente para uma criança. Se eu lhe disser que não vai doer e depois ela sentir dor… como é que vai confiar em mim de novo?

Tenho pouquíssima tolerância à dor. Sou como a personagem de Michelle Pfeiffer em “As Bruxas de Eastwick”. Meu maior medo nessa vida é de sentir dor. E mesmo assim, já fiquei 18 horas em trabalho de parto, passei por duas cesarianas e fiz outras cirurgias ainda piores. Mas isso tudo porque sei que sempre vai existir um espécie de emplastro de vinagre com sal para me curar as feridas do corpo.

Mas e as feridas da alma? Com que tipo de emplastro a gente cura as feridas de dentro da gente? Tive um namorado que me ensinou que o coração é como um orgão perdido porque jamais se regenera. Cada amor que começa e termina, leva consigo um pedaço. Ele contou que seu coração já tinha levado três mordidas. E que eu ali, terminando nossa história, estava dando a quarta mordida. Sim, era eu que partia. Mas partia com o coração menor também, e por causa dele.

Nesses últimos anos tenho pensado muito de que forma posso amenizar a dor dos machucados que tenho feito tentando atravessar as cercas da vida. Mas não conheço nenhuma espécie de emplastro para as feridas da alma. Como se faz para cicatrizar uma mágoa, se ela só existe no centro de um peito imaginário? Dizem que o tempo é o melhor remédio. Não creio. Tempo não é curativo, é substantivo. Ele pode até apaziguar um sofrimento, mas não cura, não soluciona, não restabelece a saúde de um sentimento moribundo.

Outro dia aprendi com uma amiga que a cada mil lágrimas sai um milagre. Será que é na lágrima que mora a essência do meu emplastro existencial? Será que é no pranto que se desinfetam as lesões provocadas pelo desamor, pelas decepções, pela raiva contida, pelo ciúme doentio, pela decepção velada, pelo ressentimento corrosivo, pela amargura do desencanto? Se for, que esse líquido salgado e sagrado me lave as entranhas sem ardor. E que eu possa ter coragem de continuar me aventurando a atravessar todas as cercas de arame farpado, até as mais perigosas e enferrujadas. Porque de chorar… bom… de chorar eu não tenho medo não.

Palavra coagulada

grilhao

Depois de tanto tempo, ela enferrujou.
As palavras estão endurecidas.
Está difícil escrever.
O que antes era fluido e orgânico, agora parece ter uma resistência preguiçosa.
As palavras estão coaguladas.
Estancadas pelo esquecimento.
Esvaziadas de sentido porque não puderam ser ouvidas.
Nem descritas, nem tampouco lapidadas.
Palavras se magoam facilmente.

Ela sofre.
Não queria que tivesse sido assim.
Sempre amou tanto cada uma de suas palavras.
Aquelas que lhe sopravam ideias.
Traduziam-lhe emoções.
Ela sofre por essa perda.
E faz um esforço enorme para ouvi-las.
E se esgota porque tudo parece escondido: palavras, frases, imagens, metáforas.

Vai ser preciso paciência.
Amor para acordar tanta palavra adormecida.
Cuidado para limpar a poeira.
Ternura para despertar os sentidos.
Obstinação para curar o ressentimento.
Para que as palavras acordem e voltem a fluir, ela vai precisar de calma.
E, sobretudo, perdoar-se pela ausência e impossibilidade.
As palavras entenderão se ela explicar.
Seu afastamento não foi por abandono.
Foi pela necessidade de sobreviver e de compreender o mundo.
Não esse que é feito de palavra e emoção, mas o outro, que é feito de ação e razão.