Maria das Dores

Quando eu era pequena, minha mãe me chamava de “Das Dô Saramandaia”.

Referência a uma novela da época, mas acho que o que ela gostava mesmo era de me chamar de Maria das Dores. Consigo imaginar o porquê. Tudo me doía. Segundo ela, cada dia era uma coisa diferente. Uma novela.

Para um corpo hiper ultra mega sensível, tudo dói mesmo. Tudo é um exagero, porque tudo é sentido no nível máximo que a sensibilidade pode sentir.

Cresci nesse molde de hipersensibilidade corpórea e isso sempre foi uma questão na minha vida. Tenho pavor de sentir dor. Pavor de passar por qualquer dor que me faça sofrer. Conclusão: sou uma adulta hoje viciada em analgésicos.

Demorei muito tempo para assumir essa adicção. Qualquer vício é vergonhoso e nos gera muita culpa. Mas de uns tempos para cá, ando com uma vontade infinita de colocar minhas dores para fora, para ver se dividindo, a coisa pesa menos.

Fico imaginando se não tem um monte de gente por aí com esse mesmo vício. Se a vida já era difícil com todos os desafios contemporâneos, imagina agora que a gente está passando pela pior crise sanitária dos últimos tempos.

Bom, eu não sei vocês, mas eu sinto dores de cabeça todos os dias. Já desconfiei de estar com Covid umas 17 vezes desde que a pandemia começou. Já senti tonturas, calafrios, enjoos, dores de garganta, febrículas e muitas, muitas dores no corpo nesse último ano.

Tá. Eu sei que muito próximo da loucura do vício em remédios, mora a hipocondria. E já que eu me propus a falar a verdade, devo confessar que em algum lugar em mim mora um Woody Allen compulsivo. Acho até que eu já escrevi sobre isso. Todo hipocondríaco se automedica. Isso é fato. Então, um bicho alimenta o outro.

Mas eu tenho medo disso. Resolvi escrever sobre isso, porque tenho medo de no final das contas, morrer de intoxicação medicamentosa. Difícil essa dicotomia né? Vocês acham que é fácil ser eu?

Mas voltando às dores, há uns anos fiquei sabendo de uma moça que foi internada com dores horríveis na barriga. Depois de examinar a paciente, o médico olhou para ela e disse: “não preciso fazer mais exames para descobrir o que você tem: seu problema é intoxicação com Neosaldina.”

Minha Nossa Senhora. Nem sei quantos anos passei tomando Neosaldina. No dia que soube disso parei. Passei a tomar Dorflex. Mas uma amiga falou que eu também preciso parar com o Dorflex porque o excesso de relaxante muscular faz mal para o corpo. Me indicou Doril DC.

Parece piada, eu sei. Mas eu não tô achando mais nenhuma graça.

Agradeço muito a sensibilidade que me habita. É através dela que absorvo o mundo e posso escrever. É através dela que apreendo coisas muito sutis que são difíceis de serem percebidas pelas pessoas. É pela sensibilidade que encontrei minha voz no mundo. Tudo isso faz parte da luz dessa qualidade. Mas na sombra dessa mesma característica que me representa, moram as dores na alma que me causam as injustiças. A crueldade do mundo me corta a pele e me faz sangrar como se o sangue saísse de mim de verdade. As maldades me torcem o estômago como um soco que a gente recebe sem se preparar. Sinto visceralmente as dores de tudo aquilo que está em desalinho do universo. Aqui. Nesse corpo que habito. Então, o que me dói não são as agruras que meu corpo tenta administrar do desequilíbrio de alguma coisa que comi de errado, ou as poucas horas que dormi, ou o mal jeito que dei na lombar. O que me dói são todas as coisas que sinto desse mundo que a gente está vivendo e que não tem analgésico que dê jeito.

Sim. Estou viciada em analgésicos. Em melatonina para dormir. Em sal de fruta para a queimação no estômago. Em Torsilax para o dor nas costas. Mas ainda não tomo calmantes nem antidepressivos. Sem absolutamente nenhum julgamento para quem precisa. Cada um sabe onde a vida lhe aperta. Mas quero buscar uma alternativa de cura para essa coisa que ficou tão clara de repente para mim.

A dor é um processo de alerta. Assim como a doença. Ela não é inimiga. Muito pelo contrário. É alguém que vem para te alertar que alguma coisa está muito errada com você. Quero olhar para isso de frente. Mesmo que me doa muito. Assumir o vício é o primeiro passo da cura.

Um comentário em “Maria das Dores

  1. Aqui está um espelho. Aqui está um caminho para assumir-se por inteiro. Cada um de nós, mais cedo ou mais tarde precisa “ouvir” os chamados da alma que nos chegam através do corpo. E que possamos fazê-lo antes que seja tarde e a cura esteja muito mais difícil.

    Eu levei mais de 50 anos pra decidir ouvir o corpo e agora estou muito emperrada e a cura, ou recuperação de todo o sistema muscular, está me obrigando a sentir dor e frustração pelo que não pode mais ser recuperado. Mas estar ouvindo o diálogo entre corpo e alma está sendo libertador.

    Muito bom poder olhar pra tudo isso com o reconhecimento das suas dores Tati!

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