Crescendo

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Foto Clara Meira

Minhas pequenas estão crescendo e cada dia que passa está ficando mais difícil explicar a vida para elas.

As questões estão se aprofundando. As dúvidas se misturando a medos desconhecidos. E por mais atenta que eu esteja, por mais calor que haja em meu colo, não há nada mais apavorante do que descobrir a efemeridade da nossa existência.

Minha avó paterna partiu há alguns dias. Minha avó materna está morrendo. E o assunto da morte invadiu nossa casa com a força de um furacão. Foi preciso uma rodinha no chão de mãos dadas, um minuto de silêncio e um pequeno altar no centro da nossa mandala de perninhas cruzadas – com flores, incensos e velas – para eu ter coragem de começar a falar sobre o assunto.

A vida é estranha e maravilhosa. Daqui nada levamos a não ser o amor que amamos. As relações que conseguimos construir, o bem que fazemos aos outros. Mas se temos uma missão a cumprir, estaremos vivos até que essa missão se cumpra. A morte é só uma parte dessa jornada que a gente vive. Somos energia como a luz da lâmpada, só que no nosso caso, essa energia ilumina nosso corpo e dá força para gente falar, pensar, comer, viver. Para fazer com que a gente experimente estar aqui nesse planeta – nesse mundo cheio de gente – preparados para fazer um monte de coisas legais. E as coisas não tão legais a gente vai aprender a desviar. Só isso. A vida é uma experiência.

– Mas e quando um bebezinho morre mamãe – diz Catarina, como pode alguém ter uma missão tão pequena?

A vida é estranha e maravilhosa. E cheia de mistérios e perguntas que jamais serão respondidas. O que a gente precisa é ao longo da vida, ir entendendo aquilo que nos ajuda a viver. E ter uma bolsinha mágica cheia de formas para gente conseguir lidar com o mundo. Mamãe por exemplo, não gosta de meditar, rezar e cantar esses mantras engraçados? Essas coisas estão na minha bolsinha. Porque me ajudam a caminhar sem medo. A ter confiança. A entender que mesmo sem explicação, a vida é estranha e maravilhosa.

Minhas filhas estão crescendo. Mudanças estão acontecendo em seus corpinhos e em suas almas. Até o amor começa a surgir de uma forma diferente para elas. Clara me faz perguntas complexas sobre ele. Como explicar que o amor é sublime, mas também pode machucar? Como se prepara alguém para o caminho do amor compartilhado? Não há fórmula segura para a mais sagrada das experiências humanas. Mas isso eu não vou poder explicar para elas. Elas terão que descobrir sozinhas.

Catarina anda muito ansiosa. “Estou confusa, mamãe. Porque quero tanto da vida, quero tantas coisas ao mesmo tempo. Minha cabeça está cheia e eu não consigo relaxar.”

Ah se eu tivesse descoberto as lições de Eckhart Tolle aos seis anos de idade não teria em meu currículo nenhuma crise de ansiedade ou pânico. E mando na lata, amando a ideia de ter pelo menos uma solução para um probleminha seu:

Filha, eu vou te ensinar um segredo que vai te ajudar para o resto da vida. Não existe de verdade nada além do que a gente está vivendo agora, como por exemplo, essa conversa que a gente está tendo. Ou o sorvete que você tomou agora há pouco. O que aconteceu ontem e o que pode acontecer amanhã não importa muito. Só o que existe de verdade verdadeira é esse momento de agora, que a gente vive no presente.

“Por isso que você vive dizendo que o presente é um presente, mãe?”. Isso aí, pequena. Isso aí. A gente acha que é complexo e que eles não vão entender… Mas eles entendem. Entendem tudo. Em profundidade.

Minhas filhas estão crescendo. E os pesadelos estão cada vez mais constantes, assim como as perguntas e as incertezas. Como explicar a estas duas pequenas criaturas que infelizmente não há nada que extinga o nosso imenso vazio existencial? E que esse mistério faz parte do pacote e por isso a vida é estranha e maravilhosa? Elas já sabem que há dentro de cada um de nós um enorme buraco. E que a gente vai passar a vida tentando preenchê-lo de alguma forma. Buscando uma vida legal, amando e respeitando os outros, construindo um mundo que seja de verdade para gente morar. Não há dúvida que existem um milhão de formas de ir preenchendo esse buraco. E é esse o esquema mágico que eu preciso aprender com elas, quer dizer… que eu preciso ensinar para elas.

Minha menina do arco-íris

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Minha pequena acordou triste hoje.

Tomou café e ficou quietinha num canto da casa, sem sorrir, sem fazer bagunça, com o olhar perdido em algum lugar. Perguntei uma, duas, outras tantas vezes o que tinha acontecido para ela ficar tão triste. Ela não sabia responder.

Desmarquei todos os meus compromissos. Disse para ela: Hoje você vai passar o dia comigo, mocinha. Ela levantou os olhinhos e sorriu. Um sorrisinho mixuruca, mas sorriu.

Fomos ao cinema, comprei pipoca gigante, balinha, chocolate. Depois saímos de lá e ela se queixou de dor na barriga. A levei de cavalinho pelo shopping até uma sorveteria. Como eu imaginava – ela estava com dor – mas não tanta dor a ponto de negar um sundae.

Mamãe, quero ir para casa.

Fomos. Chegando ela se deitou na cama e continuou quieta. Comecei a ficar realmente preocupada. Tirei do coração uma última cartada para tentar alegrá-la. Já sei filha, vamos desenhar…

Peguei um monte de papel, lápis de cor, pilot, meu super bloco de papel canson, e sim… meu adorável estojo de giz de cera pastel que ela adora. Sentamos juntas e começamos a desenhar. Em silêncio. Eu tinha certeza de que alguma coisa ia acontecer ali. Ou ela ia se abrir comigo ou os próprios desenhos iam me dizer alguma coisa sobre o que estava acontecendo.

Devagarinho, ela foi puxando papo. Gostava mais de falar mal dos meus desenhos do que de prestar atenção nos dela. Começou a rir das coisas horrendas que eu desenhava. Até que disse baixinho: Mami, desenha um arco-íris vai… é o que você faz de melhor…

Obedeci imediatamente. Peguei as cores no giz pastel, separei uma folha em branco e reparei que ela fez o mesmo. Então juntas começamos a desenhar, cada uma, o seu arco-íris. Óbvio que eu não agüentei e comecei a cantarolar somewhere over the rainbow… e ela comigo… até que me deu uma coisa e eu disse: Quer saber? Vamos fazer esse arco-íris nas nossas paredes filha! Você no seu quarto e eu no meu.

Foi então que a mágica aconteceu.

Coloquei para tocar bem alto a música para que as duas ouvissem, cada uma em seu espaço. Ela lá projetava fervorosamente suas cores. E eu, cá no meu canto, pintava o meu arco-íris assistindo emocionada o que acontecia com ela. Minha pequena foi se transformando em luz em cada cor que pintava na parede. Do roxo para o vermelho, uma risadinha. Do vermelho para o laranja um grito: como é que tá indo aí? Do laranja para o amarelo ela veio correndo e me deu um beijo. O seu tá lindo, mãe! Do amarelo para o verde… uma gargalhada… a gente tá ficando toda colorida filha… do verde para o azul, ela começou a assobiar no quarto. Cheguei devagarinho e a vi, parada em frente à sua majestosa obra de arte, de olhos brilhantes e a alminha lavada.

Foi quando ela me viu na porta, correu pra me abraçar e disse: Mãezinha, põe a música de novo… vamos dançar?

Adeus, Zizi

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Vó,

Se eu agora fechar os olhos posso me transportar para um fim de tarde de chuva na sua casa em Teresópolis, onde eu pequenininha deitava na rede da varanda e ouvia por horas e horas a fio você tocar seu amado piano. Me lembro como se fosse hoje a sensação de plenitude que eu sentia naqueles momentos mágicos ao teu lado. Me lembro do som da chuva se misturando às notas melódicas das suas canções, me lembro do cheiro da terra que brotava daquela imensidão verde de mato molhado, me lembro da emoção que me causava aquele conjunto perfeito de impressões do mundo… onde tudo, tudo fazia sentido e eu me sentia tão perto de Deus.

Minha avó querida,

Você ontem conseguiu partir, depois de longos nove meses de sofrimento no hospital. Finalmente pode iniciar sua jornada pelo caminho azul, como dizemos no xamanismo. Depois de noventa e três anos de luta pelo caminho vermelho – o caminho da vida – ontem você conseguiu finalmente fazer sua passagem e atravessar para o outro lado do rio. Estou feliz por você, querida. Estamos todos aliviados por saber que não vai mais precisar sofrer.

Hoje estou aqui mergulhada em memórias e não consigo parar de pensar na saudade que sinto de você, Negucha. Saudade que sinto há mais de vinte anos, vó. Mais de vinte anos. Nós morremos uma para a outra no dia que olhou nos meus olhos e não me reconheceu mais. Há mais de vinte anos que estamos todos te perdendo um pouco a cada dia. Te perdendo para essa doença injusta e ingrata. Te perdendo na névoa das tuas próprias lembranças. Não há nada mais doloroso do que perder uma pessoa em vida. Foram anos duros. De muito sofrimento, provações, perdas e saudade, muita saudade.

Mas hoje, hoje eu só conseguia lembrar de você e da sua elegância, do seu perfume, dos kaftans que usava com aqueles chinelinhos de salto. Você foi a pessoa mais elegante que já conheci, vó. Elegante e prafrentex. Me orgulhava em dizer para os amigos na escola que minha vó tinha se divorciado numa época que ninguém se divorciava e tinha sido o braço direito do advogado mais poderoso de São Paulo! Pensar que hoje ele é considerado o maior escritório de advocacia da América Latina e que vocês começaram juntos, na época da guerra, quando ele te contratou como datilógrafa aos dezoito anos de idade… A vida é estranha e maravilhosa, não é querida? Posso apostar de que foi ele que te recebeu no céu. Estou certa?

Perdi a conta da quantidade de vezes que fomos te visitar no Vale São Fernando, mamãe, Manô e eu, naquele possante Fiat 147 amarelo. Lembra disso? Eram finais de semana de muita comilança, filmes, sol na piscina no verão e histórias deliciosas no inverno, pertinho da lareira. A mesma que guardava pendurada as minhas preciosas meias de natal. Não havia nada mais extraordinário em dezembro do que descer as escadas correndo de manhã para ver que tipo de doces tinha deixado o Papai Noel na madrugada anterior.

Mas eu cresci e me tornei uma adolescente solitária e muitas vezes preferi passar o fim de semana com você do que com qualquer outra pessoa. Eu pegava o ônibus na rodoviária do Rio e você me buscava na rodoviária de Terê. Lembra? Eu entrava no carro, te dava um abraço apertado e seguíamos caladas os longos quilômetros que separavam a cidade do Vale. Nós nos entediamos em silêncio. Nos amávamos em silêncio. Você me ensinou tantas coisas sobre a vida. Sobre música, sobre arte, sobre a solidão.

Hoje passei o dia contigo, vó. Celebrando aqui dentro da minha alma todos os momentos maravilhosos que vivemos juntas. E o que fica é um enorme sentimento de gratidão por ter podido durante alguns anos da minha existência, partilhar contigo, a tua luminosa existência.

Que minhas palavras possam voar com o vento e chegar até o céu. Onde quer que você esteja tenha certeza do quanto foi amada.

E quando for o dia da minha partida, por favor Zizi, venha me buscar.

Com todo o amor,
para sempre
da sua neta
Tati

A vida, como ela pode ser

freehugs

Vinha andando distraída pela rua, paquerando de longe a barraquinha de milho verde, quando dou de cara com um bando de mímicos, em plena Praça General Osório às seis horas da tarde. Eles pulavam de um lado para o outro, abordando as pessoas com um simples cartaz que dizia:

ABRAÇOS GRÁTIS

O pessoal que vinha na minha frente começou a resmungar. Uma senhora correu para atravessar a rua mesmo com o sinal aberto. Um homem com raiva deu meio volta e pegou a direção contrária do que ia.

Eu abri logo um sorriso. Essa eu não podia perder. De longe, abri os braços para uma moça magrinha que tinha um sorriso gorducho. Ela de longe, fez o mesmo movimento que o meu. Quando nos encontramos, ali no meio da rua, nos abraçamos como se fossemos velhas conhecidas. Ficamos assim um tempão. Foi quando ela me disse baixinho no ouvido:

Ô minha filha, Deus te abençoe.

E eu pensei comigo: está acabando de abençoar!

Lóbulos

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Eu tenho paixão por lóbulos.

Não sei de onde vem esse amor, mas é uma coisa muito esquisita. Pessoas reparam em dentes, olhos, peitos, bundas. Eu reparo em lóbulos.

Nunca me esqueço do lóbulo de um senhor que vi uma vez no metrô. Dizem que na velhice nossas orelhas crescem. Mas na verdade o que acontece é uma flacidez da pele que acaba causando um alongamento do tecido. Eu pesquisei sobre isso. Justamente naquele dia que fiquei hipnotizada com o maior lóbulo que vi na vida. O velhinho era do tipo Papai Noel: gordinho e fofinho. Tinha os cabelos brancos, um sorriso largo e umas orelhas grandes. Mas os lóbulos… os lóbulos eram como almofadas penduradas nas orelhas. Uma imperfeição extraordinária. Macios, vermelhos e gordotes. Tive que me controlar. Afinal de contas, minha paixão não se limita a admirar, o que eu quero mesmo é morder. Se aquele velhinho fosse meu amigo eu certamente teria lhe pedido para dar uma mordida.

Ainda bem que tenho filhas que me deixam morder seus lobulinhos. Todas as noites elas rolam de rir desse estranho hábito da mamãe. E adoram. Tomara que me deixem fazer isso até ficarem velhinhas.

Caravana urbana

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Transportes coletivos são uma experiência antropológica fascinante.

Um laboratório perfeito para observação e tentativa de compreensão dos costumes humanos. Tem muita gente que detesta pegar ônibus e metrô. Eu adoro. É o único lugar onde a gente tem a chance de viver determinadas situações. É claro que eu prefiro metrô. Os ônibus no Rio de Janeiro são calorentos, barulhentos e fedorentos. Muitos “entos” para uma coisa só. Já metrô é outra história. Tem ar condicionado, é mais seguro, confortável e ainda por cima tem aquela musiquinha ambiente nas estações. E a pinta de trem europeu. Acho chique. É o meu favorito.

Já vivi de tudo no metrô.

Outro dia peguei o trem na Carioca para ir à terapia. Faço uma jornada para ir até lá – já que moro em Niterói e a terapia é na Tijuca – e por isso tenho que pegar ônibus, barca e metrô. Faz parte do processo. A estação da Carioca geralmente está cheia, a qualquer hora do dia. Só que nesse dia, não sei por que, a coisa tinha colapsado. Gente saindo pelo ladrão. Para sair e para entrar. O que eu acho curioso é a postura das pessoas diante da epopéia para se entrar no vagão. Não, porque elas não estavam entrando. Estavam se encaixando, como sardinha em lata, espremidas umas pelas outras, desesperadas em não perder a viagem. E o pior… agindo normalmente diante daquela situação medieval. Gente, o que é isso?

Eu fui, mas fui porque estava muito atrasada. Só que na hora de entrar, fui imprensada entre vários corpos. Pronto, bastou a porta fechar para me dar uma vontade desesperada de rir. Vejam bem: na minha frente, grudado no meu nariz, estavam os peitos gigantescos de uma negona, trabalhados num decote sensual e abundante. À minha direita, a catinga inebriante de um sovaco cabeludo de um ser com camiseta cavada. À minha esquerda, um executivo seríssimo de paletó e gravata e atrás, bem atrás de mim – grudado na minha bunda – um velhinho desdentado para lá de safado que não parava de me sarrar. Não dá para se levar a sério uma situação dessas.

Tá, eu sei que a ocasião faz o ladrão e que 90% das pessoas ali não tem escolha. Mas o que me choca é como que as pessoas reagem àquela situação. É surreal. De repente, se cria entre elas uma intimidade forçada. Elas estão grudadas umas nas outras, cafungando o pescoço de um, encostando suas partes íntimas no outro, num amasso grupal sufocante, onde não há como fugir. É uma catarse comportamental. Um apogeu sensorial. E todo mundo vivendo isso com cara de pudim. Como é que pode?

Já vivi coisas extraordinárias no metrô.

Uma vez uma moça começou a explicar para a vizinha ao lado, sua amiga, como se fazia um ensopadinho de frango com ervas. Nos mínimos detalhes. Só que eram seis horas da tarde e provavelmente 99% das pessoas ali estavam famintas. Eu reparei. As pessoas começaram a olhar para ela e imaginar cada um daqueles sabores… e a sentir o cheiro da cebola que você frita no azeite, depois coloca o frango… nossa senhora! O povo ficou desesperado com o relato. Teve gente até babando.

Em metrô se ouve de tudo. Não é só receita não. Há discussões filosóficas, políticas, religiosas. Casal discutindo relação. Gente contando segredo achando que não tem ninguém ouvindo. E a diversidade de cheiros? Sentar do lado de alguém cheiroso para mim é quase como ver arco-íris depois da chuva, uma loteria. Adoro. Fico lá curtindo aquela paraíso e por dentro agradecendo o bom gosto do vizinho. Mas nem sempre tenho essa sorte.

Com o olfato apurado que tenho, faço viagens que são um verdadeiro tormento. Sinto de longe os sovacos vencidos, os bafos matinais, a calça jeans do menino que não secou direito, a naftalina no casaco da velhinha. Mas é claro que não há nada, absolutamente nada pior, do que quando alguém solta um pum.

Eu vivi uma catástrofe dessas outro dia.

Estava presa entre quatro corpos quando senti um ventinho nefasto vindo debaixo. No primeiro momento me deu uma onda de enjôo. Depois quis olhar bem para cada um dos suspeitos do crime. Mas não adiantou. Depois do pum, cada um olhou para um lado. Tipo “não estou sentindo nada”. O bom é que do enjôo e da raiva, eu pulei logo pro estágio divertido que é a vontade incontrolável de rir. Quem sabe um dia, eu ainda consigo ter a cara de pau de perguntar bem alto para todo mundo ouvir: “Pessoal, fala sério, quem peidou?”

Mas o melhor que se pode viver dentro de um metrô é uma paquera. Uma paquera inesquecível.

Ele tinha o braço todo tatuado, mas o que me chamou a atenção no desenho era o Buda, colorido e sorridente, perto do cotovelo. Estávamos todos em pé, segurando aquela barra de metal entre as saídas do vagão. Eu, ele e mais umas quatro pessoas. Nossos braços, esticados, formavam uma flor humana perfeita. Eu olhei para ele. Ele me olhou. E como nas frações de segundo mágicas que acontecem às vezes, naquele instante, nos encantamos um pelo outro. Só pelo olhar. Só por todo o universo existente em cada um de nós que trocamos naquele olhar. Essas coisas difíceis de explicar.

Ele não era bonito. Meio baixinho. Provavelmente, tinha acabado de sair do banho, porque os cabelos – bem pretos, encaracolados – ainda estavam molhados. Aquela primeira olhada tinha me gelado por dentro. Isso é curioso numa paquera. Milhões de pessoas trocam olhares por dia em todas as estações de metrô do mundo. Porque às vezes a gente olha para uma única pessoa e sente um troço esquisito por dentro? Tomamos coragem e nos olhamos de novo. Dessa vez por uns segundos a mais. Pronto. Foi o que bastou para eu ficar mole. Meu coração agüenta pouco esse tipo de emoção. Fora que eu fico meio envergonhada com a platéia. A flor de braços já tinha sacado nossos olhares. Óbvio! Tava saindo faísca. Peguei o celular para disfarçar. Ele fez o mesmo. Pensei comigo: que pena que não existe um bluetooth automático para se captar o telefone do vizinho… Ele deve ter lido meu pensamento, porque sorriu na mesma hora. Um sorriso Colgate, cheio de dentes lindos e brancos. Olhamos para o chão. Depois para o céu, para todas aquelas estrelas que tinham surgido ali sobre nós dois. Mais uma estação se passou. De repente, ele me olhou sério como se quisesse me dizer qualquer coisa. O trem parou e ele foi se distanciando de mim. Quando eu vi, já estava do lado de fora do trem. A porta fechou e a gente continuou se olhando. Se despedindo pelos olhos, como se fossemos um casal apaixonado que está se separando pela primeira vez.

Foi quando eu ouvi a voz de um senhor que estava na minha frente dizer: deu bobeira menina, devia ter saltado com ele e trocado telefone. Olhei bem para cara do sujeito sem acreditar no que ouvia. Será que eu tava sonhando? Nunca esqueci aquele dia. E se ele fosse o amor da minha vida?

Surreal? Não. Isso é coisa de quem freqüenta caravana urbana.

Cabelos brancos

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Tenho fascinação por gente idosa. Uma admiração mesclada com respeito tão forte, que quando cruzo com algum velhinho na rua, a vontade que sinto é de lhe fazer uma reverência. Olho impressionada para aquele ser que passa e me pergunto há quanto tempo estará ele caminhando. Quanta vida não viveu, quantos problemas enfrentou, em quantas encruzilhadas não deve ter sofrido a dura tarefa da escolha. Não estou falando de meses nem anos. Falo de décadas. Experiências profissionais. Emocionais. Casamentos. Filhos. Viagens. Perdas. Frustrações. Meu Deus! Eu tenho 33 anos e as vezes me sinto tão cansada. Imagine se eu viver até os 99? É toda a minha vida, mais o dobro de tudo que vivi. Considerando que os primeiros anos foram só diversão, 66 anos pela frente me parecem uma história sem fim.

Outro dia cruzei na rua com um senhor que já devia ter seus oitenta e tantos anos. Vinha de bengala e caminhava com calma e elegância. Tinha a cabeça toda branca e estava muito bem vestido. Olhou para mim, abriu um enorme sorriso, me cumprimentou com um educadíssimo “boa tarde” e seguiu em frente – se tivesse um chapéu certamente o teria tirado da cabeça. Fiquei com tanta vontade de convidá-lo para tomarmos um chá… Imagina quantas histórias maravilhosas não terá esse homem para contar? Que diferencial tem esses cavalheiros… Meu feminismo vai por água abaixo quando um homem me abre a porta do elevador ou me cede o lugar para sentar. Me sinto uma dama. E me derreto com essa gentileza que os homens da minha geração perderam.

A questão é que não posso ver um ancião sem considerá-lo um verdadeiro herói. Um guerreiro espiritual. Um coração batendo, ininterruptamente, durante toda a existência! Já imaginou o que é isso? Deve ser muito difícil para um pessoa que nasceu com os bondes ver o mundo do jeito que está. Eles foram espectadores de muita degradação e não puderam fazer nada. É claro que a modernidade trouxe muitos benefícios para a humanidade. Mas imaginemos como deve ser estranho aos olhos de quem já viveu quase um século, toda essa espantosa transformação da realidade. O caos se instalou muito rapidamente. O universo dos meus avós era completamente diferente do que vivemos no presente. É como se eu vivesse hoje e velhinha estivesse no cenário de Blade Runner. Nada simples.

A proximidade da morte também não deve ser fácil. Não ter todo um futuro pela frente. Estar na tal fase de descida da vida. Não gosto dessa imagem de subida e descida. Prefiro pensar na metáfora de uma escada que se sobe a vida toda e que quando acabam-se os degraus, é sinal de que chegamos. Seja lá onde for. Chegamos.

Eu vou gostar de ser velhinha. Ter uma vida toda de histórias para contar. Filhos e netos para amar. Amigos de toda uma vida que também estarão velhinhos como eu. Não quero fazer plástica a não ser que minhas pálpebras estejam me impedindo de continuar a ver o mundo. Idealizo minha velhice como um tempo de calmaria interior. Uma serenidade que tomou o lugar da ansiedade que quase me matou na juventude. Um tempo de ter mais tempo. Ou ao menos, uma relação diferente com o tempo. Curtir o sabor divino da sabedoria. Olhar no espelho minhas rugas e ter a certeza de que tudo que fiz, fiz da melhor maneira que pude.

 

O Capô da Sorte

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É o capô do meu carro que tem me devolvido a esperança na raça humana.

Há uns meses atrás, num trânsito tartaruga na Lagoa, bati a 20 por hora no carro de um velhinho. Fiquei para morrer. Foi um baita susto para mim, imagine para ele. Desci correndo para me desculpar. Sou daquelas que assume a culpa imediatamente mesmo se não tenho culpa de nada. Nesse caso tinha. Bati porque Catarina tinha dado um grito, eu tinha levado um susto e intuitivamente, tinha olhado para trás. Em um segundo, o carro da frente freou e o meu entrou na traseira dele. É mais ou menos assim que as coisas acontecem.

Graças a Deus no carro do velhinho não tinha acontecido nada. Só a esposa dele que tinha ficado meio pálida com o tranco. Pedi mil desculpas. Expliquei da Catarina. Perguntei se estava bem. Ela acabou sendo gentil com a minha gentileza de ir até lá pedir perdão. Fez um pequeno sermão de como, em hipótese alguma, devemos olhar para trás enquanto as crianças falam, gritam ou brigam. Tudo deve ser feito pelo espelho retrovisor. Me perguntei se ela teria filhos. Provavelmente não. Mas ouvi resignada. Era o mínimo que podia fazer.

A princípio meu carro parecia ter saído intacto da colisão. Também tinha ficado trêmula, mas pensar nessa despesa, me fazia tiritar. Foi quando ouvi a primeira buzinada frenética do carro ao lado dentro do Túnel Rebouças. Era um homem gritando que o capô estava aberto. Assim que vi um posto, parei. O frentista abriu, analisou e deu o diagnóstico. Tá fechando senhora, mas o capô empenou. Que saco.

Na semana seguinte levei ao mecânico. O orçamento parecia piada. Mil pilas só para desamassar. Tadinho do Billy – esse é o nome do nosso Uno, Billy Ray – talvez numa outra vida eu fosse consertá-lo. O que eu não previa era que o não-conserto do capô fosse me comover tanto.

Passou a ser uma rotina nas nossas vidas. Já temos um discurso pronto. Em média, mais ou menos umas cinco pessoas por dia, nos avisam aflitivamente da abertura do capô. Se por acaso eu vou mais longe, essa estatística dobra.

A solidariedade das pessoas é uma coisa extraordinária. Elas não deixam passar. Tem gente que buzina, grita, acena com os braços, reduz a marcha, abaixo o vidro do carro correndo, faz de tudo por uma comunicação imediata. A abertura de um capô de carro em movimento pode se transformar num acidente fatal. E é isso que deixa todo mundo de cabelo em pé.

Clara e eu colecionamos sorrisos para essa gente bacana. Sou eu que costumo falar, mas às vezes ela se antecipa. Coloca a cabecinha para fora, espera o recado e com o sorriso mais lindo do mundo, tranqüiliza a pessoa. Se preocupa não, moço. Tá empenado. A gente espera o alívio do vizinho e agradece o aviso. Até Catarina já decorou o discurso.

Eu não consertei o Billy por fala de dinheiro. Agora é a gente que não quer mais consertar. É um presente assistir de perto, todos os dias, a sorte batendo no nosso capô.

Simpatia é Amor

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Eu estava na fila do banco. Fila de banco geralmente é um lugar perigoso. Se você der mole, pode levar uma mordida de alguém. As pessoas, que estão sempre com pressa, na fila do banco estão insuportavelmente apressadas. Bufam de minuto em minuto a impotência de não poder fazer nada contra o tempo que corre e a fila que não anda.

Eu, que não sou boba nem nada, sempre levo alguma coisinha para ler. Não sei se para me entreter ou se para me salvar do mau humor do vizinho ao lado. A questão é que nesse dia eu estava lá na fila do banco e mesmo tendo em mãos um artigo interessantíssimo sobre formigas para ler, de tempos em tempos, levantava a cabeça para observar as pessoas. Se tem uma coisa que eu adoro fazer é observar as pessoas. Nos mínimos detalhes. E quando tenho tempo, ainda invento uma história para cada um. Pois bem. Nesse dia enquanto eu levantava a cabeça, a moça que tava na minha frente na fila, se virou e olhou para mim. Trocamos rapidamente um olhar e do nada – do nada mesmo – ela me abriu um sorriso enorme, desses que tem dentro um sol inteiro brilhando.

Aquele sorriso me derreteu. Inundou minha alma de um sentimento tão puro, tão profundo, que eu devolvi a ela o melhor sorriso que podia, o maior que tivesse no meu repertório de sorrisos. E naquela fração de segundos ficamos daquele jeito, trocando uma espécie de amor incondicional, que só existe em gente que tem a capacidade de amar dentro de peito.

De todas as qualidades do ser humano, simpatia ainda é uma das que mais me espanta. Tenho verdadeiro fascínio por gente simpática. Porque é tão genuíno. Tão gratuito. E ao mesmo tempo tão generoso.

Depois que a moça se virou, eu fiquei olhando de rabo de olho para ela. E pensando, o que faz uma pessoa ser assim? Educação? Índole? Temperamento? Será que as pessoas que são sempre simpáticas estão obrigatoriamente de bem com a vida? Não creio. Me lembro de uma vez ter ouvido um dos elogios mais sinceros que já ganhei na vida. Foi de um porteiro, o Luis. Ele disse assim: “Dona Tati, faça chuva ou faça sol, está sempre sorrindo. Eu sei que tem dias que a senhora está triste. Mas mesmo triste, tem sempre um pouco de doçura para nos dizer bom dia.” Quem agüenta com uma coisa dessas? O dia que ouvi isso do Luis tive vontade de chorar.

Acho que simpatia é uma coisa que a pessoa nasce com. Não é nada que se possa adquirir com o tempo ou moldar na própria personalidade por simples desejo. Simpatia é um dom. Uma dádiva concedida pela natureza que se espalha pelo mundo por absoluta osmose comportamental. O que faz uma pessoa assobiar na rua? Dar passagem para você entrar primeiro? Te abrir a porta do elevador – e mesmo que esteja no fim de um dia muito difícil, ainda assim – lhe dar um boa noite sonoro e verdadeiro? O que faz uma pessoa, mesmo sem te conhecer, te oferecer um sorriso ou uma ajuda para qualquer coisa que seja?

Simpatia que é prima da gentileza que é prima do amor. Tá tudo no mesmo pacote. Queria oferecer essa crônica àquela moça da fila no banco. Que eu nunca mais vou encontrar, nem sequer esbarrar. Mas que me ensinou profundamente o valor que a vida tem, quando a gente oferece ao outro, o sol que brilha dentro da gente.

Seres marginais

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Ele vinha solitário caminhando pela estação das barcas. Não parecia alegre nem triste. Nem disposto nem cansado. Vinha. E ninguém percebia sua presença. Estava ali, pelo simples acaso de existir, marchando em direção a lugar algum, provavelmente em busca da única coisa que lhe apaziguaria a alma: um restinho de comida qualquer.

Não sei por que as pessoas têm tanta dificuldade de conviver com seres marginais. Não os marginais fora-da-lei, mas aqueles que estão à margem da sociedade. São sempre escorraçados. Mal tratados. Desrespeitados. E o pior é que no fundo, só desejam o ser e o estar invisíveis para justamente não incomodar ninguém. Coitados. Sempre incomodam.

Bom, mas nesse dia, a minha alma justiceira se inflamou na estação das barcas justamente por causa de um ser marginal. No caso, um pombo cinza desses que todo mundo não quer nem passar perto. O pobre estava quieto, lanchando seu biscoitinho num canto, quando veio um sujeito do nada e lhe deu um chute, sem dó nem piedade. Quando vi a atrocidade, saltei para cima do cara como quem parte em defesa de um filhote. Com o coração aos pulos, perguntei aos gritos pro malvado: “Vem cá, o senhor tá maluco? Enlouqueceu?” Ele tava com cara de quem tinha bebido. Com os olhos vermelhos, meio esbugalhados. Esquisito que só. Demorou um tempão para entender minha pergunta.

Mas eu não me intimidei. Fiquei ali parada em frente ao homem, corajosa e feroz, esperando qualquer resposta que fosse para o crime. Me sentindo o Robin Hood das aves. A Evita Perón dos despenados. Mas é claro que o cretino não conseguiu me responder nada. Ficou me olhando com cara de basbacão depois saiu resmungando uns palavrões até desaparecer na multidão.

Procurei meu amigo para ver se precisava de socorro, mas o infeliz já tinha partido. Eles podem ser pacíficos, mas não são bobos. Sinceramente, o que é que leva uma pessoa a dar um toco num pombo? Provavelmente a mesma coisa que leva uma pessoa a colocar fogo num mendigo. Taí. Coitados dos pombos. São a classe-mendigo das aves. Tudo bem, eu sei que eles transmitem doenças e isso já está arqui-comprovado. Mas por isso a gente extermina a espécie feito barata? Trata os pequenos como a verdadeira escória avícola?  E não é justamente o pombo o símbolo da paz?

Será que as pessoas sabem que os pombos tem uma perspectiva de vida na cidade de cinco anos e no meio da natureza de quinze? Será mesmo que elas acham que eles gostam de viver aqui e serem enxotados o tempo todo? Caramba. Aposto que ninguém sabe que os pombos são umas das únicas espécies de aves que formam um par a vida toda. E que quando vieram para o Brasil – eles são de origem europeia, imagine – foram trazidos nos navios portugueses para serem servidos de alimento para a tripulação.

É minha gente, antes de ser considerado uma praga urbana, neguinho comia pombo ensopadinho, igual galinha. Acho-te uma graça.