O pentelho voador

mosquito

Poucas coisas nessa vida me tiram do sério. Inseto é uma delas.

Minha vida nova na casa nova é um paraíso. Apartamento térreo, predinho de quatro andares. O lugar é um sonho. Estou onde sempre sonhei estar. Num lugar tranqüilo, silencioso, rodeada de árvores por todos os lados, convivendo com passarinhos, corujas, flores de todas as cores… e insetos. Muitos insetos.

Tudo nessa vida tem um preço. E já tem um bocado de tempo que eu aprendi essa lição. Mas há alguns dias, quando completei um mês de vida na roça, tive meu primeiro surto psicótico no adorável condomínio de Bosques de Pendotiba.

Tudo por causa de um microscópico mosquito.

Gente, o que é um ser humano, adulto e inteligente, travar uma batalha de titãs com uma criatura ordinária como o mosquito? Foi uma cena patética.

No entardecer, é preciso fechar todas as janelas porque é no lusco-fusco, a hora em que os mosquitos procuram abrigo. Ok. Mas nossa… eu estava apaixonada pela brisa fresca que adentrava minha bucólica janela, iluminada pela lua cheia daquela noite. Pensava comigo no quão privilegiada era minha nova existência, ali deitada, no lugar mais calmo do planeta. Estava quase pegando no sono, quando ouvi o primeiro rasante da criatura no meu ouvido. Arrancada do momento mágico que antecede nosso primeiro soninho da noite, abri os olhos e pensei: “Cara, não acredito que tem um mosquito no quarto.”

Silêncio. Voltei a olhar para lua e a pensar que no fundo, estava tudo bem. Mosquitos fazem parte desse lugar encantador. Então, vagarosamente fui deitando na cama de novo, pesando a cabeça no travesseiro macio, quase embarcando na jangada dos sonhos, quando…

Zzzziiuuummmmm

Respirei fundo. Tentando me controlar, levantei devagar e fui fechar um pouco a janela. Voltei. Deitei. Outro rasante. Só que dessa vez do outro lado, no outro ouvido. Pronto. Agora eu tinha ficado irritada. Permaneci na cama imóvel e de olhos bem abertos, tentei adivinhar o próximo movimento do pentelho voador. Outro rasante. Foi quando eu dei um pulo da cama, acendi a luz e gritei para as paredes: “Cadê você seu desgraçado!”. Abri correndo o armário, peguei a raquete, liguei no ON e gritei de novo, para quem quisesse ouvir, provavelmente de olhos bem arregalados: “Agora eu quero ver você vir para cima de mim, seu mosquitinho de merda… vem! Vem que eu vou te fritar de uma vez só! ”

Louca. Louca. Louquinha de pedra.

Foi quando começou a guerra. A ridícula guerra entre um gigante e um micróbio. Corri atrás dele uns bons segundos até conseguir, numa jogada de mestre, incinerar o pobre coitado. Um cheiro de defunto invadiu o ar. Olhei o corpinho da coisa pulverizada no chão. Uma meia perninha. Um pedaço da cabeça. Senti culpa. Não pelo mosquito, que tem vida curta mesmo e nem merecia viver depois de me atormentar tanto. Mas culpa pela dimensão do prazer sádico que me deu ver aquela morte. Olhei para raquete e pensei: isso aqui é uma arma carniceira. Um jeito bem esquisito da gente entrar em contato com a nossa sombra mais maquiavélica.

Ainda bem que poucas coisas nessa vida me tiram do sério. Caramba.

Experiência de amor

boanoite

Outro dia fiz uma viagem extraordinária na hora de dormir.

Foi só fechar os olhos que vi minhas duas pequenas, encolhidinhas na cama dormindo na maior tranquilidade do mundo.

Aproveitei a visão e dei um beijo de boa noite em cada uma delas. Daí lembrei dos meus sobrinhos, que dormem lindos de boca meio aberta, e imaginei os dois, cada um em sua cama, já adormecidos. Senti um amor profundo por eles dentro de mim, como se fossem meus filhos.

Então de repente, me deu um impulso de sair voando por aí, visitando pessoas da minha família, amigos pelo mundo, fazendo na verdade uma jornada interna, lembrando de todas as pessoas que eu amava e sentia saudade.

A experiência foi incrível. Porque consegui visualizar todas as pessoas que desejei. Aconchegadas entre travesseiros e cobertores, em estado profundo de sono, algumas encolhidas como minhas bonecas, outras espalhadas pela cama. Para cada uma eu inventei um jeito. Mas dentro de mim, o que batia forte – sempre – era essa divina possibilidade de poder amar a cada uma daquelas pessoas, num simples gesto de dar-lhes boa noite.

Foi umas das experiências de amor mais fortes que já vivi. Uma viagem que eu tenho desejado repetir todas as vezes que preciso me alimentar dessa egrégora que me fortalece, esse círculo de amigos de alma que eu ganhei da vida, que são hoje meu elo mais forte com o mundo.

A Liquidez da Compreensão

liquido

Um dia fui numa mãe de santo que me disse assim:

“Fia, suncê tem que escrever com humor.”

Torci o nariz. Humor? Mas essa preta velha incorporada nessa moça bonita acha o quê hein? Que é todo dia que a gente tá para alegria? Só consigo escrever com humor ou quando eu tô muito inspirada ou quando meu estado de espírito acabou de chegar de férias do Caribe. Não é todo dia que a gente tá solar e vê o mundo colorido. Caramba tem dias que saio da cama com uma lente cinza chumbo nos olhos que não há Cristo que me tire aquele ânimo gris da alma. Melancolia pura.

Parecendo ler meus pensamentos, a preta puxou um tanto do cachimbo, soltou aquela fumaça cheirosa em cima de mim e falou:

“Num é esse humor que ocê tá pensando. Tô falano daquele humor, aqueles líquido que a gente tem no corpo e governa o coração. É com eles que suncê tem que escrevê.”

Hã?

Demorei um tempão para processar aquela informação. Só quando cheguei em casa e fui procurar no dicionário a palavra humor, é que vi numa tacada só, todas as fichas da minha vida, caindo em cima de mim, como naquelas máquinas de cassino, quando te premiam 1000 mil dólares em moedas de um.

Humor são todos os líquidos secretados pelo corpo e que determinam sua condição física, mental e emocional. Genial! Devia ter enchido aquela preta velha de beijo. Como é que eu não tinha entendido isso antes? Usar o humor como guia para o que escrevo, é nunca mais desperdiçar uma alegria ou tristeza sequer. É não me envergonhar da raiva, é grifar o amor, é permitir o negrito de tudo que vejo com as minhas lentes cinza chumbo. É entender que meu barco pode confiar na bússola que pulsa no meu sangue, porque é justamente lá nas minhas veias, que está o melhor e mais confiável oceano para navegar.

Descobri com meu compadre Houaiss, que existem os humores oficiais: o sangue – aquele que faz a gente ferver de raiva ou de paixão, a fleuma que é causadora da apatia, a atrabílis ou bile negra que é responsável pelo último grau da raiva… a cólera, e a bile amarela, aquela que faz a gente ficar com o pior e mais nefasto mau humor!

Mas com a licença poética que me concedeu minha preta velha, depois daquele dia, comecei a pensar em todos os nossos líquidos – mesmo os que não estão catalogados no Houaiss – como outra forma sublime de entender a magnificência da natureza ao criar, por exemplo, a lágrima.

Pode existir coisa mais poética do que uma lágrima? Aquele líquido límpido e salgado que verte de dentro da gente por dor ou emoção exagerada? Viviane Mosé já dizia que: um olhar de lágrimas cristalizadas é como um vidro de carro batido.

Suor acho meio nojento. Também é salgado e geralmente tem companhia de odores fortes de origens quase sempre duvidosas. A não ser o suor que vem do amor. Esse suor é santo. Dois corpos encharcados de suor podem ser considerados sagrados. Talvez porque se misturem aos líquidos do sexo: os fluidos vaginais e o sêmen. Nesses humores estão contidos todos os segredos da humanidade. Nossa origem, nossa semente, nossa evolução. Isso sem mencionar a saliva, o único humor que tem o poder de consagrar no beijo, a história de um grande amor.

Entender os humores do meu corpo me faz entender muito mais coisas do mundo. E principalmente desse pequeno planeta que habitamos. Se os humores da Terra forem como os humores humanos, dá para entender perfeitamente porque o planeta hoje chora mais… do que jamais choveu. Não dá?

Que a liquidez da compreensão possa a partir de hoje, expandir minha consciência. É por isso que vivo, é por isso que escrevo, é por isso que vim.

Tem alguém olhando para mim

rosto

Coisas esquisitas acontecem todos os dias.

Nem sempre a gente dá a devida atenção a cada uma delas. Porque nem sempre a gente tem tempo para isso. Nem sempre a gente tem consciência da coisa. Até repara na coisa. Mas de uma forma inconsciente. Até que acontece de novo. E de novo. E aí a gente leva um susto. Porque a coisa é muito esquisita e não tem explicação.

Foi o que aconteceu comigo ontem. Eu tava no banheiro, fazendo xixi, olhando para o chão do corredor. O chão do corredor é de mármore. Daqueles que são chapiscados de desenhos: bege com desenhos preto e cinza. É uma pedra bonita, perfeita para esconder sujeirinha que eu não tenho tempo pra limpar. Mas eu tava lá, com o pensamento muito longe, quando de repente, meus olhos focalizaram um desenho. Um desenho perfeito de um rosto olhando para mim. Uai. De novo. De novo aquilo tava acontecendo.

Semana passada eu tava no telefone. Sentada no sofá. E eu tinha à minha frente um varal de pé, cheio de roupas penduradas. Eu coloco na sala quando chove porque minha área de serviço é coberta mas sempre molha tudo. E foi daquele jeito, distraída, que eu vi surgir de dentro da estampa de um vestido preto e branco, um rosto perfeito de mulher olhando para mim. Olhos, nariz, boca.

Foi quando eu me dei conta de que esse troço tava se repetindo há um bocado de tempo. E a coisa acontecia justamente quando eu tava distraída. Um rosto nas folhas do arbusto. Um rosto na textura da parede. Um rosto no estampado no papel do embrulho. Um rosto feito de gotículas de água, desenhado no embaçado do box. Estranho – pensei comigo. Será que isso acontece com todo mundo? Nunca ouvi ninguém falar sobre isso…  

Mas ontem detectar aquele rosto no mármore olhando para mim me deu um estranhamento diferente. Um desconforto. Porque aquele rosto tinha vida. Tinha expressão. Era uma moça, tinha cara de moça e ela estava sorrindo para mim. Me encarando. Foi quando resolvi encarar ela também. E então ficamos as duas ali – uma encarando a outra – durante um tempão. Até que me dei conta de que ela podia estar tentando falar comigo. Sei lá. Me mandar um recado do além. Sabe Deus! A gente não tá careca de saber que “há mais coisas entre o céu e a terra do que supõe a nossa vã filosofia”? Vai saber se a mocinha não tava tentando um jeito de comunicação tridimensional?

Mas não. Ela não disse nada. Ficou muda o tempo todo e eu acabei cansando de esperar.

Eu sei que coisas esquisitas acontecem todos os dias na vida da gente. Mas vou te contar viu, eu to virando uma colecionadora de experiências esdrúxulas. Ainda bem que eu não fumo nem bebo. Se eu passo por isso careta, imagine com a consciência alterada. Deus me livre.

Onde Habita Minha Alma

vinho

O lar da alma é o abrigo onde mora a minha alegria
É o lugar onde conservo com todo o cuidado a seiva que me alimenta
Onde preservo algumas das minhas últimas ilusões
Onde eu guardo as minhas criativas estratégias de salvação
Meus ungüentos para as dores mais fundas
A esperança de um dia ainda encontrar algum sentido
qualquer que seja
para toda essa bagunça que me meti quando resolvi nascer…

por isso vos digo
onde minha alma habita
é onde eu estou em essência e excelência…

no adágio de Albinoni
na taça de vinho tinto – cheia!
no mar, onde a lua reflete a prata
e o sol reflete o ouro
num enxame de vagalumes
no vento que varre pensamento
na água corrente
numa revoada de borboletas
na primeira mordida do brigadeiro
na sala de cinema
nos filmes que viraram célula
nos sacos grandes de pipoca
nas declarações de amor, feitas ou recebidas
nas caretas da Clara
no banho quente e cheiroso
no prazer de fazer algo de bom para alguém
no entardecer
no amanhecer
num varal de roupas lavadas
numa roupa recém passada
num trilho de trem
numa estrada de terra
na sutileza das poesias do Mario Quintana
na poesia das crônicas do Rubem Braga
na melodia das letras do Chico Buarque
na caneta esferográfica
no olhar da minha mãe
no bigode do meu pai
na gargalhada da minha irmã
na parede pintada de verde-limão
no céu azul quando está muito azul
no numinoso das nuvens
no escuro da noite que revela as estrelas
nos meus cabelos quando estão vermelhos
na dor das esculturas de Camille Claudel
nos corpos com gavetas de Salvador Dali
na paz que me dá ouvir Gurumayi cantar
nos desenhos da fumaça do incenso
na página de um livro bom
nas palavras preciosas
nas estantes cobertas de livros
no café expresso da livraria
na minha coleção de penas
no apito do trem
no badalar dos sinos
no assovio de alguém
nos canais de Veneza
nas cores de Veneza
no desejo diário de voltar à Veneza
na chuva – antes, durante e depois
no cheiro de esperança que ela impregna o mundo
na horta
no pomar
no balão colorido que um dia eu ainda hei de voar
na pipa que ensina leveza
na cereja que ensina a beleza
no passarinho que ensina a gente a ser livre
na gentileza inesperada
no olhar demorado de alguém desconhecido
no suspiro
no espirro
na saúde
na lágrima que escorre
no bocejo que contamina
na semente do morango que estala entre os dentes
no peixe frito na beira da praia
no caldo de cana na beira da estrada
no pacote fechado de presente
no orgasmo
(acho que nessa hora ela não habita, ela grita)
na dor feminina que é sangrar todo mês
no meu blush
no meu perfume de almíscar
nas minhas botas novas de camurça
nas cartas escritas
nas cartas escondidas
nas cartas esquecidas
no cheiro de pão no fim da tarde
no cheiro de canela, de pó de café
de manjericão no molho de tomate
no primeiro gole do chopp
nas fotografias que tem sorriso
na compaixão que me arrebatam os mendigos
na lembrança do que fui na memória dos melhores amigos
na esperança do que ainda posso fazer com a minha própria vida

Essa lista não tem fim. Nunca terá, só no dia que eu morrer. Até lá…

 

A crônica de um caos anunciado

armariobagunça

A pilha de roupas emboladas dentro do armário revela: aí vem um tempo de caos.

É impressionante como sou previsível. Tudo parece bem na minha vida até que começo a perceber pequenas bagunças se acumulando nos cantinhos escondidos do meu dia-a-dia. É batata. Sinal de que a coisa por dentro não está nada boa. Lido muito mal com a bagunça. A falta de ordem é a denúncia do avesso. Gosto da ilusão de que a ordem é prima-irmã do controle. Se tudo está arrumadinho, quer dizer que tudo está bem.

Não faço idéia de como as pessoas consigam viver no caos. Na minha casa, por exemplo, não há um único item em desuso. Não guardo nada que não precise nem nada que esteja quebrado. Não tenho depósito e geralmente o alto dos armários está vazio. Não tenho apego a coisas antigas. Não guardo alguma coisa porque “talvez precise dela um dia”. Tralha é a antítese do equilíbrio. O inimigo número um do feng shui. Acho até bonita a coleção de inutilezas de Manoel de Barros, mas se ele fosse meu marido com certeza já teria lhe pedido o divórcio.

É por isso, e somente por isso, que em tempos de desequilíbrio interno, é meu armário quem me denuncia.

A coisa começa devagar. Na pilha de blusinhas. Antes muito bem dobradas e empilhadinhas, começam a ser guardadas de qualquer jeito e tamanho. As meias e calcinhas que antes pareciam gaveta de loja de lingerie, da noite para o dia, viram uma coleção de bolotinhas indefinidas. Os sutiãs se confundem com as meia-calças e uma saia que deveria ter sido colocada para lavar, passa a morar no lugar das bolsas. A gaveta de pijamas, outrora cheirosa, agora tem nela jogada um cinto, uma pulseira e uma escova de cabelo. Cheia de cabelos. Nos cabides, começo a pendurar coisas que são dobrar e as de pendurar, empilho. Amassando vestidos, calças e lenços. Os casacos de frio – lindos que estavam guardados por cores – vão se misturando e perdendo a identidade, mafuados no fundo do armário.

Até que a coisa degringola mesmo. E o caos de fora anuncia no grito a confusão de dentro. Já não encontro mais nada em questão de dias. Quanto mais o tempo passa, mais se percebe o grau da minha desconexão. E o que antes se podia desembolar com facilidade, se transforma por preguiça ou medo, num grande e complexo nó. Todos os cacarecos da casa foram parar dentro do armário. Sem me dar conta, estou entupida de questões até a última gaveta.

É nesse momento que chega a hora da faxina. Sem mais nenhum centímetro cúbico de espaço para guardar nada, é tempo de vomitar todas as meias sujas que deixei acumulando tristeza e confusão. Já perdi a conta de quantas vezes isso já me aconteceu na vida. Deixar se instalar o caos só pelo prazer de me achar de novo dentro dele. Brincadeira de gente grande.

Devo confessar que sinto muito prazer nisso. Nesse processo catártico-espacial. Esvaziar gavetas me recicla. Esvazio tudo. Todos os cantos. Todos os cabides. Deixo o armário pelado para me desnudar. E como num ritual de purificação, passo água de lavanda em tudo e recomeço do zero a pilha das blusinhas. Me desfaço da calça comprida que não me cabe mais. Separo uma caixa de doações para todos os trapinhos, que numa boa, não tem mais nada a ver comigo. Até mesmo aquela calcinha – aquela maldita que me dói o coração só de olhar – aquela que tem nela um amor grudado que eu preciso me desfazer… até essa não escapa da limpeza final.

Meu armário é o espelho mais fiel de mim mesma que eu conheço. E é por isso que se ele diz que é preciso desopilar cabides, é isso que eu faço. A gaveta de lingerie ficou vazia. Sinal de que preciso comprar calcinhas novas? Não, sinal de que meu armário está tentando me dizer que é hora de me abrir para novas histórias de amor.

Então tá. Quem sou eu para desobedecer meu alter-ego de seis portas.

Luxo de lixo

luxolixo

Desde que o mundo é mundo, a vida dos seres humanos é um verdadeiro enigma. Estamos vivos e conscientes num planeta complexo, por um período quase sempre indeterminado, fazendo não se sabe o que direito, sobrevivendo aos dias e às noites aos trancos e barrancos há milênios e o pior, sem nunca ter recebido nenhuma explicação para isso. Ou a nossa existência é uma grande piada cósmica ou alguém, em algum lugar, tem planos muito objetivos para nós.

Adoro uma frase de Benjamin Franklin que diz assim: “Achar que o mundo não tem um criador é o mesmo que afirmar que um dicionário é o resultado de uma explosão numa tipografia.”

Meu pai é ateu. Tenho pena dele. Deve ser insuportável estar nesse mundo achando que tudo não passa de uma loteria biológica. Ele não confessa, mas eu sei que sofre. Que lá, bem no fundo da alma, vive um conflito profundo por não fazer idéia do que está fazendo aqui. Eu não suportaria viver num mundo sem Deus. Sem a crença de que algo maior existe, algo que está além da nossa limitada compreensão. Uma força incomensurável e bacana que orquestra o milagre da vida com alguma intenção.

É claro que como ser humano eu tinha um bocado de perguntas para fazer ao Criador. Tem um milhão de coisinhas mal explicadas né nessa nossa história. Mas fazer o que se Ele não tem tempo para responder. O Cara é super ocupado. Quem sabe depois – depois que a gente for embora – tudo seja esclarecido. Esse deve ser um dos melhores momentos da nossa vida: quando tudo que a gente nunca entendeu seja minuciosamente explicado, tim-tim por tim-tim, e nada do que tinha sentido passa a ter em questão de segundos. Nossa, um conforto imaginar isso. Vou morrer com essa esperança em mim.

A questão é: o que fazer aqui enquanto estamos vivos?

Vejam bem: se temos saúde e alguma condição, todos os dias estamos vivos e inseridos no mundo. Não tem como fugir. Quer dizer, até tem. Tem gente que enlouquece, tem gente que acaba com a brincadeira encerrando a própria vida antes da hora. Tem gente que dá um jeito de fugir adquirindo uma doença bem grave. Física ou emocional. Mas se você não fizer nada disso e não tiver sido contemplado com um karma desgraçado que dificulte tudo – tipo vir ao mundo cego, surdo e mudo – você está vivo e com a necessidade diária de sobreviver. Como todo mundo. Não tem jeito.

(vou abrir um parêntese para um desabafo: acho esse tal de karma uma sacanagem do Criador. Poxa, que troço injusto pagar por uma coisa que meu espírito fez em outra vida! Falta de controle absurdo esse o nosso. Porque hoje, inserida na minha cultura e na condição que me foi “dada” eu to aqui fazendo um esforço enorme para viver da forma mais dármica possível. Faço tudo como manda o figurino. Mas se em outra vida eu fui uma esculhambação de pessoa, o certo deveria pagar lá, naquela própria vida, tudo de errado que eu fiz. Mas infelizmente, parece que não é assim que a coisa funciona. A que se faz, a que se paga. Em várias prestações, durante muitas vidas. Sacanagem!)

Mas… de novo pergunto: o que fazer aqui enquanto estamos vivos?

O homem teve que ceder à sua própria demanda existencial. Criou um mundo dentro desse mundo onde foi locado, fez um monte de coisa errada e agora vive administrando, na maior parte do tempo, tudo aquilo que criou e não deu certo. Claro que ele evolui, se desenvolve, mas também paga por sua essência gananciosa desde que dominou o fogo. Coitado. Graças a Deus (olha Ele aí de novo) também foi criada uma fina camada de gente que está desesperadamente tentando transmutar todos esses nossos erros e transformar o nosso lixo em luxo.

Essa gente aí é a minha tribo. E descobrir isso me deu uma enorme alegria. Só Deus sabe a chatice da ladainha que repeti anos a fio: “oh Deus, o que estou fazendo aqui? Por que vim, ao que vim, quem sou eu, porque sou assim?”. Fazer luxo de lixo é coisa de artista. E fazer arte é um privilégio para poucos. Uma libertação. Mas eu precisei amadurecer para entender o sentido dessa liberdade. Porque liberdade não é fazer o que se quer. Liberdade é fazer o que deve ser feito. Li uma vez que o “homem não vale pelo que tem nem pelo que é. O homem vale para o que serve.” Uau. Esse conceito pode dar uma nova e revolucionária perspectiva ao meu plano de vida de qualquer pessoa. E isso não tem preço. Porque na jornada de todos os dias, ou você tem um propósito bem amarradinho ou a coisa fica toda tão solta que você pode facilmente se perder pelo caminho. E acabar transformando sua vida num cotidiano massacrante de uma existência inoperante.

Muitas vezes eu tenho vontade de sacudir o meu pai. Violentamente. Olhar bem fundo naqueles olhos verdes dele e dizer, quase gritando: Acorda pai! Presta atenção ao seu redor. Olha para o mundo. Olha para tua história. Tudo que você viveu, construiu, desenvolveu… você acha mesmo que tava sozinho nessa? Pai, meu Pai. A vida não é uma piada cósmica. A vida é um enigma. Um joguinho complicado que a gente joga a vida inteira e nunca vai sair vencedor. Sabe por quê? Porque a gente ganha o jogo quando nasce, pai. Essa é grande sacada. Entendeu?

Na cama com Morfeu

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O relógio dá uma piscadinha para mim. Onze horas da noite. Perfeito.

As meninas já estão dormindo, a casa está tranqüila. O cd de piano na última faixa, o incenso na guimbinha da cinza. O pijama macio já esquentou o corpo, o chá de erva-cidreira já esquentou a alma. Já pinguei o soro no nariz, o floral na língua. Acho que não falta nada. Só respirar fundo, abraçar minha cama e deitar para dormir.

Fecho os olhos. Intrometido, vem o primeiro pensamento. Xííí… não paguei a conta da internet hoje, putz grila. Não! Nada de repassar a lista do que não foi feito hoje. Amanhã você faz isso. Relaxa.

Respiro profundamente. Esvazio o peito de ar mentalizando esvaziar meu dia que termina. Mudo de posição. Aquela tava meio ruim. Esse edredom tá pouco para o frio de hoje… Será que coloquei cobertor suficiente nas meninas?

Respiro fundo. Clara espirra no outro quarto. Sento na cama e espero o próximo. Ele vem. Tá vendo, coloquei pouca coberta… Levanto, vou até o quarto das meninas, saco mais uma mantinha do armário, cubro as duas e antes de voltar para cama, dou uma última espiadela. Sinto inveja do sono profundo que estão mergulhadas. Tão profundo que parecem pálidas e com olheiras. Uma vez comentei isso com Dra. Manoela – minha irmã shiatsu-acupunturista, grande conhecedora de medicina chinesa – e ela me explicou esse fenômeno que faz minhas bonecas parecem meio mortinhas quando dormem: quando entramos em estado de sono profundo, o nosso chi – energia vital – se recolhe também, ao centro do nosso organismo para se recuperar. Nesse momento, nosso corpo fica em absoluto relaxamento. E é na face que mais percebemos sua ausência.

Sei. Deve ser por isso que estou sempre pálida e com olheiras quando estou acordada. Como durmo pouco, meu pobre chi nunca tem tempo de se recolher. O cara vive cansado. Assim como eu.

Enfim, volto para cama. Deito e deixo o corpo pesar na cama que me acolhe. Cama querida… Ela quer que eu durma. Ela sempre quer que eu durma. Me chama não sei quantas vezes todas as noites. Minha mente cansada também quer dormir. Meu corpo exausto também quer dormir. Ótimo, vamos todos dormir. Fechos os olhos. Respiro fundo.

Procuro ficar quieta na cama, quase imóvel. Contendo qualquer movimento que me distraia. Não deixo o corpo mexer. Não deixo nem as pálpebras se mexerem. Mas não consigo conter o globo ocular. Vejo o escuro da direita. Depois o escuro da esquerda. E quando paro para olhar o escuro do centro, vejo nele uma palavra freneticamente piscando. Em cores fosforescentes. No centro do escuro dos meus olhos, emitindo um sinal malévolo, está mais uma vez, a palavra INSÔNIA.

Pronto. Quando essa constatação é feita, o desencadear dela é destruidor. Eu não posso acreditar que estou com insônia. De novo. Mas que droga!

Assumir uma insônia é como assinar um atestado de óbito de uma noite bem dormida. É perder a esperança de recolher o chi, de descansar o corpo, dar um tempinho para alma. Minha irmã diz que eu tenho muito dificuldade de abrigar o shen – alma etérea – porque sou muito ativa, penso demais, tenho excesso de criatividade. Engraçado ela falar de shen. Os índios chamam nosso excesso de pensamento de chenhenhem. Não parecem palavras primas? Culturas tão distintas falando sobre uma mesma coisa.

Seja o que for: shen ou chenhenhem, já entendi que esse nheco-nheco é a base da minha problemática noturna. Mas o que fazer para mudar esse comportamento maníaco-destruidor?

Sou uma pessoa totalmente avessa a calmantes, tranqüilizantes e qualquer ante que me faça dormir quimicamente. Não sei, tenho uma cisma com qualquer remédio de tarja preta. Parece aviso funerário. E se eu me viciar no vodu? Como é que faço depois para curtir um Passiflorine, uma Maracujina? Nada mais disso vai fazer efeito. E no mais, são anos e anos lutando contra a falta de sono. A longo prazo, a medicina vai ser mais nociva do que o próprio cansaço acumulado.

Quando eu era adolescente, me lembro de precisar colocar uma toalha na soleira da porta, para esconder a luz do quarto acesa durante a madrugada. Tudo para impedir que minha mãe entrasse lá pela décima vez para dizer: mas minha filha, será possível que você não vai dormir de novo! Tudo bem. Naquela época eu não dormia antes das quatro. E forçava totalmente uma barra para ter insônia. Como dormir se uma vida inteira clamava por mim? Livros a serem lidos, colagens a serem feitas, poesias a serem escritas sob a noite fresca do luar? Dormir era puro perda de tempo.

Mas depois as filhas chegaram. E o sono passou a ser artigo de luxo. Eu vivia exausta. Porque cuidava delas tempo integral. Mas também precisava de tempo para mim. Então, ao invés de descansar enquanto elas descansavam, eu me metia a escrever, estudar e pintar nas únicas horas que me restavam. Resultado? Estafa. Mas só jogava a toalha depois de um diagnóstico alarmante do médico: ou eu dormia, ou a máquina ia pifar de vez. Foram anos de um cansaço profundo. Absoluto. Avassalador.

Isso praticamente descabela minha irmã. Ela acha que 90% dos meus problemas existem por causa da minha falta de sono. Meus cabelos brancos, minha tristeza, minha dificuldade em processar os conflitos, meu desânimo… isso tudo fala da perda constante da minha essência, que os orientais explicam que uma vez perdida, jamais pode ser recuperada.

Tá, eu sei que faço do tempo moeda de troca. E que se uma madrugada resultar num bom texto, eu realmente não me importo em virar um legume no dia seguinte. Mas também… tem troço mais esquisito do que dormir? Vivenciar essa “pequena morte” todos os dias requer um bocado de confiança na vida. Acho meio surreal passar oito horas de olhos fechados, esticada numa cama, desconectada do mundo, sem controle nenhum sobre nada e ainda por cima, sonhando as coisas mais esdrúxulas que a gente sonha. Pô, coisa de maluco.

Descobri a pouquíssimo tempo que Morfeu era um dos mil filhos de Hipnos, o deus do sono. Assim como o pai, era dotado de grandes asas, que o transportavam em poucos instantes, e silenciosamente, aos pontos mais remotos do planeta. Se eu soubesse disso antes já teria mudado de atitude e teria me esforçado bem mais para dormir toda noite. Cair nos braços de um cara desses? Espetáculo de noite!

A partir de hoje vou mudar radicalmente minha estratégia para dormir. Nada de pijaminhos macios e chá de erva-cidreira. Vou deitar de camisola bonita e perfumada. Nada de perder a chance de ir para cama como um deus grego e conquistar o coração daquele que pode ser – e eu nunca soube – a maior inspiração para as minhas criações literárias: Morfeu, o cara que tem o poder de revestir de sonhos a imaginação dos mortais adormecidos. Loucura!

A Revelação da Tríade

triade

Sensibilidade, espiritualidade ou imaginação?

Há uns dias atrás tive um insight incrível. Um estalo desses que a gente vive poucas vezes, mas quando vive, fica com a impressão de que entendeu quase tudo sobre a vida. A iluminação aconteceu no Mergulhão, aquele lugar sinistro da Praça XV.

Eu saí das barcas e muito a contra gosto desci as escadarias para pegar um ônibus para Tijuca. Geralmente prefiro caminhar até o metrô, mas nesse dia estava muito atrasada e resolvi enfrentar a fedentina. Foi descer as escadas para começar a sentir uma pressão no peito. Respirei fundo. De concreto ali havia a penumbra do lugar, o gás carbônico dos ônibus apressados e o semblante infeliz dos que esperavam sua condução. Mas eu… eu comecei a sentir um monte de coisas.

Primeiro foi o enjoo. Aquele bafo quente dos carros quando se mistura ao cheiro de xixi e cocô de gente é um odor nauseabundo. Mas para o meu espanto, ninguém estava com cara de quem ia vomitar, só eu. Tudo bem. Sigo em frente. Do enjoo vem uma tontura. Uma opressão no peito que eu não sei direito de onde vem. Não consigo entender se é uma sensação, ou um pressentimento. Mas é um peso. Eu não ouço vozes, nem vejo nada demais, mas tenho uma certeza estranha de que outros tipos de seres perambulam por ali. E por último – certamente já sob efeito alucinógeno de todos os meus sentidos invadidos – começo a imaginar tudo que já deve ter acontecido naquele lugar: cenas de violência, crime, tensão, medo… afinal ninguém imagina uma cena de amor num subterrâneo sombrio de filme de terror.

Enfim, tomada por essa mistura esdrúxula de sentimentos, me veio a súbita pergunta: será que eu tava passando mal por uma extrema sensibilidade, por uma espiritualidade não desenvolvida (e por isso vítima de possíveis obsessores presentes) ou por um afogamento de ideias que toda aquela situação me fez criar na cabeça em menos de cinco minutos?

Eureca! Foi nesse instante que milhares de fichas começaram a cair. Tipo Las Vegas.

Sou a construção de um ser baseado na conjuntura de uma santíssima trindade: sensibilidade, espiritualidade e imaginação. A vida me invade e eu a filtro nessa lente onde se misturam impressões sensitivas, espirituais e imagéticas do mundo. Sou mega sensível,  tenho antenas que captam coisas do outro mundo e para completar, uma cultura cinematográfica de arrepiar. Pronto, fechou. Não preciso de mais nada para chegar a uma locação propícia e pirar o cabeção.

Essas confirmações são mágicas porque nos fazem compreender um pouco mais sobre nós mesmos. Esse tal de insight é uma revelação mística. Um presentão do inconsciente para gente entender um pouco melhor sobre a gente mesmo. Poxa, ajuda muito saber que sou simplesmente um conjunto exagerado de absorção do mundo. Um alívio para quem sempre se julgou meio trelelé. Não é fácil não gente, ser assim… super suscetível ao mundo sutil e ter criatividade saindo pelo ladrão.

O fofo do Caetano já dizia que “cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”. Hoje eu entendi que não preciso mais sentir tanta dor por ser essa coisa esquisita que eu sou. Só preciso aceitar “o sentir”. E rezar. E escrever. Afinal, a tríade pode se revelar nos lugares e nos momentos mais esquisitos do dia. Nunca se sabe.

Tempos esvaziados

transito

Tem uns tempos complicados na vida que ou a gente assume a necessidade de solucioná-los ou assume a necessidade de uma postura zen-budista perante eles. São os tempos esvaziados. Eles acontecem praticamente todos os dias da nossa existência. Fazem parte da rotina, do feijão-com-arroz, do escovar os dentes. Não tem como escapar. É o caso do tempo que esperamos um elevador. Pensei justamente nesse texto hoje depois do oitavo minuto sozinha na garagem, olhando a porta do elevador fechada. Eu já tinha tentado meditar, fechar os olhos, esvaziar a mente, respirar profundamente, ir fundo ao néctar do meu silêncio interior, mas não consegui. A irritação pela impressão de tempo perdido foi maior.

A mesma irritação me abate quando sou pega de surpresa e calho de ter que ir ao banco sem ter nada para ler dentro da bolsa. Banco é sinônimo de fila. E fila em banco é sinônimo de tempo esvaziado. Muitas vezes tento ser positiva, aproveitar para observar as pessoas, essa absurda diferença que há entre nós – indivíduos de mesma espécie – e todas as nossas curiosas particularidades. Crio uma história para cada um, depois vou juntando os enredos e tudo acaba em novela. Mas mesmo nessa compulsão-criativa-instantânea, esse ato desesperado de aproveitamento de tempo nada mais é que um retrato de tempo esvaziado também. Como se o próprio tivesse sido mesmo consumido sem propósito. Queimado. Desperdiçado. Jogado fora.

Tempo perdido em trânsito engarrafado então, não preciso nem falar. Todo mundo já falou, já sofreu, sofre e não há nada que se possa fazer. A inexorável realidade dos tempos modernos. Milhões de carrinhos, apertadinhos, engavetadinhos num gigantesco quebra-cabeça de ruas. E as pessoas lá dentro pensando – o que é mesmo que eu estou fazendo aqui? – e olha que pode ter boa música, boa companhia, snacks para comer, coca-cola geladinha que alguém acabou de te vender… nada aplaca a dor do tempo esvaziado.

A danação não tem a ver com o tempo que escapa. Mas com o que foge sem sentido. Gasto muito tempo olhando o céu quando ele está daquela azul de chorar. Olhando o que o sol faz com as coisas de manhãzinha. Observando Clara pintar com cotonete, a cebola fritar na manteiga. E as coisas que tem água então, nossa… gasto um tempo que nem sei. Nada melhor do que ver cachoeira cachoeirar. Até aquelas fontes de água em casa esotérica me hipnotizam. No ato. Posso ficar lá por horas vendo a água fazer nada.

A questão é que esse tipo de coisa não esvazia meu tempo. Mas preenche ele de um monte de riqueza. Há uma enorme diferença em ficar olhando a porta do elevador fechada esperando ele resolver chegar e olhar um arco-íris se desfazer no céu. São tempos completamente diferentes. O primeiro é como estar olhando a areia da ampulheta cair, a outra é ver o milagre da vida se expandir. Por que eu não subo de escada? Ah leitor, eu não sou uma atleta. E no mais, subir escada também é um tempo esvaziado. A não ser que elas tenham enormes janelas dando para o mar.