ComCiência

 

Em tempos de luta e combate aos preconceitos explícitos e implícitos que moram na gente, a exposição de Patrícia Piccinini “Comciência”, em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil, é uma oportunidade imperdível para uma profunda e emocionante reflexão sobre o tema.

Eu já tinha ouvido falar da exposição. Já tinha lido sobre ela. Mas nada que pudesse me preparar de fato para tudo aquilo que me esperava. Fiz questão de levar minhas filhas. Já que o buraco era mais embaixo, achei uma oportunidade riquíssima da gente vivenciar junto, o que quer que fosse.

É impressionante como a gente caminha, caminha, mas está sempre precisando reeducar o nosso olhar. E como a arte é generosa para isso. Porque ela sempre nos leva por um caminho sensorial inexplicável que vai nos mudar para sempre. A gente querendo ou não.

Entramos na exposição e ao caminhar pelas primeiras salas, tivemos todas a mesma sensação de termos entrado num mundo paralelo ao nosso. Numa outra dimensão.

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O lugar era habitado por criaturas bizarras, esdrúxulas e esquisitíssimas. Senti nas meninas e na minha alma uma inquietação engraçada. Uma curiosidade picante daquelas que a gente só sente quando viaja pela primeira vez para um lugar bem exótico e diferente.

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A maioria das obras é de um realismo impressionante. Me lembrou um pouco as esculturas hiper-realistas de Ron Mueck, aquele australiano que faz umas pessoas gigantes em cenas do cotidiano. Talvez pela textura da pele, pelos cabelos de verdade ou pelas expressões que nos parecem tão humanas. Patrícia Piccinini também é australiana. Fui pesquisar um pouco sobre eles depois e descobri que fazem parte de uma patota de artistas plásticos que são considerados “artistas realistas” e que estão fazendo o maior sucesso no mundo.

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Mas seguindo o barco, depois de passado o primeiro estranhamento da coisa, percebi que aos poucos, estávamos nos apaixonando pelas criaturas. E eu sabia o porquê. Todas, absolutamente todas as criaturas estavam imersas numa amorosidade indescritível. Todas tinham uma fragilidade e um carinho no olhar, na expressão, no gesto, na forma de ser e se apresentar ao público. Pareciam tão vivas e querendo nos dizer algo tão importante. Eram tão diferentes e tão parecidas conosco.

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Estranho. Estranho e maravilhoso. Estranho e profundo. A experiência foi me tomando de uma forma intensa e definitiva. E percebi que o mesmo acontecia com as meninas. Primeiro o estranhamento. Depois a admiração. Depois a paixão. Por fim, um respeito profundo por aqueles seres.

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Para quem ainda não viu, aqui está uma grande e fabulosa oportunidade de rever conceitos, valores e impressões sobre o mundo. O mundo de fora e o mundo de dentro.

Sobre os artistas realistas, aqui está o link:

http://www.guiadasemana.com.br/artes-e-teatro/noticia/alem-de-patricia-paccinini-e-ron-mueck-conheca-5-artistas-realistas

 

Velha Alma

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Por onde andas minha velha alma?

Escondida entre folhas em branco?

Espremida entre as horas perdidas desses dias vazios?

Por onde andas minha velha amiga?

Por que andas tão calada, tão ausente, tão desaparecida?

Amanheceres e anoiteceres têm passado e eu não tenho conseguido encontrar-te…

Nem no raio de sol que chega, nem no raio de sol que parte.

Por onde andas minha alma querida?

Andas esquecida de quem somos? Do que precisamos? Do que acordamos quando ainda sonhávamos juntas?

Tenho sentido tanto a tua falta em meus dias, em minhas noites.

Minhas madrugadas não fazem sentido sem tua presença.

Sem ti tenho andado esvaziada, exaurida, ressecada.

Não consigo escrever, não consigo sentir, não consigo viver.

Por onde andas minha alma velha?

Estás escondida? Ressentida? Adoecida?

Do que temes?

Tens preguiça? Estás perdida?

Andei buscando-te entre gavetas, recortes, figuras, livros velhos de poesia.

Em silêncios, lágrimas bobas, memórias esquecidas.

Nos abraços profundos, nas taças de vinho tinto, nas chamas das velas coloridas.

Mas não consigo encontrar-te em parte alguma.

Por onde andas minha alma ferida?

Diga-me: o que preciso fazer para que voltes a cantar em meu peito?

Para que me devolvas a esperança, o frescor dos dias, a alegria?

 

Venha, velha alma.

Venha de volta para mim.

Ajuda-me a nutrir tudo aquilo que somos nós.

Ajuda-me a ver de novo, a entender de novo, a sentir de novo.

Ajuda-me a escrever.

Ajuda-me a suportar.

Ajuda-me a crescer.

Traz-me de volta desse deserto que é viver sem você.

Giulio, o meu amigo de barba

"Ritratto di vecchio con barba" Marcantonio Bassetti (1586 - 1630)

“Ritratto di vecchio con barba”
Marcantonio Bassetti (1586 – 1630)

Entrei na sala e dei de cara com ele. Giulio olhava para mim como se estivesse me esperando há muito, muito tempo. Seu olhar era tão cativante e simpático que eu o cumprimentei mesmo sem conhecê-lo. A paixão foi tão instantânea que eu tive que me controlar para não sair correndo e ir até ele para convidá-lo para um café comigo no bistrô do Paço. Mas eu sabia, que mesmo que quisesse muito, isto infelizmente não seria possível. Giulio está preso há alguns séculos num quadro e por mais vivo que pareça estar não pode sair dali.

Confesso que desde que fui assistir à exposição de pintura italiana no Paço Imperial, não paro de pensar no Giulio. Nele e em todas aquelas criaturas que estão presas lá. Algumas existiram de verdade e são tão bem retratadas que chega a dar um estranhamento olhá-las por mais tempo. Suas almas parecem presas na tinta. Me invade então a inquietante curiosidade de descobrir quem foi cada uma daquelas pessoas. Quem será que foram aquelas criaturas? Será que foram felizes? Pelo que passaram ao longo da vida? O que será que estavam fazendo na hora em que foram pintadas?

Quem viu “Moça com Brinco de Pérola” sabe do que estou falando. O filme de Peter Webber foi uma realização para as minhas fantasias. Na história ele recria o exato momento em que o pintor Johannes Vermeer retrata uma jovem camponesa, e tudo o mais que permeia a criação desta famosa obra de arte. É um filme encantador.

Percorro a exposição e percebo que não é só Giulio que parece estar presente. Tabeliões, condes, homens e mulheres. Sei que era um costume da época retratar o povo, mas qual seria o real desejo de cada um? Tornar-se imortal? Em tempos de selfie, fico imaginando o que há por trás dessa nossa obsessiva necessidade de se fotografar o tempo todo. Desejo de imortalidade também? Imaginem minha imagem fotografada por uma câmera digital, pendurada numa exposição em 2440 e alguém me observando tendo a mesma curiosidade de saber quem eu fui. Será que isso seria possível? Será que a humanidade vai existir até lá?

No fundo o que eu gostaria mesmo era de ser uma viajante do tempo. Ter a licença poética de Deus para conhecer o passado. Descobrir o que fazia esse velhinho bonachão que vocês podem ver aí em cima. Quem ele foi. As pessoas que amou. O que deixou de mais significativo em sua passagem pelo planeta. Acho que ele foi carpinteiro. E deve ter  feito uma cadeira de balanço tão bela para o pintor Marcantonio Bassetti, que este resolveu presenteá-lo com um retrato.

O próprio Paço Imperial é um exemplo de nostalgia histórica inquietante. Nunca consigo passar por lá sem dar uma espiada de rabo de olho nas carruagens e ficar imaginando a cena que Dom Pedro gritou para o povo que ia ficar. Imaginem só o rebuliço que não estava naquela praça, naquele 9 de janeiro de 1822. Não seria fascinante dar um pulinho lá para ver este discurso?

Ah, minha mente viaja. Torço muito para que no futuro uma máquina do tempo seja mesmo inventada e a humanidade possa viajar em todas as dimensões do espaço. Seria maravilhoso receber uma visita dos meus tataranetos. Já pensaram? Sem a menor cerimônia eu pediria a eles para darmos um pulinho no ano de 1600. O que eu faria? Convidaria meu amigo Giulio para tomarmos uma taça de vinho tinto na taberna mais charmosa da Itália. Não seria um programa adorável?

O frio que me habita

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A chegada do frio essa semana me renovou as energias. Ainda estamos no outono, mas sinto que finalmente consigo pensar.

Depois de tantos meses de calor insuportável, do cotidiano esbaforido e melado, das noites mal dormidas na secura do ar condicionado e do superfaturamento da minha conta de luz, o friozinho chegou anunciando tempos de paz e quietude.

Eu não sei direito onde é dentro de mim que a temperatura mexe tanto com o meu humor. Vivemos num país tropical e todo mundo sabe que no Brasil só existem duas estações do ano: o verão e os poucos meses do ano que está um pouco mais fresquinho. Mas essa alegria incontrolável que me causa os 16˚ no termômetro tem uma explicação:

O frio para mim tem um glamour. Uma coisa cinematográfica. Ele veste botas, gorro e cachecol. Talvez seja por todos os filmes europeus que vi ao longo da vida. Talvez seja por essa coisa “Paris” que o frio faz habitar na minha imaginação. Mas sinto que ele nos dá a chance de sairmos de casa um pouco mais elegantes e voltarmos para casa no final do dia ainda razoavelmente inteiros. O frio é perfumado, chique, intelectual.

Claro que o verão tem suas qualidades. É uma estação expansiva, cheia de alegria. O sol brilha, o céu explode o azul, mas tanta energia solar cansa. Dias deslumbrantes de sol exigem da gente uma alegria enorme, e não é todo dia que a gente tá em condições de ser feliz, né?

Mas o inverno é diferente. Ele nos permite uma introspecção quieta. Um respeito maior aos sentimentos. Ele traz um silêncio junto de uma xícara de café fumegante. O frio nos retrai, mas isso não significa uma perda de espaço e sim um reencontro com um lugar interno nosso esquecido durante os meses de calor.

Meu pai costumava contar que os meus ancestrais que chegaram a Joinville no início do século passado sofreram muito com o calor do Brasil. Para quem estava acostumado com o frio da Alemanha, Joinville era uma sauna. Construída sobre um mangue, a cidade das flores no calor não só é muito quente como insuportavelmente úmida. Imagino os meus tataravôs sem conseguir entender aquele suor brotando dos poros e escorrendo por todos os cantinhos do corpo – e a falta da referência histórica de suas roupas pesadas e calefação para viver. Teve gente que morreu de depressão. Barra pesada.

O frio me traz oxigênio. Inspiração para escrever. Uma quietude na alma. Um tempo para ser. Para sentir.

Ele me faz pensar melhor, me dá uma disposição para viver. Ele me traz o vinho tinto, os pratos deliciosos de sopa, o fondue, o chocolate quente. As roupas macias, as luvas e meias coloridas, a lareira. Bem, eu não tenho lareira, mas passo o inverno todo atrás de uma. 

Claro que junto de toda essa coisa glamurosa do frio, vem também a parte sombria da coisa. Na eterna dualidade do meu ser, não poderia deixar de pensar em todos aqueles que não tem nada disso na vida. Nem no mínimo para viver. Não há um dia sequer do meu inverno que eu não pense em quem não tem um lugar para se abrigar, nem um alimento quente para se aquecer. No frio também mora esse aspecto angustiante e dramático como o cenário triste da “Menina dos Fósforos”. Sempre penso nesse história como a história mais triste de todos os tempos.

Vontade imensa de entrar num desses trabalhos voluntários que as pessoas distribuem uma sopa, um casaco, um café com leite. Como são preciosos os seres que disponibilizam seu tempo e energia para fazer bem aos outros. 

Nos ciclos da natureza, o tempo do frio é o tempo de entrar na caverna. Tempo de recolhimento. Para mim é também um tempo de agradecer por todas as bênçãos recebidas. Eu não moro em Paris, mas tenho um teto, alimento e o aconchego de um lar aquecido com muito amor. Sou ou não sou uma pessoa de sorte? 

Dentro

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A vida puxa, os desafios puxam, o externo puxa.

Mas a gente volta para dentro.

O cotidiano pulsa, os problemas se repetem, os obstáculos surgem.

Mas a gente volta para dentro.

A televisão aborrece, o jornal esgota, o laptop absorve.

Mas a gente volta para dentro.

O Facebook drena, o Whatsapp suga, a internet resseca.

Mas a gente volta para dentro.

A política exaure, a violência consome, o futuro amedronta.

Mas a gente volta para dentro.

A família demanda, os amigos pedem, o trabalho exige.

Mas a gente volta para dentro.

A realidade sacode, o tempo escoa, o dever chama.

Mas a gente volta para dentro.

A saúde fragiliza, a mente desequilibra, o corpo padece.

Mas a gente volta para dentro.

a gente volta para dentro
porque é dentro
que mora a nossa paz.

Sobre fronhas e o universo

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Ontem eu estava dobrando uma fronha para guardar no armário, quando uma pergunta me invadiu a consciência: quanto do mundo pode caber em nós?

Já tem tempo que eu não passo mais roupa, mas confesso que o ritual das fronhas aqui em casa é complexo. Eu tenho um lance com fronha. E por isso cuido delas com muito carinho. O sucesso de uma boa noite de sono começa numa fronha cheirosa e macia. Fronhas são portais para o mundo dos sonhos. É através delas que começamos o processo de descanso. Delas e do jeito que deitamos nossas cabeças no travesseiro e dissolvemos todas as coisas que nos aconteceram ao longo do dia.

Mas a pergunta não veio na hora de dormir. Veio na segunda dobradinha da fronha. Quanto do mundo pode caber dentro de mim?

Desde que o mundo é mundo ele tem o mesmo tamanho. Mas antigamente a gente não tinha a dimensão do tamanho que ele tinha. Minha avó tinha uma casa, um quintal, uma janela e alguns sonhos. Claro que ela teve um rádio que ampliou seus ouvidos e uma televisão que lhe abriu os horizontes, mas eu tenho certeza que a minha vó nunca se fez essa pergunta: quanto do mundo podia caber dentro dela.

Perguntas filosóficas sempre me chegam como um soco na boca do estômago e geralmente quando estou debruçada sobre as pequenas tarefas do dia-a-dia. É impressionante. Como se o micro num pequeno espaço pudesse dar passagem ao macro de um mundo infinito.

Isso já tinha acontecido várias vezes comigo. Mas ontem, entre a fronha e a pergunta, um vazio se abriu dentro de mim. E eu acho que foi pela dimensão da pergunta. Porque sem querer ela comprovou uma teoria louca da minha realidade que eu nunca tinha contado para ninguém.

É assim.

De vez em quando, involuntariamente, eu faço um descolamento da realidade, como se na minha mente tivesse instalado um aplicativo do Google Earth que me situasse no tempo/espaço de onde pudesse me perceber no planeta numa perspectiva planetária.

Ai, deixa eu ver se eu consigo me explicar melhor.

Imagina que dentro do meu quarto, há uma câmera me filmando de cima, dobrando uma fronha. E essa câmera aos poucos vai se afastando. Subindo. Como se estivesse num desses drones loucos que tem hoje em dia. O que vemos em seguida é a janela do meu quarto, comigo menor lá dentro, dobrando uma fronha. Ela sobe mais e podemos ver meu prédio, dentro do meu condomínio em Pendotiba, sabendo que lá dentro, eu estou dobrando uma fronha. A câmera continua a subir e então vemos a região serrana de Niterói. Para em seguida abrir um pouco mais para a cidade do Rio de Janeiro, para em seguida abrir para o estado, a região sudeste, o Brasil, a América do Sul, para enfim puxar até vermos o planeta azul, sempre lembrando de mim, lá no meu quarto, dobrando uma fronha.

Essa perspectiva quase sempre me enlouquece. E me faz pensar no tamanho do mundo e na nossa pequenez enquanto matéria, em contraposição ao infinito que representa o nosso espírito. Fico pensando se não foi uma sorte minha avó não ter tido acesso a tanta informação. Porque cá entre nós, esses avanços da tecnologia da informação podem ser fascinantes na perspectiva de evolução do homem. Mas poder ter informações do mundo inteiro através de um único click no mouse pode ser bem atordoante. Imagina a quantidade de imagens, sensações e informações que entram em nós a cada segundo? Bom, para pessoas excessivamente criativas como eu, é um prato cheio para a piração.

Porque fecho os olhos e posso ver uma mulher caminhando no Afeganistão, um bebê nascendo na Bósnia, um casal brindando em Cuba, um menino andando de bicicleta na Dinamarca, alguém comprando um remédio no Egito, uma velhinha falecendo na Finlândia, um casal fazendo amor na Grécia, uma mulher chorando na Hungria, um grupo meditando na Índia, alguém fumando um baseado na Jamaica, um elefante morrendo no Kenya, uma loira se prostituindo em Luxemburgo, alguém se embebedando no México, um homem escalando uma montanha no Nepal, outro rezando em Omã, uma menina tocando piano na Polônia, um sheik espirrando em Qatar, uma serviçal batendo tapetes num castelo na Romênia, um menino andando numa roda gigante em Singapura, alguém andando de balão na Turquia, um senhor fritando um ovo no Uruguai, uma senhora colhendo arroz no Vietnã, um atleta saltando sobre um camelo no Iêmen e finalmente, alguém cozinhando taturanas para jantar no Zâmbia.

Meu Deus.

Quanto desse mundo pode caber em mim já que ele é ele e mais seus sete bilhões de indivíduos?

Será que existe alguém no mundo nesse exato momento se fazendo a mesma pergunta que eu?

Não sei. Talvez eu preferisse ter apenas uma casa, um quintal e uma janela. E sonhar sonhos mais simples e ter um varal apenas para pendurar fronhas ao sol.

Talvez.

Urgência artística

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Final da tarde. Céu azul já se pintando de laranja. Praça XV frenética com seu vai-e-vem de gente correndo para alcançar a barca. Um homem solitário está sentado numa cadeira meio quebrada, solando um som psicodélico em sua guitarra estridente, com os olhos vidrados em algum lugar muito longe dali. O amplificador – a um passo de quebrar também – não me parece amplificar somente sua música, mas também sua explícita angústia de colocar para fora esse desejo incontrolável de expressar-se. Me emociono. Ali está mais um caso de urgência artística, um dos grandes males que sofrem os artistas do mundo. Sei como o moço da guitarra se sente. Porque sou exatamente como ele.

Rapidamente me vem à cabeça meia dúzia de filmes que falam sobre isso. Nicole Kidman, no papel de Virginia Woolf, escrevendo alucinadamente até fazer calos nas mãos em “As Horas”. Ed Harris, no papel de “Pollock”, que quase enlouquece até encontrar sua melhor forma de pintar. Isabelle Adjani como “Camille Claudel”. Salma Hayek como “Frida Kahlo”. Sim, não há dúvida que há algo muito perturbador que assolam os artistas mas o mais incrível, é que mesmo que eles não tenham muita condição de se manifestar – como é o caso do guitarrista da Praça XV – eles sempre inventarão uma forma de serem ouvidos e sentidos. Mesmo que seja numa rua frenética cheia de transeuntes apressados e surdos.

Sigo meu rumo em direção ao CCBB. Esta noite vou assistir a uma peça sobre Clarice Lispector. Que alegria imaginar que daqui a algumas horas eu vou estar sentada dentro de um teatro, numa poltrona confortável, entregue de corpo e alma, simplesmente, a uma manifestação artística de alguém como eu, que não pode viver sem arte. A vida é maravilhosa.

Passo pelo Café Livraria Arlequim. Hummm. Sinto uma vontade incontrolável de tomar um café expresso. Entro no Café e agradeço poder sair um pouco do ar viciado e carbônico da Primeiro de Março e poder entrar num mundo paralelo, apenas atravessando uma porta de vidro. As livrarias definitivamente tem um cheiro divino, principalmente as que se misturam com café. Essa alquimia ainda pode se tornar mais curativa, quando além do olfato você cuida dos ouvidos. Entrei na Arlequim e tive um sopro de prazer. Tocava um tango. Belíssimo! Entrei, fechei os olhos, respirei fundo e disse para alguém que não ouviu: obrigada pelo instante!

Ah essa fartura sensorial de que é feito o mundo! Como é bom poder garimpar no cotidiano formas criativas para se viver melhor. Eu adoro. É claro que a gente precisa nutrir o corpo, mas nutrir a alma é quase tão importante. E não só de obras de arte, mas também da arte que a vida nos dá. No cotidiano, nos sentidos, no observar as pequenas coisas e inundar-se delas. Outro dia ganhei um presente da vida. Eu voltava para Niterói de 750 e me deliciava com aquela beleza absurda do sol refletindo na água do mar  – quando consegui me deparar com uma cena ainda mais linda dentro do ônibus. O trocador, quieto e concentrado, fazia um origami de pássaro numa nota de dois reais.

Uau.

Saramago costumava dizer que “todos somos escritores, só que alguns escrevem outros não.” Eu diria que todos somos artistas, só que alguns tem pressa, outros não.

Redes Surreais

Para Clara Meira

A discussão toda começou por causa de um texto que eu tinha postado e resolvido tirar do ar. Um texto que ela tinha amado. Mas que eu não tinha ficado nem um pouco satisfeita.

– Mas mãe, por que você fez isso?

– Porque eu não gostei do texto, filha. O site é quase um retrato da minha alma. Uma extensão do meu coração. Se escrevo alguma coisa da qual me arrependo, eu tenho todo o direito e licença poética para ir lá e tirar.

– Aff mãe, você se preocupa demais com umas coisas e de menos com outras. Com quantas curtidas está sua página no Facebook?

Ali percebi que a discussão ia esquentar.

– Minha filha, sinceramente, você acha que eu sei essa resposta assim, na ponta da língua?

– Mãe, você parou de abastecer sua página, não dialoga com o seu público, como quer que a página cresça se não investe nela? Nem Twitter você tem!

– Ah não Clara, não me vem com essa história de Twitter de novo…

– Mãe, o Twitter tem um poder muito maior de divulgação que o Facebook. E o seu Instagram, há quanto tempo você não coloca nada lá? Assim não dá mãe…

– Mas filha, para mim é tudo a mesma porcaria. Eu não consigo entender para que tanta diversidade de rede social. Pensa bem: é Whatsapp, Facebook, LinkedIn, Twitter, YouTube, Instagram, Skype, Vimeo, Snapchat, Tumblr. Caramba! Todo mundo tem tanta coisa pra falar, mas quantas se escutam? Eu conto nos dedos os amigos que eu realmente troco alguma coisa de verdade.

Ela fez aquela cara que ela faz quando tá arquitetando uma resposta inteligente para me desarmar.

E de repente, me deu um aperto no peito. Uma angústia, misturada com frustração, com desânimo. Meus olhos se encheram d’água e eu não sabia mais o que falar.

Ela desarmou a cara de briga e me olhou com aquele olhar doce de quem entendeu tudo. E veio me abraçar com todo o carinho.

– Mãezinha, por que você tá chorando?

Eu queria tentar explicar para ela que os poucos anos que dividem as nossas gerações, transformou tudo rápido demais e o que parecia tão simples e óbvio para ela, não fazia quase nenhum sentido para mim.

– Clarinha, eu sou de um tempo muito diferente do seu. Quando eu tinha a sua idade ninguém tinha acesso a computador. Não existia essa tecnologia toda que existe hoje. Imagina que só tinha aparelho para tocar CD quem fosse muito rico. O máximo que eu tive em casa foi um telefone com fax e isso era assim uma coisa muito extraordinária. Eu tinha aparelhos eletrônicos sim, mas era um toca-fitas, uma vitrola e um aparelho de videocassete para ver filmes alugados. Você sabia que se a gente não rebobinasse a fita pagava uma multa na locadora? Você entende agora a diferença dos nossos tempos?

– Entendo mãe, claro que entendo. Mas hoje você tá muito bem adaptada às modernidades desse novo tempo, só resiste um pouco a elas.

– Eu to, claro que eu to. Eu tenho um laptop meio calhambeque, mas tenho. Tenho um site oficial de crônicas e isso eu agradeço muito porque foi a chance que eu tive de mostrar para muita gente aquilo que escrevo. Eu tenho um celular moderno, com android – mesmo sem saber direito o que isso significa – e eu tenho conta em algumas redes sociais, mas no fundo, lá no fundinho de mim, eu sempre fico com a impressão de que esses lugares mais me sugam energia do que me nutrem…

– Como assim, mãe?

– Ah Clara, tem muita gente postando coisas interessantes nas redes sociais, mas na grande maioria o que vejo é o retrato de uma geração solitária e esvaziada de sentido. Por exemplo: as pessoas amam tirar selfie. Tudo bem. Mas para quê tanto selfie? Ninguém mais tá vivendo o momento, porque só se preocupa em registrar o momento.

– Mãezinha, não precisa levar tudo tão a sério… Posso te falar uma coisa?

– Pode.

– Você não quer ser uma escritora famosa e poder viver do que escreve?

– Sim.

– Você não sabe que o caminho para publicar um livro através de uma editora é bem complicado?

– Sei.

– Então, a internet mãe é uma ferramenta poderosa porque atinge muitas pessoas em segundos. Eu sei que isso te assusta um pouco, mas respira e segue em frente.

– Eu não sei se eu consigo dar conta desse mundo, filha.

– Presta atenção. Foca nas três redes mais importantes para você agora. O Facebook, o Instagram e o Twitter são redes diferentes, mas você precisa de todas para formar uma grande rede de pessoas. No Facebook você pode trocar coisas interessantes com os seus amigos, divulgar seus textos e ideias. O Instagram é um registro mais pessoal de você como pessoa e o Twitter é aquela rede social mais rapidinha, que tudo acontece em segundos, mas que por causa da possibilidade dos retweets, você vai atingir muito mais gente…

– Mas como que eu vou dar conta de tanta coisa num dia só? Abastecer todas as minhas redes sociais, escrever, ler, cuidar de vocês, de mim, da casa, do trabalho e do espírito? Eu não vou dormir né?

Dessa vez ela abriu um sorriso tentando buscar paciência.

– Mãe, é só se organizar que você vai conseguir. Quer que eu te ajude?

– Quero.

– Quer perguntar alguma coisa?

– Quero. O que é retweet pelo amor de Deus?

 

Eu já tenho

chazinho

Arte de Inge Löök

Outro dia olhei para o meu pé e me dei conta de uma certeza avassaladora: eu já tenho um joanete.

Eu já tenho manchas brancas na pele. Brancas e beges. Daquelas que as velhinhas alemãs têm aos montes.

Eu já tenho varizes nas pernas.

Eu já tenho manias.

Mania de tomar chazinho antes de dormir. Mania de passar creme no cotovelo antes de dormir. Mania de dormir na frente da televisão.

Surdez eu sempre tive. Isso não é novidade. A novidade agora é colocar os óculos para ler, depois de não aguentar mais esticar o braço para reconhecer qualquer coisa.

Eu já tenho uns cansaços esquisitos, uma dor no calcanhar misteriosa e uma câimbra na costela esquerda desde a última gravidez.

Eu já tenho rabugices. Detesto quando os homens da minha casa fazem xixi e não fecham a tampa de volta. Me irrito quando abro a geladeira e não tem água gelada nas garrafas, mesmo não gostando de tomar água gelada. Reclamo baixinho sempre que posso. Resmungar é uma rabugice deliciosa de fazer.

Eu já tenho muitas histórias para contar que aconteceram há mais de duas décadas. Tá. Há mais de três. E isso de vez em quando me assusta.

Eu já tenho rugas nos olhos. E um olhar diferente para as coisas. Incrivelmente, eu hoje tenho mais calma do que jamais tive e isso é maravilhoso porque foi o que mais sonhei para minha idade avançada. A serenidade para olhar e reagir à vida.

Eu já tenho filhas que me aconselham, sobrinhos que namoram e uma tiavó de 105 anos que já não lembra mais muito de mim.

Eu já tenho cabelos brancos. E levo um susto cada vez que o cabelo ruivo cresce e eu me dou conta de que não sou ruiva e no meu couro cabeludo mora uma grisalha que eu nem conheço.

Eu já tenho isso tudo e nem fiz cinquenta anos. E o melhor, estou muito feliz por isso.

 

P.S. Quando fui pesquisar imagem para colocar no texto, achei essa preciosidade no Google. Pinturas de velhinhas felizes da artista finlandesa Inge Löök! Tudo que eu sonho para minha velhice. Divirtam-se!

http://www.contioutra.com/as-velhinhas-felizes-da-artista-finlandesa-inge-look/

 

Ladies and Gentlemen

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Ele estava sozinho numa sala toda branca, gelada e silenciosa. Enorme, imponente, colorido. Ocupava quase toda a parede de um extremo ao outro numa das salas da exposição de Andy Warhol no Centro Cultural Banco do Brasil. Entrei sozinha e fiquei ali, em estado de choque, ao me deparar com a imagem que via. Era um retrato duplicado de duas mulheres, carregado de muita tinta, que delineava formas e texturas e enchia de sombras um simples retrato.

Para falar a verdade, até aquele momento, a exposição não tinha me emocionado muito. Eu conhecia um pouco da história de Warhol e da importância de tudo que ele tinha feito – e pensado – sobre arte no mundo contemporâneo. Gostava da releitura com a imagem da Marilyn Monroe e da reflexão que ele sugeria ao imaginar que até as celebridades, ao serem retratadas de forma mecânica e em série, podiam se transformar em figuras impessoais e vazias. Mas daí a me emocionar com que ele tinha feito eram outros quinhentos.

Eu fui porque precisava ir. Porque não perdia uma única exposição no CCBB. E porque queria entender e ver de perto o que o mundo chamava de “pop art”. Mas na hora que eu entrei naquela sala e deu de cara com aquele quadro, meu coração congelou.

A tela eram dois retratos idênticos, um acima do outro, numa mesma tela gigantesca. Duas mulheres, duas faces de mulheres, uma mais à frente e a outra recuada para trás, como se abraçasse a primeira pelas costas. Bom, para falar a verdade as duas eram meio andrógenas, mas eu as vi como mulheres. Estavam sérias.  E o que diferenciava os retratos eram as cores que predominavam em cada imagem: laranja, rosa e azul na de cima. Verde, roxo e um outro tom de laranja, na de baixo. Pois bem. Tudo teria sido igual se a mulher que estava mais à frente no retrato não tivesse uma estarrecedora semelhança comigo.

Fui olhar o nome do quadro: chamava-se Ladies and Gentlemen e tinha sido pintado no ano de 1975. Rapidamente fiz as contas de quantos anos eu teria na época. Em seguida me senti ridícula por ter feito isso. Voltei a olhar a imagem. Eu olhava para ela e ela olhava para mim e eu comecei a sentir um desconforto esquisitíssimo. A boca pequena, o lábio fino, o nariz, o formato do rosto, o olhar sério, o cabelo, o jeito. Eu sabia que era uma loucura pensar isso, mas eu pensei. E num fração de segundos eu imaginei que aquela mulher talvez pudesse ser eu. Numa outra vida, numa outra época, numa outra geração, num outro nome, numa outra dimensão.

Na mesma hora me lembrei de um dos meus filmes favoritos do Krzysztof Kieslowski: A Dupla Vida de Veronique. Numa das cenas do filme, o personagem de Irene Jacob se vê de longe numa praça. Ela está dentro do ônibus e por um instante a “outra ela” a vê também dentro do ônibus e elas se reconhecem. Essa foi uma das cenas mais emocionantes que eu já vi no cinema e agora eu estava ali, com a mesma impressão e pavor por estar me reconhecendo num quadro de Andy Warhol.

Ah, esse dia foi muito surreal. Eu demorei horas para conseguir sair daquela sala. Fui à livraria, comprei o catálogo da exposição e fiquei sentada o resto da tarde naquela escada que tem no vão central do CCBB com o livro no colo e um café na mão, com o olhar perdido e uma sensação esquizofrênica de ter perdido algum capitulo da minha vida.

Eu sabia que nada nem ninguém poderia me explicar aquela sensação de dejavú que eu estava sentindo. Mas vamos combinar que não é todo dia que uma coisa dessas acontece na vida de uma pessoa. Qualquer um teria ficado esquisito. E como eu definitivamente não me sinto qualquer um, até hoje essa história me arrepia os cabelinhos.

De tempos em tempos eu tiro esse livro da estante e abro na página 91 e fico olhando para essa Tatiana. E penso que não seria tão mal assim um dia encontrar comigo mesma, quem sabe, tomando um café nas escadarias do CCBB. Nas minhas viagens quânticas, seria mais uma chance de reinventar minha existência.

Quem sabe.