Para Catita
O ser humano tem muitas neuroses.
Algumas são sérias, complexas, perturbadoras. Outras são engraçadas, meio patéticas, surreais. Mas hoje eu fiquei pensando que talvez o primeiro passo para curar uma neurose é ter coragem para olhar para ela de frente, assim como quem enfrenta um demônio num deserto. Você e ela, ali, cara a cara. Sem máscara, sem mentira. Sem panos quentes, sem vergonha. Olhar assim, de verdade. A conscientização de uma neurose pode ser um marco. O início mesmo de um processo de cura. Uma libertação definitiva da coisa que faz a gente ser, esse bicho esquisito que a gente é.
Eu, por exemplo. Eu sei que eu tenho um leve nível de TOC correndo nas minhas veias. Para quem não sabe, TOC é a sigla para o transtorno obsessivo compulsivo, um distúrbio psiquiátrico que faz as coitadas das pessoas terem “pensamentos obsessivos e compulsivos, comportamentos considerados estranhos pela sociedade ou por si próprios; normalmente trata-se de ideias exageradas e irracionais de saúde, higiene, organização, simetria, perfeição ou manias e “rituais” que são dificilmente controláveis”. Pois é. Eu tenho um pouquinho dessa coisa aí. Uma coisa leve, assim, quase imperceptível a olho nu. Mas eu tenho. E toda a vez que eu percebo a coisa em mim, um sininho toca e eu fico bem aborrecida com o fato. Não, eu não fico aborrecida. Eu fico me sentindo prisioneira de uma coisa que não precisava ser.
Deixa eu explicar melhor.
Desde pequena eu tenho um lance com arrumação. Minha mãe sempre foi super organizada. Minha avó era metodicamente organizada. Então de alguma forma, alguém me ensinou que a ordem sobre o caos é uma coisa positiva. Até aí tudo bem. A questão é quando a coisa começa a se desequilibrar e se torna uma obsessão, isto é, um apego exagerado a uma ideia de que tudo tem que estar milimetricamente no lugar. Eu tenho para mim que muito do meu TOC tem a ver com um caos interno. As coisas aqui dentro já são tão bagunçadas que eu fico arrumando desesperadamente o lado de fora na esperança de que dentro as coisas vão se organizar melhor. Eu até já escrevi um texto sobre isso: sobre as minhas arrumações compulsivas dos armários quando estou deprimida. Mas ultimamente tenho percebido que a coisa extrapolou o armário e tomou conta da casa toda.
A coisa é mais ou menos assim. To passando do quarto para a sala. Olho de butuca de olho a pilha de livros que está lá na estante do outro lado da sala. Os livros estão empilhados de qualquer jeito. Assim, uns por cima dos outros, mas sem nenhuma simetria estética. Cada um olhando para um lado. Eu não sossego enquanto não vou lá para empilhá-los direitinho. Não é uma atitude meio esquisita? Isso já foi pauta de terapia. E dever de casa desafiador no grau máximo. A tarefa era simples. Olhar a pilha de livros e ficar contando, respirando no incômodo, até me libertar do desejo louco de ir lá arrumá-los. Ahhhhhh. Que agonia!
Quando comecei a pensar nesse texto e no tema polêmico do TOC, liguei para minha irmã, que na minha modesta opinião, está alguns níveis acima da minha loucura. Aquela ali tem TOC brabo, mas não se incomoda com isso. A casa dela é Casa Cláudia e ela se orgulha disso. Tudo está sempre pronto para ser fotografado. Não há uma gavetinha sequer naquela casa que não esteja em ordem total. Mas eu estava aflitíssima ao telefone:
– Má, fiz a besteira de entrar num site para pesquisar os sintomas de quem tem TOC. Cara, eu tô num nível básico em quase todas as listagens. Você acha isso grave?
– Ti, se acalma. A gente foi criada assim. Não lembra que a gente não podia brincar na casa da vovó para não desarrumar nada?
– É, eu lembro.
– Nossa mãe tem o armário arrumado em degrade de cores, cara. Isso tem um peso nas nossas referências.
– É, você tem razão. Mas eu quero me libertar disso.
Para quê secar a bancada da pia depois de lavar a louça? Por que fazer a cama e ficar paranoica que alguém vai sentar e engruvinhar toda a colcha que você acabou de esticar? Pra quê se preocupar de fazer bolinhas com as meias e calcinhas depois que as tiramos do varal? Por que passar Veja tantas vezes na mesa da sala? Por que se importar tanto com as impressões digitais gordurosas no vidro da varanda?
Não pensem vocês que me orgulho de ser assim. Se pudesse mudar alguma coisa em mim, com certeza que essa neurose de arrumação estaria no topo da lista. Claro que eu gosto de ver as coisas organizadas, limpas, cheirosas. Me orgulho de saber que não sou uma acumuladora e que na minha casa não tem nada quebrado ou fora de uso. Arrumar o lugar onde a gente mora tem a ver com honrar de alguma forma tudo que foi conquistado. Eu sei. Mas também sei aqui dentro de mim, que a linha que divide a ordem do ambiente para uma coisa psicoticazinha de arrumação é bem tênue. E assustadoramente esquisita.
Minha irmã teve um professor de história da arte que disse que 1% da população mundial tem alguma preocupação com estética. Taí. Deve ser isso. Eu sou um desses caras. Estética é um ramo da filosofia que tem por objetivo o estudo da natureza da beleza e dos fundamentos da arte. Talvez meu lance lá com os livros assimétricos fale de uma necessidade filosófica de tornar o ambiente da minha casa bonito e equilibrado. Até aí tudo bem. Mas o que me incomoda é perceber que sou prisioneira dessa estética. Eu não conto para ninguém, mas depois que Marly vai embora na segunda-feira – depois de um dia auspicioso de faxina – eu saio consertando objeto por objeto na casa, arrumando as coisinhas na simetria lógica da minha cabeça que não tem lógica nenhuma. Ou tem?
Ah, sei lá. Esse é um assunto que dá muito pano para manga. Das muitas características bizarras de quem sofre TOC realmente essa da arrumação – em mim – me parece a pior. Eu sei que tem muita gente que padece com essa doença. Que fique aqui registrado meu profundo respeito e compaixão para quem luta com esse dragão. Só mesmo a psicanálise para explicar tanta esquisitice. Ou não. Dizem as pesquisas que apesar de vários estudos publicados o TOC ainda é considerado um “enigma” e continua sendo um desafio para os pesquisadores.
Na minha pesquisa pessoal, descobri que algumas sensações mentais se repetem no coração de quem sofre a coisa: percepções ilusórias de se “sentir em ordem”, sensação constante de incompletude, de “ter que” fazer alguma coisa e por fim, a sensação de esvaziamento da energia interna. Nossa. Essas sensações me parecem ser de um profundo sofrimento subjetivo.
Escrever é um processo de cura para mim. Compartilho com o mundo as minhas neuroses para ver se com isso consigo dar uma meia dúzia de socos nesses demônios que me atormentam. E na esperança também de ajudar alguém que talvez sofra do mesmo TOE que eu. Porque gente, não dá para ficar levando a vida tão a sério né. Tudo bem. A gente é esquisito. Mas eu não quero ficar me martirizando com isso. Eu quero rir disso. Talvez a verdadeira libertação das neuroses esteja no segredo de rir delas. Ou escrever sobre elas. Cada um com a sua possibilidade de libertação exorcizante. Nietzsche dizia que “temos a arte para que a verdade não nos destrua”. Eu tenho as palavras para que as neuroses não me destruam. Aho!