Bicho preto

Neblina_do_Douro

De vez em quando eu sou capturada por um bicho preto que me leva para um lugar horrível.

Clarissa Pínkola Estés, autora do maravilhoso “Mulheres que Correm com os Lobos” chama esse bicho de predador. É um cara chato, inconveniente, que mora dentro da gente e que não serve para nada a não ser detonar a nossa autoestima e criatividade.

Esse bicho me pega quase todas às vezes que começo a escrever.

Escrever, mas escrever para quê?” ele pergunta.

Desgraçado.

Já li muitos textos de autores incríveis que se debruçam sobre essa mesma questão. Por que escrever? Para quem? Será que algum dia eles também foram apanhados pelo bicho preto?

Tenho muitas aflições. A primeira delas é uma preocupação altruísta de que meus textos sejam sempre sobre o meu “eu”. O que sinto, o que penso, o que vejo. Tudo bem que escolhi a crônica como veículo e ela geralmente é assim, o olhar do autor sobre alguma coisa. Mas será que não é cansativo para o leitor essa coisa de eu, eu, eu? Bom, tai um detalhe que Clarice Lispector nunca deve ter se preocupado. Ela não tava nem aí para isso. Falava de si como quem fala do melhor assunto sempre. Tive um amigo que vivia me dando conselhos sobre isso. Ele era de opinião que eu deveria escrever ficção ao invés de crônica porque através dela eu poderia colocar todas as minhas opiniões na boca de alguém inventado. E que isso de alguma forma disfarçava as minhas próprias sombras.

Mas não foi o que Carpinejar disse. Há alguns anos atrás fiz um curso de crônica com ele em São Paulo que mudou minha vida. Tipo divisor de águas. E ele era categórico no quesito “falar sobre si próprio”. Ele dizia com todas as palavras que o verdadeiro cronista não pode ter medo de se expor e que é isso que o leitor precisa para se identificar. E que ele tem que ter muito senso de humor porque no fundo a gente tem mesmo vergonha de ser o que é. “O papel da crônica é humanizar as relações”. Foi uma viagem inesquecível. Foi depois dela que eu resolvi tatuar a palavra coragem no meu pulso direito. Na mão que escrevo. Não basta ter pulso. É preciso coragem para se viver por inteiro.

Lygia Fagundes Telles também me ajuda a viver. É dela uma frase que tenho presa na porta do meu armário: “O escritor pode ser louco, mas não enlouquece seu leitor. Ao contrário: o escritor pode afastá-lo da loucura. A função do escritor é produzir sentido e só o sentido se opõe à loucura. Por isso não consigo parar de escrever. Se você para de escrever, se torna infeliz, pois está desfazendo uma vocação. Está tapando os ouvidos para um chamado. Você está traindo esse chamado e, assim, traindo a si mesmo”.

Talvez textos que fluam devam fazer parte de um propósito maior. Deepak Chopra fala sobre isso em “As Sete Leis Espirituais do Sucesso”. A lei do darma ou do propósito de vida diz que todos nós temos um talento e uma maneira única de expressá-lo. “Existe alguma coisa que você consegue fazer melhor do que todo mundo. E para cada talento singular, em sua forma única de se expressar, existem necessidades específicas. Quando essas necessidades se combinam com a expressão criativa de seu talento, surge a fagulha que cria riqueza.” Opa, essa fagulha aí eu ainda desconheço. Mas isso são outros quinhentos.

Outra aflição que tenho é sobre estilo. Leio meus textos e não consigo detectar estilo algum. Quase como se só ele pudesse definir minha identidade e sem identidade eu não pudesse me reconhecer em texto algum. A única coisa da qual tenho certeza é que ou eu estou com alma poética e fico tentando extrair metáforas profundas do caminhar de uma joaninha – o que me dá muito trabalho – ou estou com a alma inflamada e saio escrevendo feito uma máquina compressora, numa enxurrada de ideias de fazer batucar o teclado, com uma propriedade assustadora. Tipo agora. Tipo esse texto. Ele flui. Transborda de mim. Como se cada ideia, cada palavra, estivesse sendo psicografada por alguém que está aqui encostadinho em mim.

Mas nunca me esqueço da mãe de santo que cruzou meu caminho certa vez e me afirmou, com todas as letras, que meu escrever vinha dos meus humores. Aqueles líquidos que correm em nós e falam de tudo aquilo que sentimos. Aquilo sim foi o maior presente que o além poderia ter me dado. Eckhart Tolle, do “Poder do Agora” diz uma coisa genial: “uma emoção é uma reação do corpo à mente”. Se eu for mesmo essa coisa transbordante de emoções, tudo que preciso é construir pontes cognitivas para traduzir o que sinto.

Depois disso tudo, o que fica é uma tremenda vontade de dar um soco na cara desse bicho preto. E não me preocupar tanto em falar de mim. Falar de mim é falar de toda gente, que assim como eu, sente, sofre e absorve o mundo do jeito que pode. Se eu puder ajudar alguém com as minhas tentativas de tradução simultânea do mundo, pronto, já valeu a viagem.

E o estilo? Ô meu Deus… será que isso realmente importa? Meu estilo deve ser esse aqui: coração aberto, escancarado. Coração sem vergonha de dizer o que sente. Escrevo com o amor que me habita. E é com esse amor que um dia eu ainda acabo transformando esse bicho preto, numa pulguinha insignificante. Só para ter o prazer de matá-la espremidinha entre as unhas.

Que maldade.

 

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