Gratidão

amor

“Quanto menos eu preciso, melhor me sinto”
Charles Bukowski

Desde a entrada da primavera, um sentimento de gratidão tem me invadido o corpo, a mente e a alma.

Como algo que emerge de um lugar muito profundo e se instala na superfície possibilitando a instalação de uma nova lente no olhar e um novo filtro no coração.

É uma sensação sublime de plenitude. Um sentimento simples. Quase tão orgânico como respirar. Quase tão óbvio como existir.

É um estado de contentamento. Uma possibilidade de compreensão do quanto me sinto abençoada e sortuda com a vida que ganhei, conquistei e integrei.

Porque é isso. Tem uma parte que a gente ganha quando nasce. Alguns acreditam em sorte. Eu acredito em merecimento espiritual. Você ganha existência e é um girininho nadando num oceano de infinitas possibilidades. Mas é claro que tem girininhos que nascem abençoados, e outros nem tanto.

Depois tem a parte da conquista. Aquilo que você batalhou muito para conseguir depois que se transformou num ser adulto e consciente de toda a suas possibilidades. A conquista não fala de sorte, mas de todo o esforço e empenho que você tratou a vida.

Mas de todas, a parte que eu mais gosto é quando a gente chega num determinado pedaço da caminhada e entende que de nada adianta nascer bem ou conquistar um bocado de coisas se ao longo da vida você não aprende a integrar tudo que plantou, semeou e colheu.

Integrar conhecimentos e experiências para mim hoje é o grande pulo do gato nessa vida. Quando você consegue pegar toda a massaroca do que aprendeu e passou e transforma a coisa em sabedoria de vida. Porque simplesmente… Amadureceu.

Já dizia Cecília Meireles: “Aprendi com as primaveras a me deixar cortar para poder voltar inteira”.

Então é primavera. E eu estou aqui transbordando essa gratidão por tantas coisas.

Por ter tido a benção de trazer ao mundo não só uma como duas criaturas inacreditavelmente especiais.

Por ter uma família para lá de gostosa e amorosa que me apoia tanto em tantos momentos da vida.

Por ter uma saúde maravilhosa apesar  a minha hipocondria insistir em dores e doenças que nunca existem graças a Deus.

Por ter uma lista tão grande de amigos de verdade, amigos que me apoiam, me abraçam, me perdoam. Dividem bravamente suas existências comigo, contando comigo, me dando sempre de presente parte de seus corações.

Por ter um trabalho tão significativo, tão importante para o futuro e, sobretudo, por poder ter minhas filhas inseridas nele.

Por ter um namorado tão cuidadoso e amoroso, que luta para estar comigo como um guerreiro e me enxerga de um jeito doce e poético como nunca ninguém enxergou.

Por ter encontrado nas palavras uma arma para lutar, por ter sofrido tanto e ter tanto o que falar, por ter nascido quem eu sou, com essa alma exagerada e esse jeito desesperado de viver os dias como se eles fossem os últimos, todos os dias.

Eu agradeço meu Deus, eu agradeço.

E sei, aqui dentro de mim, que a qualquer momento eu posso morrer. E não tenho medo disso. Tudo que vivi e senti, já valeu essa encarnação.

 

 

TOE – Transtorno Obsessivo pra lá de Esquisito

livros

Para Catita

O ser humano tem muitas neuroses.

Algumas são sérias, complexas, perturbadoras. Outras são engraçadas, meio patéticas, surreais. Mas hoje eu fiquei pensando que talvez o primeiro passo para curar uma neurose é ter coragem para olhar para ela de frente, assim como quem enfrenta um demônio num deserto. Você e ela, ali, cara a cara. Sem máscara, sem mentira. Sem panos quentes, sem vergonha. Olhar assim, de verdade. A conscientização de uma neurose pode ser um marco. O início mesmo de um processo de cura. Uma libertação definitiva da coisa que faz a gente ser, esse bicho esquisito que a gente é.

Eu, por exemplo. Eu sei que eu tenho um leve nível de TOC correndo nas minhas veias. Para quem não sabe, TOC é a sigla para o transtorno obsessivo compulsivo, um distúrbio psiquiátrico que faz as coitadas das pessoas terem “pensamentos obsessivos e compulsivos, comportamentos considerados estranhos pela sociedade ou por si próprios; normalmente trata-se de ideias exageradas e irracionais de saúde, higiene, organização, simetria, perfeição ou manias e “rituais” que são dificilmente controláveis”. Pois é. Eu tenho um pouquinho dessa coisa aí. Uma coisa leve, assim, quase imperceptível a olho nu. Mas eu tenho. E toda a vez que eu percebo a coisa em mim, um sininho toca e eu fico bem aborrecida com o fato. Não, eu não fico aborrecida. Eu fico me sentindo prisioneira de uma coisa que não precisava ser.

Deixa eu explicar melhor.

Desde pequena eu tenho um lance com arrumação. Minha mãe sempre foi super organizada. Minha avó era metodicamente organizada. Então de alguma forma, alguém me ensinou que a ordem sobre o caos é uma coisa positiva. Até aí tudo bem. A questão é quando a coisa começa a se desequilibrar e se torna uma obsessão, isto é, um apego exagerado a uma ideia de que tudo tem que estar milimetricamente no lugar. Eu tenho para mim que muito do meu TOC tem a ver com um caos interno. As coisas aqui dentro já são tão bagunçadas que eu fico arrumando desesperadamente o lado de fora na esperança de que dentro as coisas vão se organizar melhor. Eu até já escrevi um texto sobre isso: sobre as minhas arrumações compulsivas dos armários quando estou deprimida. Mas ultimamente tenho percebido que a coisa extrapolou o armário e tomou conta da casa toda.

A coisa é mais ou menos assim. To passando do quarto para a sala. Olho de butuca de olho a pilha de livros que está lá na estante do outro lado da sala. Os livros estão empilhados de qualquer jeito. Assim, uns por cima dos outros, mas sem nenhuma simetria estética. Cada um olhando para um lado. Eu não sossego enquanto não vou lá para empilhá-los direitinho. Não é uma atitude meio esquisita? Isso já foi pauta de terapia. E dever de casa desafiador no grau máximo. A tarefa era simples. Olhar a pilha de livros e ficar contando, respirando no incômodo, até me libertar do desejo louco de ir lá arrumá-los. Ahhhhhh. Que agonia!

Quando comecei a pensar nesse texto e no tema polêmico do TOC, liguei para minha irmã, que na minha modesta opinião, está alguns níveis acima da minha loucura. Aquela ali tem TOC brabo, mas não se incomoda com isso. A casa dela é Casa Cláudia e ela se orgulha disso. Tudo está sempre pronto para ser fotografado. Não há uma gavetinha sequer naquela casa que não esteja em ordem total. Mas eu estava aflitíssima ao telefone:

– Má, fiz a besteira de entrar num site para pesquisar os sintomas de quem tem TOC. Cara, eu tô num nível básico em quase todas as listagens. Você acha isso grave?

– Ti, se acalma. A gente foi criada assim. Não lembra que a gente não podia brincar na casa da vovó para não desarrumar nada?

– É, eu lembro.

– Nossa mãe tem o armário arrumado em degrade de cores, cara. Isso tem um peso nas nossas referências.

– É, você tem razão. Mas eu quero me libertar disso.

Para quê secar a bancada da pia depois de lavar a louça? Por que fazer a cama e ficar paranoica que alguém vai sentar e engruvinhar toda a colcha que você acabou de esticar? Pra quê se preocupar de fazer bolinhas com as meias e calcinhas depois que as tiramos do varal? Por que passar Veja tantas vezes na mesa da sala? Por que se importar tanto com as impressões digitais gordurosas no vidro da varanda?

Não pensem vocês que me orgulho de ser assim. Se pudesse mudar alguma coisa em mim, com certeza que essa neurose de arrumação estaria no topo da lista. Claro que eu gosto de ver as coisas organizadas, limpas, cheirosas. Me orgulho de saber que não sou uma acumuladora e que na minha casa não tem nada quebrado ou fora de uso. Arrumar o lugar onde a gente mora tem a ver com honrar de alguma forma tudo que foi conquistado. Eu sei. Mas também sei aqui dentro de mim, que a linha que divide a ordem do ambiente para uma coisa psicoticazinha de arrumação é bem tênue. E assustadoramente esquisita.

Minha irmã teve um professor de história da arte que disse que 1% da população mundial tem alguma preocupação com estética. Taí. Deve ser isso. Eu sou um desses caras. Estética é um ramo da filosofia que tem por objetivo o estudo da natureza da beleza e dos fundamentos da arte. Talvez meu lance lá com os livros assimétricos fale de uma necessidade filosófica de tornar o ambiente da minha casa bonito e equilibrado. Até aí tudo bem. Mas o que me incomoda é perceber que sou prisioneira dessa estética. Eu não conto para ninguém, mas depois que Marly vai embora na segunda-feira – depois de um dia auspicioso de faxina – eu saio consertando objeto por objeto na casa, arrumando as coisinhas na simetria lógica da minha cabeça que não tem lógica nenhuma. Ou tem?

Ah, sei lá. Esse é um assunto que dá muito pano para manga. Das muitas características bizarras de quem sofre TOC realmente essa da arrumação – em mim – me parece a pior. Eu sei que tem muita gente que padece com essa doença. Que fique aqui registrado meu profundo respeito e compaixão para quem luta com esse dragão. Só mesmo a psicanálise para explicar tanta esquisitice. Ou não. Dizem as pesquisas que apesar de vários estudos publicados o TOC ainda é considerado um “enigma” e continua sendo um desafio para os pesquisadores.

Na minha pesquisa pessoal, descobri que algumas sensações mentais se repetem no coração de quem sofre a coisa: percepções ilusórias de se “sentir em ordem”, sensação constante de incompletude, de “ter que” fazer alguma coisa e por fim, a sensação de esvaziamento da energia interna. Nossa. Essas sensações me parecem ser de um profundo sofrimento subjetivo.

Escrever é um processo de cura para mim. Compartilho com o mundo as minhas neuroses para ver se com isso consigo dar uma meia dúzia de socos nesses demônios que me atormentam. E na esperança também de ajudar alguém que talvez sofra do mesmo TOE que eu. Porque gente, não dá para ficar levando a vida tão a sério né. Tudo bem. A gente é esquisito. Mas eu não quero ficar me martirizando com isso. Eu quero rir disso. Talvez a verdadeira libertação das neuroses esteja no segredo de rir delas. Ou escrever sobre elas. Cada um com a sua possibilidade de libertação exorcizante. Nietzsche dizia que “temos a arte para que a verdade não nos destrua”. Eu tenho as palavras para que as neuroses não me destruam. Aho!

Celebração da Primavera

Foto Clara Meira

Foto Clara Meira

Este texto é especialmente dedicado ao Roda de Lobas

Sábado passado vivi umas das experiências mais bonitas dos últimos tempos.

Há vários anos minha mãe Irene reúne mulheres (e alguns poucos homens corajosos) para celebrar a entrada da Primavera. É um evento grandioso, mas muito simples em seu propósito. Eu já tinha ido há alguns, nos anos passados. Me lembro como se fosse hoje da Clara pequenininha correndo cheia de flores no cabelo por entre as muitas saias que rodopiavam por lá. Mas este ano aconteceu alguma coisa especial.

O encontro aconteceu na Casa Tebekato, um lugar fora do tempo e do mundo em São Conrado. Um espaço verde, de mata abundante, piscina natural e uma energia extraordinariamente positiva – já que é uma casa alugada especialmente para trabalhos espirituais. As convidadas são, em sua grande maioria, as muitas mulheres que frequentam os grupos que minha mãe ministra do estudo do livro “Mulheres que Correm com os Lobos”. Ela vem fazendo esse trabalho há mais de dez anos. São diversos círculos de mulheres que se reúnem mensalmente para estudar o livro e estudar profundamente o que o livro causa dentro delas.

Como dizem por aí, eu sou uma “loba coroada”. Terminei a leitura do livro, com o primeiro grupo que se juntou em 2004, depois de quatro anos de estudos. Praticamente uma faculdade de psicologia. Foi engraçado como tudo aconteceu. Minha mãe comprou o livro e começou a ler. Alguns meses depois comprou um para mim e me deu com recomendações seríssimas: “Minha filha, você PRECISA ler este livro.” Com o passar do tempo, descobrimos que todas as mulheres que liam aquele livro, passavam pelo mesmo processo: o despertar profundo da Mulher Selvagem que habita dentro de nós. E com ele uma enxurrada de insights que simplesmente não dava para vivenciar sozinha. Divulgamos o encontro para falar do livro e de repente, se juntaram na minha pequena sala da Gávea, mais de vinte mulheres ansiosas por dividir o que estavam passando silenciosamente em suas vidas. Foi demais! Foram anos de muitas histórias, muitas lágrimas, muitos aprendizados e, sobretudo, um belíssimo despertar do nosso feminino sagrado.

Pois bem. Imaginem que minha mãe já está na formação de seu 11º grupo de estudos de “Mulheres que Correm com os Lobos”. E na Celebração se reúnem quase todas as mulheres que já passaram e estão passando por essa experiência. É uma loucura!

Esse ano levei comigo umas amigas queridas, minha Clarinha – que ficou responsável por fotografar o evento e estava empolgadíssima com isso – e Catarina, que no meio do mato fica como um beija-flor. Chegamos lá, tiramos os sapatos, abraçamos meia dúzia de mulheres e descemos para o jardim. O dia estava radiante. Calor, céu azul. Pássaros cantando. Aos poucos, outras tantas mulheres chegaram. De uma hora para outra, Djaala – umas das maravilhosas companheiras de trabalho da minha mãe – começou a puxar uma fila de mulheres que deram suas mãos e iniciaram uma dança silenciosa, em direção à piscina. Pronto. Ali já comecei a ter um treco de emoção. Como uma grande irmandade, fomos dançando e caminhando, dançando e caminhando, até que chegamos até a piscina e nos sentamos ao redor dela, com os pés dentro d’água. Tudo silenciosamente, com sorrisos floridos no rosto. Depois que todas estavam acomodadas, tive o desejo de cantar com aquelas mulheres, velhas canções que despertassem o melhor de todas nós. E foi maravilhoso. Porque cantamos todas juntas, em uníssono, bem baixinho, como se de alguma forma, chamássemos algo há muito adormecido em nós. Não tive dúvida. Com o calor e minha mulher selvagem já correndo nas veias, pulei na piscina de vestido, sem me dar conta que Djaala tinha feito a mesma coisa, ao mesmo tempo que eu. Saímos d’água, nos reconhecemos na travessura e gargalhamos dizendo: “Lobas coroadas”! Não foi preciso muito tempo para que as tantas outras nos seguissem, mergulhando na piscina refrescante da Tebekato.

Quando Maria chegou – nossa querida convidada que seria responsável por conduzir as danças deste ano – aproveitou a cena de filme e mergulhou na piscina para dar inicio as danças ali mesmo dentro d’água. E dançamos as canções de Juremar, unidas numa só voz e coração.

Se o dia tivesse terminado ali, já teria sido um dia perfeito. Mas tantas outras coisas nos esperavam naquele dia mágico. Tivemos a montagem do altar – na base de uma linda e centenária árvore da Tebekato – com flores, velas, incensos e mel para reverenciar o novo ciclo da Mãe Terra, meditação ao ar livre, um almoço coletivo maravilhoso, mais danças e por fim, uma fogueira especialmente acesa para transmutarmos desejos, intenções e todas as mudanças possíveis que a gente sonha na entrada da Primavera.

Naquele sábado senti um orgulho muito profundo pelo trabalho que minha mãe vem fazendo ao longo desses últimos anos. O despertar do que há de melhor, mais sagrado, mais feminino e poderoso dentro de cada uma daquelas mulheres. Catarina foi chamada por ela no final da montagem do altar e as duas trocaram meia dúzia de palavras. Na volta da conversinha com a avó, ela sentou ao meu lado com um sorrisinho feliz. Eu perguntei: “o que Vovó disse para você, filha?” Ela respondeu com o peito cheio de orgulho: “que eu sou a herdeira disso tudo aqui”. E me deu uma piscadinha. É minha gente, a força do mundo não está nas mãos de ninguém. Está no ventre das mulheres. Aho!

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Foto Clara Meira

Oração Miúda

Foto Clara Meira

Foto Clara Meira

Para Adélia Prado

Meu Deus,

me dá um pouco de silêncio.

 

Me ensina como é que faz para estancar pensamento,

me ensina a acalmar tanto desejo,

aliviar essa dor que eu tenho de existir.

 

Me leva de volta para pescar girino,

para colher morango silvestre,

para dormir no colo da minha mãe.

 

Meu Deus,

Me dá um pouco de silêncio.

 

Me ajuda a entender esse mundo,

me ajuda a traduzir tanto sentimento,

me ajuda a não querer embora antes da hora.

 

Uma Canção para Aylan

maefilha

Já perdi a conta da quantidade de vezes que fui acusada de alienação.

Já perdi a conta da quantidade de vezes de ver gente bufando o absurdo da minha postura de não ler jornal.

Já perdi a conta da quantidade de vezes que tirei gente do sério simplesmente por fazer a escolha de não querer saber das notícias cruéis do mundo.

No início, eu me sentia envergonhada. Escondia de todo mundo essa escolha bizarra de ir no contrafluxo do mundo enlouquecido de informações e me desculpava constrangida por não saber do menino que matou outros vinte na escola. Pedia desculpas pela minha ignorância e disfarçava essa minha opção maluca de vida.

Mas com o tempo, eu me fortaleci. Compreendi em profundidade o que era a sombra do mundo e o que fazia parte da cultura do medo. Entrei de cabeça no estudo e na vivência da minha jornada espiritual. Saí de grupos do Facebook que me alertavam sobre os perigos da cidade, saí de fininho das conversas que sangravam, aprendi a dizer para o motorista de táxi que não me contasse os casos de assalto da região, aprendi a defender minha escolha de vida com orgulho e ver nela todo o sentido que eu buscava. É impressionante como a gente acha que não, mas a gente pode escolher em que frequência do mundo quer viver.

Mas mesmo com todo o cuidado, todo o filtro e toda a tentativa de escapar da dor que o mundo me causa, um dia, uma fotografia gruda na minha retina e não me deixa respirar. A fotografia de um menino morto na beira da praia entra em mim e me toma por inteiro. Me doem os ossos. Me dói o estômago. Me dói a alma. Tento desesperadamente entender o contexto, ler as notícias atrasadas. Me sinto culpada pela impotência, sou bombardeada de mensagens no whatsapp de amigos em sofrimento como eu e penso: quando é meu deus, que a humanidade vai parar de ser como é?

Muito já foi dito sobre essa história essa semana. E o Efeito Aylan Kurdi é real. Depois da morte do menino sírio, algumas coisas já se transformaram na Europa. De alguma forma, essa dor que o mundo sentiu fez mover energias profundas que precisavam desesperadamente ser transformadas.

Mas aqui dentro de mim, dentro desse meu pequeno universo que habito, o que eu queria dizer com esse texto essa semana, era que desde o dia que aquela imagem foi divulgada para o mundo, antes de dormir, eu não consigo fazer outra coisa que não seja imaginar colocar o pequeno Aylan no colo e cantar para ele uma canção de ninar. Rezo para que ele, sua mãe e seu irmão encontrem luz no Caminho Azul e compreendam que a humanidade ainda vai precisar de muito, muito tempo para se transformar. Não consigo imaginar mais nada que eu possa fazer por essa história nesse momento.

O mundo não me cabe. Mas como Aylan pode não caber?

Olha

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Querido leitor, por favor, clique na música antes de começar a ler o texto.

Olha aquelas nuvens alaranjadas no céu

Olha aquelas gaivotas atravessando o sol

Olha aquele menino soltando aquela pipa colorida

Olha aquele mendigo olhando as ondas do mar

Olha a cor daquelas flores na janela

Olha aquela moça chorando pela rua

Olha aquela mãe amamentando o filho

Olha aquela borboleta que pousou na lata de lixo

Olha aquela poesia pichada no muro

Olha aquele velhinho bem velhinho atravessando a rua

Olha aquela menina de maria chiquinha chupando picolé

Olha aquela flor que brotou no meio do cimento

Olha aquele gari dançando com a vassoura

Olha aquela bicicleta azul encostada na árvore

Olha aquele gurizinho brincando na poça

Olha aquela moça beijando o moço na ponta do pé

 

Eu olho pro mundo e o mundo me espanta

Mas o que mais me espanta

É perceber que quase ninguém tá reparando no mundo.

 

Picasso e tudo aquilo que eu entendi

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“A arte é o vazio que a gente entendeu”
Clarice Lispector

Semana passada fui ver o Picasso. Sozinha. Ah! Tem coisas que eu a-do-ro fazer sozinha. Exposição é uma delas. Se cada um tem um tempo diferente para entender a vida, imagina uma obra de arte. A viagem precisa ser individual para que cada viajante possa vivenciar a experiência da forma que desejar. A arte é um mergulho profundo no vazio de cada um. Estar só nesse momento – pelo menos para mim – me ajuda muito no processo de entrega para a coisa.

Mas então. Picasso.

Me comove muito essa coisa do povo enfrentar uma, duas horas de fila só para ver uma exposição de arte. Gente! É demais. Esse tipo de coisa me devolve a esperança no mundo. Na humanidade. E me faz lembrar aquele livro da Celina Fioravanti “Os Curadores do Espírito” que fala dos artistas como principais agentes de cura e equilíbrio do mundo.

Bom, eu enfrentei uma hora de fila feliz. Li um pouco, observei as pessoas, ouvi conversa alheia, comi pipoca, liguei para uma amiga, lixei minhas unhas, arrumei minha carteira, tomei água com gás, masquei meia dúzia de chicletes. Na verdade nem terminei de fazer minhas tarefinhas de bolsa quando recebi a senha para entrar.

O Centro Cultural Banco do Brasil é um espetáculo por si só. Aquele lugar é uma viagem no tempo. Todas as vezes que entro naquele prédio e sinto aquele cheiro característico dele – uma mistura de café, cultura, refinamento e elegância – agradeço por existirem lugares no mundo como ele. Na verdade o espaço é uma garantia de prazer. Não importa que exposição esteja em cartaz. Nem que peças de teatro estejam passando. Ir ao CCBB é um programa barato e de satisfação garantida. Não sei o que é. Tem uma coisa na atmosfera daquele lugar que me fascina. A começar por aquela cúpula que fica no centro do prédio. Aquilo não é uma cúpula. É um portal para outra dimensão.

Mas voltando ao Picasso.

A fama do cara é uma coisa indiscutível. Picasso é considerado hoje um dos mais importantes artistas plásticos do século XX. Num leilão em maio desse ano, alguém pagou quase 180 milhões de dólares por um quadro dele. Pensa. É uma quantia astronômica por uma obra de arte. Mas eu entrei na sala e dei de cara com uma pintura dele. E naquele momento, não havia nada entre nós. Nem a fama, nem a história, nem o valor da obra, nem o tempo. Só eu e ela, a tela. E dentro dela, a alma dele, impressa na textura daquela tinta a óleo.

Uau.

Primeiro quase não consegui respirar. Como pode? Eu estava ali e podia sentir a presença dele. Não a presença do mito, mas do Pablo, o cara que tinha nascido na Espanha, que desenhava e pintava desde pequeno, que quase morreu de escarlatina, que sonhava em morar e trabalhar em Paris, que tinha amado e maltratado muitas mulheres e tinha revolucionado a arte com suas ideias. Minha fértil imaginação me capacita a coisas incríveis. Em alguns segundos, voltei no tempo. Ao dia, ao exato momento que ele pincelava naquela tela aquelas impressões que o mundo lhe causava. E pensei na brevidade do tempo diante de certos fenômenos da nossa existência. Essa é uma das razões da arte me fascinar tanto… Ela é imune ao tempo.

Mas voltando ao quadro.

Devo ter ficado alguns minutos em frente à primeira tela da exposição. Depois de passado o deslumbramento da viagem no tempo, voltei à sala do CCBB e fiquei tentando imaginar porque que aquela pintura era tão famosa. Lia e relia os resumos do curador da exposição e ria sozinha daquelas definições esdrúxulas que os entendidos em arte insistem em escrever, tentando definir o indefinível. Taí uma coisa que eu não entendo nas exposições. Para quê tanta explicação intelectual para algo que deve apenas ser sentido com o coração? Nada do que está escrito ali pode me ajudar a buscar uma emoção se ela não vem. Geralmente nas exposições que vou, elejo o quadro ou o objeto que mais me emocionou na sala e vou seguindo a jornada, os guardando na memória e no coração. Antes de ir embora, volto para me despedir de cada um, agradecendo silenciosamente sua existência, como se eles de alguma forma tivessem despertado algo mágico dentro de mim.

Na exposição do Picasso um único quadro me emocionou. E é o tipo da coisa que não dá para explicar por que. O pintor mesmo tem uma frase que gosto muito. Ele diz: “a qualidade de um pintor depende da quantidade de passado que traz consigo”. Talvez o mesmo possa ser dito do espectador. Gostar ou não de uma obra de arte também pode depender de tudo que o espectador tenha vivido. Como nos filmes. Dificilmente conseguimos explicar a alguém que odiou determinado filme, o porquê de termos gostado tanto dele. Nosso passado. O que vivemos. O que vimos do mundo. A forma que vimos. O quadro que amei da exposição era pequeno e sem destaque. Mas calou em mim alguma coisa que não sei explicar. E nem preciso. Sei o que senti e pronto.

A verdade é que essa exposição do Picasso – e todo estranhamento que ela me causou – me trouxe uma reflexão profunda em relação à arte. Um artista traz ao mundo sua criação. O que as pessoas vão fazer com o que sentiram em relação a ela só compete a elas. Tá. É engraçado estar parado em frente a um quadro e ouvir atrás de você uma pessoa tentando explicar o que está vendo. É difícil decodificar o que se está sentindo, principalmente quando o que se está sentindo é algo profundamente abstrato. Pérolas saem dessas situações. Mas surreal mesmo é ouvir um intelectual metido a entendedor de Picasso afirmar categoricamente o que aquele quadro quer dizer. Como assim? Como ele acha que pode afirmar o que estava se passando dentro do Pablo naquela hora que ele pintou um minotauro cego sendo guiado por uma menina que carregava uma pomba?

O surrealismo de Salvador Dali eu até alcanço. Mas o cubismo de Picasso! Poxa vida. Eu até tentei estudar o movimento, mas foi quase impossível para mim. O que entendi do processo – e por isso não importa se eu gostei ou não da exposição – é que ele criou um movimento por um profundo desejo de contravenção. E para isso eu bato muitas palmas para ele. O cara ficou exaurido de um sistema, foi lá e reinventou as perspectivas no que deu na telha dele. Pô. Isso é genial. E precisa ser respeitado. E admirado. Se as pinturas são estranhas, tortas e o cara parecia estrábico, definitivamente não importa. O que importa é celebrar a coragem que ele teve de ir lá e fazer.

Tenho recebido muitas críticas aos meus textos. Hora porque estou colocando vírgulas onde não devo, hora porque estou conjugando verbos de maneira errada, hora porque não me aprofundo, hora porque me aprofundo demais. Depois de ver Picasso pensei no quanto as pessoas que vão lá e fazem, mexem com as outras que apenas assistem. É preciso muita coragem para se expor e colocar para fora o que nos inquieta a alma. É preciso coragem para enfrentar o mundo de dentro, mas é preciso ainda mais coragem para enfrentar o mundo de fora.

A Soma dos Dias

Foto Clara Meira

Foto Clara Meira

Hoje o despertador tocou às seis horas da manhã. Eu desliguei o alarme e me espreguicei. Quando levantei, a coluna travou. Senti uma dor lancinante e caí de volta na cama sem acreditar no que estava acontecendo. Era a minha alma gritando outra vez.

Há muito tempo venho repetindo um mesmo processo emocional que não consigo me curar. Somatizar significa transferir para o corpo um problema de origem psicológica. Hoje, depois de toda a estrada percorrida nos meus quarenta e dois anos, já entendi que não há nada, absolutamente nada que o corpo fale, que não tenha sido dito pela alma. Mas mesmo com toda a compreensão, com todos os anos de terapia sofridos, todos os florais tomados, meu corpo segue dando pistas de como minha alma continua inflamada.

É mais ou menos como varrer a casa e colocar toda a sujeira embaixo do tapete. Com o tempo, o que era só uma fina camada de poeira vai se transformando num enorme calombo. A gente começa a tropeçar na sala e percebe que não dá mais para disfarçar aquele bolo gigante de sujeira. A mesma coisa acontece com a gente. No dia-a-dia, a gente vai vivendo aos trancos e barrancos. Vivemos intensamente e mal conseguimos compreender tudo que nos acontece. São emoções, frustrações, raivas. Sentimentos e experiências acumuladas que não conseguimos digerir. Esse acúmulo, ao invés de nos nutrir, começa a nos intoxicar. As  vivências vão se transformando num grande e espesso lixo anímico que se transforma numa massa de dor. A alma pede socorro, mas não temos tempo de ouvi-la. Porque desprezamos o cansaço. Enterramos a tristeza. Desrespeitamos os sentimentos. Então a alma começa a chorar.

Quando a alma chora, a gente leva um susto. E rapidamente saca da bolsa um Rivotril para calar essa coisa estranha que nos aperta o peito. Ou toma logo uma Neosaldina para essa enxaqueca que não passa. Ou um Omeprazol para essa dor de estômago que nos incomoda tanto. E como esses milhões de remédios vão sendo consumidos todos os dias para que os lamentos da alma se calem. E a gente possa continuar a jornada da vida, afinal de contas, nós precisamos trabalhar. Precisamos lutar pelo pão de cada dia. Porque precisamos ser felizes. Porque precisamos ter sucesso. Porque precisamos mostrar para todo mundo como somos felizes e como somos bem-sucedidos. Até que um dia a alma explode e não há remédio que nos tire de uma crise de lombalgia aguda.

Eu herdei do meu pai uma hipocondria patética. Talvez por ter descoberto desde pequena que a doença sempre o traria para mais perto de mim. Mas a verdade é que aprendi com louvor a ler e decifrar bulas na intenção de sufocar qualquer tipo de dor. A dor de existir já me é tão dolorida que as dores do corpo eu não consigo suportar. E assim, aprendi um mecanismo esquizofrênico de me antecipar ao sofrimento, antes mesmo que ele possa me alertar de qualquer coisa que esteja errado com a minha máquina. É engraçada a hipocondria do Woody Allen nos filmes. Mas na vida real é uma doença aprisionante e bem deprimente. E uma grande aliada nesse processo de calar a voz da alma.

Não fazemos por mal. Não fazemos numa intenção maléfica. Fazemos porque temos medo. Porque não sabemos se suportaremos tudo que a alma tem a nos dizer. Nem se suportaremos as nossas mais profundas verdades. Porque no fundo, não queremos sair das nossas zonas de conforto. Não queremos ter trabalho. Não queremos ter que olhar para as nossas sombras. Olhar para a parte em nós que nos envergonhamos. Olhar para as nossas feridas que nunca cicatrizaram. Não. Tudo isso é demais para quem tem que acordar às seis da manhã e viver um dia inteiro de trabalho e provações e desafios.

Mas um dia o despertador toca. E a gente levanta. E a coluna trava de tal maneira que por mais que a gente queira muito, ou precise, o corpo simplesmente te impede de levantar. É um mecanismo genial esse não, que a natureza inventou? Me estico para pegar o livro que está na cabeceira – “A Doença como Símbolo”, de Rüdiger Dahlke – e abro na página que diz: lombalgia. Leia o parágrafo com desânimo: “sobrecarga; não suportar o peso que se carrega; sentimentos de pequenez e inferioridade, o chamado entre o eu e o instinto dilacera a pessoa; dilacerar-se; torcer-se.” Não é possível. Mas está tudo bem! Eu estou dando conta de tudo. A vida está me trazendo os desafios e eu estou correspondendo a eles como devo.

Não Tatiana. Nada está bem. Você tem sofrido o último ano de infecção urinária de repetição – que nada mais é do que “chorar por baixo”, ter uma necessidade desesperada de se livrar de lixos anímicos – vira e mexe volta a ter labirintite – que é uma luta agressiva pela orientação certa em relação ao mundo e ao equilíbrio anímico. Anímico! Tudo gira em torno da sua alma, você não percebe? Até quando você pretende fingir que não está escutando o que sua alma tem a dizer? Até chegar a um diagnóstico de câncer?

Minha terapeuta costumava dizer que a gente cura as nossas feridas em camadas. E que se voltamos ao que nos parece ser o mesmo ponto que partimos, é sinal que na espiral da vida, ao menos um véu já conseguimos tirar dos olhos. E muitos… muitos são os véus que nos cegam. Depois de passar semanas com dores insuportáveis nas costas, descobri que minha lombalgia tinha se transformado numa hérnia de disco. Hérnia de disco quer dizer: “abertura de uma ferida antiga; estar sob pressão em decorrência de problemas antigos, que já eram urgentes na época da lesão”.

Talvez eu precise voltar para terapia. Sinceramente não me vejo capaz nesse momento de conseguir decodificar tantos sinais. Me sinto perdida numa escuridão interna. Não estou sozinha. Sei que muitos seres invisíveis me ajudam e me apoiam na minha caminhada. Mas a jornada da alma é um caminho de muitas bifurcações e escolhas delicadas. Não quero me perder dentro de mim mesma. Não quero fazer o quadro de uma doença sem cura. Não quero e não pretendo morrer antes da hora.

Meu amor aos Musicais

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Para Henrique Band

Há certos sentimentos nessa vida que são complicadíssimos de se explicar. Ou as pessoas o sentem ou jamais entenderão aqueles que sentem.

É o caso dos filmes musicais. Outro dia um amigo meu – músico – me indagou atônito, como é que eu podia ser capaz de “amar de paixão” os filmes musicais. Eu respondi: é muito simples. É que a vida lá é exatamente como eu gostaria que fosse cá. Ele não entendeu nada. E seguiu reclamando da coisa ser muito nonsense. “É esquisito as pessoas estarem falando… e de repente! Saírem cantando”. Ué. Mas a própria vida não é esquisita? Esquisito é a gente se acostumar com as esquisitices da vida.

Dentro de mim é assim: os musicais me fazem estar num lugar onde tudo parece ser possível, onde tudo é celebrado, onde a vida consegue ser mais do que um videoclipe. É uma longa história celebrada com canções, lágrimas e gargalhadas. Eles mexem comigo porque muitos sentimentos me vêm à tona. E deixam meus cabelinhos em pé. Porque os sentimentos não são escondidos, são venerados. O sentir é celebrado com exagero. Se há tristeza, ela é cantada com drama. Se há alegria, ela é supervalorizada. Como se o mundo de repente pudesse se transformar num grande caldeirão de emoções. E nele eu pudesse me reconhecer sem medo ou vergonha.

Tá, eu sou um exagero. Eu sei. Mas ser um exagero na vida cotidiana tem seu preço. Experimenta ser assim na realidade massacrante do mundo? Destoa, gente. Fica chato. Por isso eu vivo disfarçando meu lado Piaf de ser. No musical eu me realizo. Porque me identifico. E me encontro. E me liberto, porque finalmente me aceito.  Ai que coisa mais prazerosa que é a gente se aceitar!

Em Mamma Mia – filme que a Meryl Streep canta as músicas do ABBA – há uma cena antológica em que as amigas a convencem a voltar a ser uma menina divertida e despudorada como na juventude e cantam juntas “Dancing Queen”. Elas saem do quarto e vão pela linda Grécia, contaminando todo o vilarejo com sua música e entusiasmo e terminam a cena num grande pulo na água do mar! Como que alguém em sã consciência pode não se contagiar com uma cena dessas?

Como não se contagiar com a “Noviça Rebelde” quando ela dá dicas de como enfrentar o medo da tempestade aos filhos do Capitão Von Trap? Ou com a música mais linda de amor que Nicole Kidman e Ewan McGregor cantam juntos em “Moulin Rouge”? Como não cair em prantos na cena em que Anne Hathaway canta seus sonhos perdidos em “Les Miserables”? Como não explodir de excitação na cena final de “Dirty Dancing” quando Patrick Swayze mostra para aquela burguesia nojenta que dançar com paixão pode ser a coisa mais linda e pura do universo?

Ah! Como eu queria conseguir explicar pra esse meu amigo esse sensação que eu tenho de que as músicas associadas a histórias de pessoas podem ir além da própria música! E que se a gente se permitir eles podem nos servir como verdadeiros divãs. Eu faço isso todas as vezes que a vida vem querendo me pesar. E como num despertar de consciência, lembro o quanto o mundo me espanta e o quanto preciso traduzir esse espanto para o mundo. Escrevo por vocação, porque se pudesse ter escolhido um talento, com certeza teria pedido a Deus um gogó de ouro para sair cantando por aí.

Terapia para quê gente! Vai estourar umas pipocas e assistir “Cantando na Chuva” para ver que tipo de milagre pode acontecer na vida de vocês!

A seguir, um mergulho em algumas cenas citadas no texto. Divirtam-se!

Mamma Mia
https://www.youtube.com/watch?v=juTRRspWUqM

Moulin Rouge
https://www.youtube.com/watch?v=fFtssl7u7lE

Les Miserables
https://www.youtube.com/watch?v=-M2mpgwFSQ0

Dirty Dancing
https://www.youtube.com/watch?v=l9BbUqHrWFI

Cantando na Chuva
https://www.youtube.com/watch?v=-yaxcdMDcrs

Minha Mestra Yoda

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Para Manoela Monteiro
minha irmã shiatsu-acupunturista

Pegou no meu pulso com aqueles dedinhos quentes, mediu alguma coisa ali que pulsava e disse categoricamente:

– É uma crise de fígado. Vamos pra maca.  Vou cuidar de você.

No domingo almocei na casa da minha irmã. Ela tinha feito uma incrível macarronada com atum e estávamos nos preparando para assistir um filme. Em cima da mesa, o laptop estava aberto com uma notícia do Johnny Depp. “Ué que estranho, olha como ele tá com o olho caído nessa foto” observei. Todo mundo olhou, mas ninguém viu. Foi aí que eu percebi que tinha alguma coisa de errado comigo. Eu cobria os olhos alternadamente e percebia que o olho direito estava bem, mas o esquerdo parecia em curto. Como se estivesse perdendo o foco e trepidando as imagens. Comecei a ficar aflita. Em minutos minha visão escureceu. Tudo aconteceu muito rápido. Me deu enjoo, a pressão baixou e, claro, fiquei tão nervosa que comecei a chorar: “Má, acho que eu tô tendo um treco.”

Ela me deitou na maca, pediu que eu respirasse fundo. Ligou o abajur e avisou: vou colocar uma música bem baixinho para te acalmar. Respira, Ti, respira que eu vou cuidar de você.

Minha irmã é shiatsu-acupunturista. E a medicina chinesa a transformou numa fada encantada – tipo um Mestre Yoda feminina – cheia de força, sabedoria e coragem.

O que vivi ontem me emocionou tanto que eu quis escrever esse texto em homenagem a ela. Em homenagem a tudo que ela se transformou depois que resolveu fazer da cura seu propósito de vida.

Ela sabe que eu detesto agulha. E que precisa de mais paciência comigo do que com qualquer paciente porque considero aquelas coisinhas fininhas um instrumento de tortura. Elas me dão uns tremeliques, e eu choro e quero morrer. Ela não liga. Dá umas palmadinhas, dessas que se dá em neném e diz: tá tudo bem, tá tudo bem…. e explica tudo como se eu realmente fosse entender:  tem vento aqui no seu fígado, seu pulso está cheio e a pulsação sem força nenhuma. Há muito calor no seu organismo e a sua energia está excessivamente yang. Vou esvaziar uns pontos e nutrir outros… Respira, irmã, vai dar tudo certo.

Diz ela que não sou só eu, que muitas pessoas têm medo de agulha. Mas, na verdade, o medo não é das agulhas. O medo é de sentir medo. É de antecipar na mente, uma dor que ainda não veio. É o medo da energia que o corpo tem e a gente nem sempre consegue controlar. É o medo dessas emoções que estão contidas nos nossos nervos e que a agulha vem para equilibrar. Cá entre nós, essa coisa de medicina chinesa é muito genial. Eles têm um olhar tão diferente para todas as coisas. Imagina que minha irmã quando me encontra não me pergunta mais se estou bem. Só pede para ver minha língua. Oi?!

Bom, só sei que ontem aquela salvação foi realmente extraordinária. Como a simplicidade do vento que venta, ela esvaziou meu medo e, no lugar do desequilíbrio, fez surgir uma serenidade dessas que a gente quer levar pra vida. E aquilo me inundou de um amor e um orgulho tão profundo que me fez chorar de novo. Mas esse chorinho ela não viu, porque estava naquela hora totalmente absorvida, de corpo e alma, numa massagem revigorante na planta do meu pé. Ela disse que ia cuidar de mim. Mas ela não me cuidou, ela me curou.