Luz no fim da sombra

lagrima

“É melhor ser inteiro do que ser bom”
Carl Gustav Jung

E então, de repente, tudo escurece.

E onde havia luz, clareza e leveza, se transforma num quarto escuro, abafado e aflito. A vida é assim, eu sei. Dia e noite. Noite e dia. Luz e sombra. Mas a questão é que quando anoitece dentro da gente é assustador. Já passei por algumas crises de tristeza e depressão. Até de pânico já tive que me tratar. Porque a vida é assim, para quem está vivo. Uma montanha russa nada divertida de controvérsias emocionais. A gente vive porque respira. Porque acorda no dia seguinte mesmo que tenha tomado um calmante. Porque a realidade do lado de fora não respeita nosso sofrimento interno. Porque o sol nasce e não espera a esperança acordar. O mundo gira freneticamente e por mais que em algum momento a gente peça desesperadamente para o mundo parar, ele não pára.

Há uma linha muito tênue que divide a luz da escuridão. Mas para quem já atravessou essa divisa, sabe que do outro lado, há um lugar desconhecido e aterrorizante. Porque este lugar está, exatamente, dentro de cada um de nós. E é nessa sombra que mora tudo aquilo que desejamos guardar, esconder, fingir que não existe. Segundo Jung, a coisa que uma pessoa não tem desejo de ser. E por mais que tentemos usar de todos os subterfúgios externos possíveis, um dia, sem mais nem menos, tudo escurece. E o que havia estado escondido, aparece para nós como um bicho feroz, cheio de dentes afiados e um olhar demoníaco. E passamos a viver um pesadelo mesmo estando acordados. Dizem que quanto mais tentamos conter nossa sombra, mais negra e densa ela se torna.

Durante muito tempo da minha vida tentei driblar meus demônios. Quando a escuridão vinha, eu me escondia de mim mesma sem que ninguém percebesse, num lugar bem quieto e esperava de olhos fechados, o bicho cabeludo passar. Nunca me passou pela cabeça a possibilidade de acender uma vela sobre nenhuma característica nefasta minha que surgisse por ali. Fazer isso como? Com que armas? Com meu otimismo ridículo? Com essa minha fé desconfiada? É preciso coragem para viver. Mas é preciso muito mais do que coragem para enfrentar o que somos. E o pior, enfrentar o que há de mais vergonhoso em nós.

Na minha sombra habitam Tatianas imorais, Tatianas suicídas, Tatianas sem esperança, inflamadas de um rancor dolorido com a vida e com Deus. E a cada vez que anoitece e essas Tatianas surgem, eu choro sem parar, porque tenho muito medo de que um dia, elas tomem conta do que há de melhor e mais puro em mim.

Talvez tenha chegado a hora de acender as tais velas no subterrâneo da minha alma. Acender velas ou tecer palavras incandescentes que possam iluminar meu caminho. Essa coisa de escrever tem me enchido de uma coragem samuraica. Não sei de onde isso vem, mas é gigantesco. Draconiano. Estupendo. É com as palavras que quero enfrentar minha escuridão. Porque é com elas que posso sair inteira dessa caverna sombria que, tantas vezes, me obrigo involuntariamente a entrar. Porque por mais esclarecedor que seja o enfrentamento da sombra, é na luz que geramos vida. É na luz que se vive plenamente. É na luz que se amanhece por dentro.

As Mínimas da Catarina

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Saio do banho, Catarina está sentada no banquinho, tagarelando sem parar.

Dali a pouco, se cala e começa a olhar fixamente para o meio das minhas pernas.

– Mamãe, o que é isso?

– Isso o que?

Sem entender direito, olho para baixo e vejo para onde seu dedinho está apontando.

Abro um pouco as pernas. Ela arregala os olhos.

– Isso aqui filha, é uma parte da pepeca. Chamam-se grandes lábios.

Apavorada ela pergunta:

– E isso morde?

As Máximas da Clara

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Hora de dormir. Quarto escurinho, beijos de boa noite, chamego.

– Mãe, aqui entre nós duas, me explica uma coisa? Por que tem gente que chama o fiófis de cú?

Tive que me segurar para não soltar uma gargalhada e acordar Catarina.

– Ué, deve ser porque é uma palavra pequenininha e feinha, exatamente como ele é.

Dessa vez foi ela que gargalhou. Daquelas gargalhadas que ela dá e a veia do pescoço pula de alegria.

– Eu sei que cú é palavrão, mãe… mas tem algum nome bonito para ele?

– Hum… tem. Ânus.

– Ânus é feio, mãe! Cú é mais simpático.

– Eu sei minha filha. Mas cú é palavrão. A gente não deve falar. É uma tremenda falta de educação.

– Cú não parece palavrão. Parece palavrinha…

Fiquei sem fala. Ela estava coberta de razão. Foi dali que ela começou sua pesquisa linguística antropológica.

– Sei… e qual o nome feio de pepeca?

– Vagina.

– Ah mãe, fala sério. Vagina é o nome técnico. Eu quero saber o palavrão mais horripilante…

Pensei um pouco. Não era justo mentir para ela naquela altura do campeonato. Ela tinha o direito de saber.

– Tá. Buceta.

– Buceta? Mas buceta é bonitinho…

– Clara, pelo amor de Deus minha filha, isso é um palavrão de quinta, não vai sair por aí falando isso e dizendo que fui eu que te ensinei que vão me chamar de louca.

– E se eu chamar minha pepeca só de Ceta, tudo bem?

– Não, não está nada bem. Todo mundo vai saber que é diminutivo de buceta.

– Hum. Então qual é o nome mais lindo para buceta?

– Pepeca filha. Pepeca é lindo.

– E para peru?

– Pinto.

– E pau?

– Pau nem pensar. É muito vulgar.

– Mas por que a gente pode chamar o peru pelo nome do bicho, mas não pode chamar pelo nome da madeira?

– Clara, o mundo das palavras é um pouco complicado.

– Tudo bem mãe. Mas o que é grelo?

– Boa noite, Clara!

Cheirinho de Deus

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– Mãe, o que é olfato?

– É o sentido que faz a gente perceber os cheirinhos do mundo, filha.

– Cheirinhos do mundo, como assim?

– Ué, se alguma coisa tem cheiro, quem sente é o seu nariz através desse sentido engraçado que se chama olfato.

– Ah… eu gosto do olfato do bolo da vovó.

– Não filha, olfato é só o nome que se dá ao sentido. Você gosta é do cheiro do bolo da vovó. Principalmente quando ele acaba de sair do forno…

– Por isso que você dá aquele sorriso quando o papai faz café?

– Isso mesmo… porque eu adoro cheirinho de café passado.

– E aquela cara feia quando ele dá pum?

– Exatamente. Nem todo cheiro é bom…

– Cocô. Cocô tem cheiro ruim né mãe?

– Tem filha. Não sei por que Deus não inventou um cocô cheiroso.

– Eu sei outro cheiro ruim!

– Qual?

– Chulé.

– Ui. É mesmo.

– Mãe?

– O que foi?

– O que é cecê?

– Outro cheiro ruim. De sovaco que não tomou banho.

– Écate.

– Viu só como a gente tem que tomar banho.

– Mas eu gosto do cheiro do xampu do Bob Esponja. Tem cheiro de morango.

– É verdade. É muito gostoso.

– Qual é o cheiro que você mais gosta mãe?

– Hum, tantos. Gosto do cheiro da roupa que acabou de lavar. De doce de maçã, de cebola sendo frita no azeite. Cheiro de flor, de fruta. Mas de todos os que a mamãe mais gosta é de canela. Porque ela tem um cheiro mágico.

– Mágico? Por quê?

– Porque ela me leva a lugares distantes, imaginários. Como a terra do Aladim, sabe?

– Sei… puxa… que legal… você me mostra?

– Claro.

– Mas e a chuva, tem cheiro?

– Tem. Tem um cheiro maravilhoso de terra molhada.

– Mas o cheiro é da terra ou da chuva?

– Dos dois. Da mistura deles.

– Hum…

– Quando você nasceu seu pescoço tinha um cheirinho de Deus.

– O que é isso mãe?

– É o melhor cheiro do mundo filha. É o cheiro do amor.

– Ah, já sei. Seu colo tem esse cheiro.

– Querida…

 

Conversinhas com Clara

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As conversas com Clara antes de dormir podem ser surpreendentes.

– Mãe, tinha um menino na minha sala hoje com tanta cecê, mas tanto cecê…

– Sério filha? Que péssimo. Será que a mãe dele não sente?

– Não sei, mas era uma boa pessoa para avisar né.

– Cecê e bafo, se a gente tem intimidade com a pessoa, precisa alertar.

– Mas mãe, as pessoas não tão nem aí pros fedores. Precisa ver quanta gente na minha sala que peida e não tá nem aí.

– “Peida” filha? Mas isso é jeito de falar?

– Peida mãe. Todo mundo fala assim.

– Mas você é menina. Não dá para falar de outro jeito? Pior que o ato “peidar” é a palavra “peido”.

Nessa hora ela ri de gargalhar. Não aguenta a própria mãe.

– Tá mãe, como você quer que eu fale?

– Fazer um pum.

Ela gargalha de novo.

– Mãe, ninguém faz pum. As pessoas soltam pum.

– Tá. Fazer, soltar, não importa. Pelo menos a palavra “pum” é bem mais sonora que “peido”.

– Ah… isso você vai me desculpar, mas não é não.  Peido é bem mais legal de falar. E no mais, peidar já um verbo. Uma palavra só já explica a coisa.

– Eu acho deprê.

– Pior que peidar é mijar.

– Não, cagar é pior.

– Não. Mijar é pior.

– E cagar? Ouve bem: ca-gar.

– Cagar as sílabas combinam.

– Tá, mas você não fala assim né. Pelo amor de Deus.

– Óbvio que não, mãe.

– Ué, não sei. Para mim, quem fala “peidar” pode muito bem usar “mijar e cagar” para se expressar.

– Não, mãe. Eu falo “fazer xixi e fazer cocô”.

– Ah tá. Mas por que xixi e cocô podem usar o verbo fazer, e o coitado do pum não?

– Tá bom mãe…  a partir de agora vou soltar flatulências. O que você acha?

– Acho lindo.

– Melhor ainda: vou dizer que “ops, flatulei”.

– Flatulei é perfeito. Elegante e ainda por cima você ainda inventou um verbo. Mamãe gosta.

Ela ri de novo.

– Quem é você, mãe?

– Quem é você, Clara?

Bipolaridade materna

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Minha bipolaridade materna ainda vai me enlouquecer.

Não sei quantas mães passam por isso. Não sei dentro de quantas casas isso acontece. Mas a verdade é que tem dias que eu preciso sair correndo e ir dar um grito bem histérico na varanda. Mesmo que seja um grito histérico mudo, para não assustar as meninas nem os vizinhos. Uma das minhas tentativas desesperadas de equilíbrio psicológico.

Gente, criança é uma dádiva. Em todas as fases. Em todos os sentidos. Conceber, parir, alimentar. Depois ver crescer, se desenvolver, desabrochar. Esses anjos caídos do céu têm o cheiro mais inebriante que eu já senti. Eles têm pele de nuvem. São espontâneos, adoráveis, amorosos. E conseguem conter dentro daquele corpinho minúsculo, o melhor e mais genuíno da nossa espécie. Mas às vezes – muitas vezes – também são as criaturinhas mais insuportáveis do mundo.

Deixa eu explicar.

Quem me conhece sabe que eu sou, desde que as gurias nasceram, um coração partido em dois batendo fora do corpo. Foi depois que Clarabela e Catalinda chegaram, que minha vida passou a ter sentido. Não que antes a vida não fosse maravilhosa. Ela era. Mas sentido, não tinha não. Minhas meninas me trouxeram em suas asas uma certeza etérea de pertencimento ao mundo. Uma resposta concreta às perguntas mais existenciais que eu já tinha feito às estrelas. Um entendimento absoluto da minha capacidade de amar e me doar em forma de leite, afeto e compreensão.

Mas quando os nenéns deixam de ser nenéns e se tornam essas coisinhas que andam e gesticulam e falam e se acham gentinha, trazem com elas acoplado às bochechas, um teste diário de paciência, resistência e benevolência. E é aí que a gente entra em contato com um adormecido monstro do Lago Ness dentro de nós. Porque essas nossas criancinhas provocam na gente os mais contraditórios sentimentos. Dizem as más línguas psicanalíticas, que quem sofre o rompante dessa raiva colossal, nem sempre é a Tatiana adulta e consciente e sim, uma criança interna minha que de alguma forma foi ferida e reage lá de dentro com um sentimento quase sempre… infantil. Hã… é, pode ser. Mas independente de quem ou o quê acorda o meu monstro no fundo do lago, a questão é que me assusta muito a percepção dessa bipolaridade que meu coração é capaz de chegar.

A oscilação entre amor e ódio ocorre entre segundos. Dou o grito. Ela não obedece. Mas é quarta vez que eu estou pedindo para você entrar no banho! Ai ela dá um sorriso. Eu me desmancho. Finalmente entra no chuveiro. Outra mau criação. Agora o drama é para passar o xampu. E eu penso comigo: meu deus, eu tô tão cansada… Ela retruca: mas mamãe, eu tenho dileito de fazer tudo sozinha! Aí eu acho lindo. E me encho de orgulho por esse desejo dela de emancipação. O trocinho só três anos! O tempo passa. Vamos sair do banho, meu anjo? Agora a manha é para sair do banho. Mas você chorou tanto para entrar, não dá para variar um pouco o repertório e não chorar para sair? Não. Não dá. Ela tá cansada – eu penso. Paciência, mamãe, paciência… Dou-lhe uma, dou-lhe duas… Catarina! Ela cruza os braços e me dá as costas. Para não enforcar o pescocinho, vou até a cozinha tomar um chá mate. Respiro fundo. Volto e digo alto e em bom tom: Vamos sair A-GO-RA. Ela diz que não. Então eu desligo o chuveiro e uso minha força para colocá-la para fora. Firme, a coloco em pé em cima do tapetinho do banheiro. Ela recolhe as pernas. Senhor, alguém me ajuda! É quando finalmente eu dou o grito que balança a casa. Ela se assusta. Coloca os pés no chão devagarinho. E das duas bilhas castanhas saltam duas gotas de lágrimas sentidas e transparentes. Aquele choro sofrido. Mudo. Decepcionado. Meu coração se contrai e eu penso: como posso ser tão megera?

Alou? Alguém pode me internar?

Nessas horas eu não penso em mais nada. Claro, porque depois do choro ela diz sempre: mamãe, será que você pode me dar um abracinho agora? Mas depois… depois que eu me acalmo e volto a ter algum discernimento, entendo que não vai dar nunca para compreender o que é um coração bipolar.

Vocês acham que a coisa pára por aí? Não… a coisa não termina nesse happy end lindo. Minha noite ainda me reserva todo um processo de vestir pijamas, pentear cabeleiras e escovar dentes. É. Escovar dentes. Praticamente um pesadelo para mim. Por quê? Porque Catarina é o tipo de criança que tranca a escova na boca enquanto estou escovando os dentes dela. Uma delícia de criança. E quando eu acho que tudo acabou, que o quarto está escuro e elas estão em silêncio, minha grandona pula da cama e grita desesperada: Mas mamãe… e o nosso Toddy? Você esqueceu o nosso Toddy!

A verdade é que desde que eu fiquei sozinha a coisa toda piorou muito. Essa aventura de ter filhos pequenos é para quem sempre desejou ter uma vida selvagem. Mas eu nunca desejei ter uma vida selvagem sozinha. Porque por mais presentes que sejam os ex-maridos, é no cotidiano que a gente sofre essa solidão cansada e se descabela quando desconfia, que esse modo de vida, nunca mais vai mudar.

Eu sei que vai. Um dia esse tempo vai passar e eu vou olhar as fotos delas com uma saudade dilacerante de quando elas eram pequenininhas. É injusta essa parte da evolução da espécie. Porque eles crescem e viram nossos amigos. Companheiros de caminhada, espectadores da nossa história. É maravilhoso. Mas ainda assim é duro saber que de alguma forma, aquelas crianças bagunceiras e melequentas, a gente não vai poder segurar no colo nunca mais.

Hummm. Pensando bem… ainda bem.

 

Meus seios doem

amor

Para Gisele Magalhães


Meus seios doem.

E são hoje o símbolo maior da minha existência e exaustão.

No alvorecer do dia eles estão cheios de alimento e frescor. Descansados e intumescidos, trazem no leite a aurora de toda a leveza do desabrochar da vida. E do mais recôndito do meu ser, oferecem energia vital ao que mais amo – minhas filhas.

Mas quando a noite se deita sobre o sol, é nos meus seios que vejo meu cansaço refletido. Contraídos, doloridos e vazios, não há fome, necessidade ou desejo que os façam fabricar mais alimento. Talvez para algum afeto possam servir, através do calor da pele ou das ondas sonoras que atravessam o meu peito e reverberam as batidas do coração. Mas mesmo assim… doem.

É quando isso acontece que percebo que o fio invisível que venho tecendo minha vida desde que minhas meninas nasceram é feito de algodão. Numa porção doce e cor de rosa, meu algodoar diário começa quando abro os olhos e antes mesmo do espreguiçar iniciam-se minhas infinitas funções maternas… A primeira mamada de uma se amarra ao copo de Toddy da outra, que vem morno e doce – não do peito – mas da cozinha. A primeira troca de fraldas tem um monte de sorrisos pendurados nela. A fraldinha puxa o café que tomo correndo já que tem uma turminha louca para brincar. Mamãe, vamos desenhar? Mamãe vamos montar a casa de boneca? E é no enrolar desse gigante algodão-doce que tenho confeitado os meus dias, pendurada numa roda gigante, num parque de diversões imaginário.

…ai o sino ta tocando – meio-dia, hora do almoço!

Clara, escovar os dentes – vamos correr para a escola

Catarina, agora seu banho – xíí… já está na hora do mingau!

passeio – sol – parquinho – outra fralda suja de cocô?

hora da soneca – mocinha…chegou da rua direto lavar as mãos – hora do jantar

vamos tomar um banho para dormir quentinha? – olha o pijama

Clara, escovar os dentes por favor filha

– quer que a mamãe leia um livro?

e depois cantar todo o repertório de músicas de ninar

boa noite meus anjinhos…

ai que bom que dormiram… finalmente…

Mamãe, traz um copo d’água! Tô com sede!

Meus seios doem.

Mas essa dor que vem do colo é a mais prazerosa das dores humanas. Porque é dor que significa, que se justifica, é dor que enche e esvazia. Que transborda e logo se esvai. Dor que formiga o mais profundo da essência feminina e sua potencialidade selvagem de nutrir um outro ser.

Nunca imaginei que o ofício de ser mãe fosse ser essa experiência tão surreal. Que fosse ser esse sacrifício – esse sacro-ofício. Essa alegria tamanha. Esse milagre que é vivido na intimidade dos dias, na simplicidade lúdica da infância, no compartilhar da melhor e mais autêntica versão que a humanidade pode alcançar vir a ser.

Meus seios doem.

E como não doer, se tudo o que tinha dei em forma de ser?

Doem mesmo porque dói tudo que se refere a essa coisa enlouquecedora que é ser mãe: doem as contrações, dói o parto, doem os bicos que se racham nas primeiras sugadas, doem na pele as horas não dormidas, doem as costas, doem os pontos. Dói o medo de perdê-los, de não compreende-los, de não saber educá-los.

Mas sobretudo, dói a imensidão do amor com que amamos essas criaturas que saíram de dentro de nós.

Férias espetaculares

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Férias é um período mesmo formidável. As crianças passam metade do tempo se divertindo, metade entediadas e as mães passam quase 100% do tempo querendo cortar os pulsos.

Para muita gente nesse mundo, férias é sinônimo de alegria e descanso. Dias deliciosos de repouso, pausa no trabalho, período sem compromisso. Viagens gostosas com a família para um hotel fazenda ou um resort daqueles de revista de viagem.

Não é o meu caso.

Férias no meu dicionário quer dizer: desespero. Um desafio hercúleo onde todas as minhas qualidades são colocadas à prova e todos os meus defeitos são grifados com marcador de texto fosforescente. Cara, eu sou uma pessoa paciente. Sou criativa. Tenho certeza de que sou uma mãe divertida. Mas sem dinheiro, sem empregada e sem ajuda, as férias tem se transformado num período de crises e superações. Vivo a beira de um ataque de nervos. Acordo todos os dias de manhã e me faço sempre a mesma pergunta – parodiando Pink e o Cérebro:

– Tati, o que você vai fazer hoje?

– O que faço todos os dias, tentar divertir minhas filhas.

Claro que as férias de inverno são mais difíceis que as de verão. Mesmo que intermináveis, as férias de dezembro, janeiro e fevereiro tem um poder de transmutação: o calor. Quando a temperatura esquenta, a galerinha vai lá para fora e qualquer programa aquático diverte. Por horas. Mangueira, banho de bacia, piscina, praia! No verão as crianças viram peixe e não se importam com absolutamente nada. Mas no inverno… no inverno a coisa complica. Todo mundo quer ficar entocado em casa, comendo tudo o tempo todo, jogando videogame ou vendo filme. Tudo lindo.  Até bater o tédio. Depois do terceiro filme e da 12ª bacia de pipoca, elas começam a dar curto circuito.

Clara até tenta. Fez uma listinha genial de ideias mirabolantes de coisas para fazer numas férias sem dinheiro, até mesmo a realização de um documentário sobre isso. A listinha tinha de tudo: criar um mapa de tesouros e depois ir atrás deles, vender brigadeiros (sendo que a mamãe faz e enrola claro), fazer um show no condomínio, fazer piquenique no topo do morro, montar uma barraca de lençol e fingir que está acampando, organizar uma festa a fantasia. Mas a melhor de todas foi A Cápsula do Tempo. Ela teve a ideia de produzir uma caixa onde colocaria objetos da nossa época (!) e cartas para gente guardar na caixa e só abrir daqui a 20 anos. Piramos. Ela e Catarina já fizeram as delas. Só falta a minha. Já comecei a carta umas três vezes, mas estou sem saber o que quero dizer a mim mesma quando estiver com sessenta anos. Loucura, gente. Coisa de Amelie Poulain! A questão agora é saber onde vamos enterrar a relíquia.

Não sei, mas nas férias todo o trabalho da casa aumenta tanto… Tudo se multiplica feito “Gremlins” na água. Roupas sujas nos cestos, roupas limpas na corda, sujeira nos cantos da casa, pipocas embaixo do sofá, bonecas saindo pelas gavetas, papeizinhos de BIS brotando do rodapé, essa fome infinita por gulodices, vizinhos entrando pelas portas e janelas buscando diversão na casa da Tia Tati. Ufa. Faço quilos e quilos de feijão mas não dou conta. Fui ao supermercado quase todos os dias, até que a moça do caixa me perguntou assustada com o aumento significativo de comida: mas a senhora não tinha duas filhas? É, mas os amiguinhos delas amam a nossa casa. Ai, ai.

Já fizemos de tudo. Argila, pintura, desenhos com giz, colagens. Peteca, bola, elástico. Jogos, mímicas, bolo de cenoura com brigadeiro. Cuca de banana. Spa. Tratamentos de beleza. Tardes de maquiagem. Filmes de aventura. Filmes de ação. Comédias. Já lemos livros, revistas, almanaques. Wii, Friv e todos os possíveis entretenimentos virtuais. Perdi a conta de quantas amiguinhas já vieram dormir. Já fiz e refiz um milhão de caminhas, um milhão de Toddys, um milhão de pães de queijo e as férias estão longe de terminar.

Tomara que nas férias de verão eu consiga relaxar um pouco. Me divertir mais do que me estressar. E poder entrar de verdade, de corpo e alma, na onda das minhas peixinhas. Não quero ser uma mãe chata, quero ser uma mãe sereia!

Meninas acordando

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De todas as graças que sou abençoada nessa minha vida, uma das mais sutis e maravilhosas é ter a oportunidade de ver minhas filhas acordando todos os dias.

Minhas manhãs são simples e rotineiras. Abro os olhos e a primeira coisa que penso é na sensação estranha de me sentir viva mais um dia. Silenciosamente agradeço por isso e saio espreguiçando meu corpo como se precisasse desesperadamente dizer para ele que o tempo do quentinho da cama acabou. Me levanto, caminho lentamente para o banheiro, faço xixi, escovo os dentes. Depois sigo para cozinha para tomar meu religioso copinho d´água para ver se consigo me acordar por dentro.

Há qualquer coisa de divino no tempo da manhã. Uma luz diferente no horizonte, um frescor de orvalho deixado pela noite, um tom celestial no canto dos passarinhos. Não sei bem o que é. Mas acordar de manhã é como renascer sem ter morrido. Como voltar de uma jornada profunda sem ter partido. É como despertar de sonhos vividos e ter a certeza de que não estávamos lá, mesmo tendo certeza de que estávamos.

Enfim. Ainda na cozinha busco os ingredientes para fazer a poção mágica que desperta minhas bonecas há mais de dez anos: o nutritivo e achocolatado Toddy de todas as manhãs. Preparo a bebida, encho os copinhos do leite morno e doce que elas tanto amam e sigo ansiosa para o quarto delas.

Abro a porta. O quarto está quieto. Geralmente Clara está coberta até a ponta do nariz com o edredom. Catarina está virada do outro lado da cama, toda torta e descoberta. Olho para o rosto delas e percebo a profundidade do sono em que estão. Há um ronquinho no ar. O som de uma respiração que vem lá de dentro do corpinho de cada uma. Por onde andarão suas alminhas? Com o que será que estão sonhando? Me ajoelho perto das duas e começo o processo do despertar cheirando o cangote de cada uma. Cheirinho de Deus!  Tem a mistura do cheiro do xampu, com o perfume do amaciante que está na fronha e o cheirinho da pele delas que mais me parece com um doce de confeitaria.

Da cafungada no cangote, passo para o beijinho de leite – beijo inventado por elas – que é um beijo miudinho e sem som, quase imperceptível a olho humano. Esse beijo dou em todas as partes do corpo que estiverem descobertas… rosto, braços, pernas. Mas quando passo a beijar por cima do pijama, o beijo já pode estalar. Aliás, deve. Quanto mais alto, mais chances tenho de fazê-las despertar. É com os beijos estalados que as coisinhas começam a chegar.

O primeiro indício da chegada é o desejo de espreguiçar. Nesse momento me afasto para assistir a melhor parte do show, quando elas deixam de ser meninas e passam a ser uns filhotinhos, uns bichinhos desses que a gente morre de amor no zoológico quando começam a se espreguiçar. Elas fazem caretas. Soltam gritinhos. Grunhidos. Uma coisa muito deliciosa. Vontade que dá é de sair mordendo.

Os “bons-dias” geralmente saem da boca antes mesmo dos olhos se abrirem. Cada uma traz seu amor e sua doçura na forma com que me reconhecem. “Bom dia, Mamisquilis” diz Clara. “Bom dia, Lindoca” diz Catarina.

Emocionada, corro para abraçá-las como se não as visse há muito, muito tempo e rapidamente me transformo no que elas mais gostam: um enorme puf-mamãe. Elas sobem e pulam em cima de mim. E nos embolamos como se fossemos um corpo só. Como são lindos os olhinhos inchados e remelentos, como são cheirosas as boquinhas com bafo de tigre, como são perfeitos os cabelos enormes e descabelados, como são quentinhos os abraços com braços tão fortes.

Se eu pudesse resumir as partes boas que vivo no cotidiano da minha vida, estas manhãs certamente estariam na lista das mais queridas. É uma benção imaginar que num mesmo dia posso renascer e ver renascer aquilo de mais preciso que coloquei no mundo. Que maravilhoso dia para se ter alegria!

O ungüento das canções de ninar

caderno

Alguma coisa aconteceu ontem.

Tem noites que eu me sinto muito sozinha. O dia vai bem. A manhã passa depressa e a tarde sempre me traz de presente algumas horas livres para escrever. E o dia tem o sol que acaba iluminando as minhas sombras, mesmo as mais sombrias. Mas quando cai a noite eu começo a me sentir muito só. Em outros tempos era a minha hora predileta, justamente o momento em que o sol saía de cena e a lua chegava me trazendo inspiração, quietude, reflexão.

Mas ontem aconteceu alguma coisa diferente.

A lua já tinha me trazido as bonecas da escola, exaustas e famintas e com elas a infinita lista de afazeres que se resumem as nossas noites. Eu sei que sou uma mamãezinha para lá de exagerada, mas fazer o que? Chegaram? Jantar, suco, sobremesa. Banho na primeira. Secar os dedinhos do pé, colocar talco, limpar as orelhas com cotonetes falantes, hipoglós, fralda, desembaraçar o cabelo. Banho na segunda – esse com um tanto de briga claro, para entrar e para sair – coordenar a esponja com sabão, o xampu, o condicionador. Depois outra luta para ensinar como se seca sozinha. Outro pijama, outro cabelo para desembaraçar, unhas compridas para cortar. Hora de fazer as camas. Preparar o quarto para dormir. Ligar o abajur. Sim, o Toddy, que ainda por cima tem que ser quentinho e da cor exata se não o freguês devolve… Finalmente escovar os dentes, passar fio dental. Bochecho, o ultimo xixi e cama. Ufa.

Deitei com elas e de novo me bateu aquela dor no peito. Eu as tenho tão perto do meu coração. A solidão que sinto não tem nada a ver com elas, é comigo. É essa solidão de não poder mais compartilhar esse amor nos moldes que sonhei de família. Quando a gente ama desesperadamente os filhos, precisa muito dividir esse amor. Até porque minhas filhas são duas preciosidades. De pijama então, me deixam louca de paixão. Clara e Catarina. Uma, miniatura da outra. Muitas vezes penso em como posso ter feito coisas tão perfeitas. É demais ver as duas agarradas aos seus respectivos ursos de estimação. Clara com Teddy e Catarina com… Teddynho, claro. Dois ursos iguais, só que de tamanhos diferentes, na proporção certa, para cada uma. São crianças de sonho. Devagarinho as vejo se acomodando entre minhas coxas, colo e os tantos travesseiros macios que estão sobre a nossa cama. Exalam um cheiro doce, puro, divino. De olhos bem abertos, me esperam abrir o mágico caderno das canções de ninar.

Sim, foi através dele que ontem aconteceu alguma coisa diferente dentro de mim.

Sempre cantei para as meninas dormirem. Foi uma tradição que herdei da minha mãe e fiz questão de manter. Nunca esqueci a voz dela me encaminhando devagarinho para o mundo dos sonhos. Só que ao longo dos quase sete anos de maternidade, foram tantas as músicas que acumulei no meu repertório, que comecei a confundir as letras e por isso resolvi fazer um caderno, escrito à mão, com uma caneta roxa de glitter, com cheiro de uva.

Ontem eu cantei o caderno inteiro.

E a cada canção cantada, eu dissolvia um pouco o nó que apertava o meu peito. Foi então que eu descobri que nas canções de ninar existe um ungüento mágico e poderoso. Que o som da minha voz cantando aquelas melodias podia fazer um caminho secreto dentro de mim, me levar por um túnel no tempo, para o melhor e mais iluminado pedaço da minha vida, quando eu era pequenininha e não conhecia a solidão. Foi extraordinário.

Hoje eu não tive receio da noite, nem da falta do sol, nem das minhas sombras. Porque eu sei que existe uma luz dentro de mim que ilumina qualquer medo. E nem precisa ligar o abajur. Basta cantar Alecrim, alecrim dourado que nasceu no campo sem ser semeado… o meu amor, que me disse assim, que a flor do campo se chamava alecrim…