Perdigotos da Alma

Arte de Anne Marie Zilberman

A vida às vezes se revela de forma estranhíssima. Mas é preciso estar atento e forte para decodificar os sinais, por mais esdrúxulos que eles pareçam ser.

Tudo começou na semana passada quando Catarina reclamou comigo, amorosamente, que eu agora tinha dado para cuspir enquanto falava.

Depois de fazer cara de nojo e rir, pedi desculpas para ela e disse que era um movimento involuntário. Que eu nunca tinha percebido isso em mim. Mas que ficaria atenta.

De noite comentei com Edu sobre o episódio e ele danou a rir. E confirmou que já tinha reparado que de uns meses para cá eu andava cuspindo para falar.

Cruzes, eu pensei. Troço mais nojento alguém que cospe para falar.

Dali em diante passei a me policiar. Até que um dia consegui confirmar o crime. Vi com nitidez o perdigotozinho ser expelido da minha boca. Que coisinha nojenta. Na hora me deu muita vontade de rir.  Depois me veio uma enorme curiosidade de entender, porque de um dia para o outro, eu tinha começado a cuspir para falar.

A resposta veio de uma forma mágica e surreal, como quase tudo na minha vida.

Eu estava folheando meu livro de cabeceira, “A Doença como Símbolo” de Rüdiger Dahlke (Pequena Enciclopédia de Psicossomática) a procura das possíveis causas emocionais da pressão alta do meu namorado, quando dei de cara com a palavra PERDIGOTO no dicionário.

– É agora, pensei comigo. É agora que eu vou entender esse cuspe na minha vida.

Qual foi o meu choque ao me deparar com o que estava escrito. Como um soco na boca do estômago, ou um safanão na cara daqueles de novela, as causas emocionais dos perdigotos me jogaram num vazio existencial profundo.

Lá dizia:

“Plano corporal: boca (expressão). Plano sintomático: cuspir ao falar, cuspir nos outros durante uma conversa: expressar agressividade inconsciente, fala molhada, fala da alma: a carência de uma participação anímica interior torna-se visível. Tratamento: tomar consciência dos planos que inconscientemente vibram junto com a fala, proporcionar válvulas libertadoras à alma em sua própria expressão, conceder espaço aos conteúdos que vem através dos modos de expressão.”

Gente! Que loucura!

Eu tô cuspindo nas pessoas porque não escrevo, porque há meses não expresso meus turbilhões internos, não dou vazão às questões da minha alma e não escrevo mais.

Caramba.

Caramba.

Aquilo foi para mim um dos maiores insights dos últimos tempos. Sem terapia, eu tinha conseguido sozinha entender de onde estava vindo tanta tristeza, apatia, desânimo, confusão mental e cuspe: falta de escrita.

As minhas desculpas são sempre as mesmas. Falta de tempo, excesso de demanda. Mas a verdade é que nos últimos meses desse conturbado ano de 2018 a gente tem vivido uma depressão coletiva. Com tudo que tá acontecendo fora, tem sido difícil acessar o dentro. Porque essa coisa de matar um leão por dia cansa muito. E quando eu chego em casa de noite, só penso em comer, tomar banho, engolir uma melatonina e cair dura na cama. Acho que esse processo é um desejo inconsciente que o sonho resolva para mim, tudo aquilo que eu não consigo resolver na realidade. Não é a toa que tenho tido tanto pesadelo. Mas enfim.

A verdade nua e crua é que talvez eu precise entender que muito mais importante do que dormir, seja despertar. E que escrever seja uma forma de salvar-me desse apocalipse que a gente tá vivendo. Há um peso generalizado. Da violência, da crueldade. Da impunidade, da falta de perspectiva de mudança.

Essa semana eu tive uma visão que estava perdida em alto-mar. Completamente sozinha. De longe eu me via, e não sabia o que fazer para me salvar. Até que a frase do Ferreira Gullar me chegou como um bote salva-vidas: a arte existe porque a vida não basta.

Pronto. Foi o que bastou para eu acordar e perceber que não dá para ficar cuspindo nas pessoas. Eu preciso escrever para entender o mundo. Eu preciso escrever para não morrer. Eu preciso escrever porque em algum lugar da minha alma, eu sinto que ao expor meu coração, eu ajudo a alguém a ter coragem de fazer o mesmo. É preciso encontrar uma forma de salvação em meio ao caos que vivemos. É preciso acreditar que a esperança é a última que morre. E quem sabe até, acreditar que a esperança não morre. Jamais.

O café com leite da Ari

E por falar em conversinhas com Deus, outro dia minha amiga e parceira Arianne me contou que tomava doze canecas de café com leite por dia. Levei um susto. Mas ela arrematou. “É meu jeito de me encontrar com Deus.”

Gente, achei essa uma das declarações mais bonitas que eu já ouvi na vida. E parei para pensar que essa coisa de querer ser “catadora de lindezas” no fundo, no fundo, é um pouco isso: esse desejo incessante de de querer encontrar com Deus.

Quando escrevi “Onde Habita Minha Alma”, aquela lista nada mais era do que um mapa do tesouro para encontrar com o Criador. Não que eu o perca de vista de vez em quando. Não. Deus está em mim e em todas as coisas. Mas foi o que disse ontem, as vezes eu fico surda. E essa possibilidade de ter um mapa, de poder ter um encontro mais íntimo com ele, mais tête-à-tête, me faz encontrar um pouco de sentido nessa coisa mega sem sentido que é a vida.

Meu pai é ateu. E eu tenho um monte de amigos que não acreditam em Deus. Tá tudo certo. Aos 44, finalmente entendi que não preciso convencer ninguém de nada. Mas também entendi que não preciso me desculpar por ter essa facilidade de comunicação com o cara.

Guimarães Rosa dizia que a “felicidade se acha em horinhas de descuido”. Eu vou além. Eu acho que em horinhas de descuido, eu sou como a Ari, que encontra Deus dentro do seu cafezinho com leite.

Esse texto é para você minha amiga, que me ensina tanto sobre a vida, todos os dias.

Chão de grama

Eu sou uma criatura de sorte.

De tempos em tempos, mesmo com a dureza crua dessa rotina que a gente insiste em viver, Deus me dá um sacode bonito e eu volto a ver um pouco daquilo tudo que está ao meu redor. O despertar dessa anestesia chega a ser emocionante de tão simples que é.

Todos os dias estaciono o meu carro na mesma vaga, na mesma posição, há mais de sete anos.

Mas hoje, depois de voltar do supermercado, minha retina ficou retida numa cena deslumbrante. O chão de grama estava coberto das pétalas da árvore. Coberto. Eu já tinha fotografado Catarina naquela grama, já tinha achado linda aquela cena, mas hoje aconteceu alguma coisa diferente dentro de mim que me fez ver aquilo tudo com os olhos da alma.

Como pode uma imagem estar carregada de tanta poesia? Tanta beleza, equilíbrio, delicadeza, simplicidade. É só um chão de grama coberto de pétalas de flor. É só um chão verde de grama fresca coberto de finas pétalas cor de laranja. Como pode?

Foi naquele pedacinho de mundo hoje que eu entendi um monte de coisas. Mas uma delas é que esse é o caminho que eu quero caminhar na minha vida. Um caminho de poesia e delicadeza. Um caminho simples onde eu possa de vez em quando ouvir Deus falando comigo.

Carta aos meus pés

Meus queridos pés,

Caminhamos juntos há quase quarenta e quatro anos.

Chegamos a esse planeta num parto rápido e indolor, num país chamado Brasil, mais precisamente nas terras de Minas Gerais, no outono de abril de 1973.

Não demoramos muito a nos firmar no chão. Nossos primeiros passos foram dados em Teresópolis, numa solitária casinha no Vale São Fernando.

Nossos primeiros anos foram preciosos.

Nos refrescávamos em riachos, pisávamos felizes em pedrinhas, grama verde e chão de terra batida. Corríamos livres por colinas e bosques. Subíamos em árvores altas, escalávamos montanhas, percorríamos nosso pequeno mundo com curiosidade. Tínhamos muita coragem.

Crescemos e fomos parar na cidade grande. Estranhamos muito o Rio de Janeiro. A dureza do asfalto, a pressa das pessoas, a ausência dos vaga-lumes. Mas nos encantamos a primeira vez que pisamos na areia da praia de Ipanema. Encontramos o mar e o mar nos curou da saudade da terra.

Foram anos bonitos também.

Andávamos de patins, de bicicleta. Aprendemos a dançar, a gostar da cidade, tínhamos muitos amigos. Até que um dia encontramos um solo tão precioso para nós quanto um dia tinha sido a terra. Lembram? Foi quando pisamos num palco de teatro pela primeira vez. Depois de muitos anos, tínhamos encontrado de novo um lugar no qual nos sentíamos em casa.

Foram anos emocionantes.

Brincávamos de ser outros pés, de existir de outras formas. Sonhávamos acordados, voávamos para onde queríamos. Descobrimos que a vida era sonho e que sonhar também podia ser uma forma de caminhar pelo mundo.

Mas o tempo passou. E o tempo nos trouxe o tempo de carregar outros pés dentro de nós. Colocamos no mundo dois pares de pezinhos encantadores. E encontramos de novo o sentido de existir.

Foram anos incríveis. E muito trabalhosos também.

Porque passávamos quase o tempo todo ou alimentando os pezinhos ou correndo atrás deles. Acho que nunca podíamos imaginar o que significava colocar outros pés no mundo.

Foi quando a vida nos levou a percorrer outros solos do nosso país. Fomos para São Paulo, para Joinville. Mudávamos de endereço como quem muda de sapato. Buscávamos alguma coisa que nunca encontrávamos.

Foram anos estranhos.

Até que chegamos a Niterói. Cidade que vivemos hoje. E durante muito tempo aqui fomos felizes. Até que vocês adoeceram.

Há mais de um ano, vocês passaram a sentir muitas dores para caminhar. No início, a dor acontecia somente na hora de sairmos da cama. Eram os primeiros passos depois do sonho que nos faziam sofrer. Mas com o passar dos meses, a dor no caminhar foi se transformando em algo constante e muito angustiante para nós.

Falo com vocês, tento entender o que sentem, mas nenhum dos dois parece me ouvir. É onde nós estamos que vocês não querem mais estar? É por onde caminhamos que vocês não querem mais caminhar? A dor paralisou vocês e eu preciso entender por que.

Temos vivido um período de profunda tristeza. Cuido de vocês com toda a dedicação. Já fiz de tudo que podia. Tudo que estava ao meu alcance. Massagem com cremes, banhos de óleo com canela. Salmoura com ervas. Gelo úmido. Comprei sapatos confortáveis. Tomei anti-inflamatórios, babosa, florais. Encomendei pantufas coloridas. Toalhas felpudas para secar vocês. Fiz fisioterapia com bolinhas, moxabustão. Fiz carinho. Escrevi em vocês palavras de amor e cura. Os abracei com amor. Mas nada parece ajudar.

Meus pés, meus queridos pés

O que é que vocês estão tentando me dizer com essa dor que não cessa nunca? Que vocês não querem mais caminhar? Ou que não suportam mais o caminho que escolhemos trilhar?

Será que não nos enraizamos o que precisávamos para estar aqui? Será que nunca ancoramos na Terra como deveríamos? Ou será que precisamos agora de asas para voar?

Meus pés, falem comigo. Me digam o que preciso fazer para que parem de chorar.

Sei que sentem falta do tempo que andávamos livres por riachos e também sentem saudade dos palcos da vida. Mas será que são essas ausências que fizeram vocês adoecerem? Me deem uma pista do que posso fazer. Por vocês… por nós.

Se estamos vivos, é sinal de que nossa missão ainda não chegou ao fim.

Mas não me deixem aqui sozinha. Caminhar sem vocês não faz sentido algum. Porque não conseguirei caminhar por inteiro. E muito menos ser feliz.

 

 

O ancião de barro

Comprei um filtro de barro esses dias.

Depois de passar anos sonhando com essa peça de museu, outro dia achei uma loja no centro de Niterói que tinha um com preço ótimo. Trouxe o bichinho para casa com o amor e o cuidado como quem traz um filho recém-parido da maternidade.

Os primeiros dias foi uma história de amor. A gente não parava de se namorar.  Era eu passar pela cozinha que queria fazer um carinho nele.

Passada a primeira semana, comecei a perceber que ele era um pouco lento na filtragem. O vendedor tinha me alertado sobre isso, disse que a vela demorava um pouco para ganhar velocidade.

Esperei mais uma semana.

Duas.

Três.

Com um mês de filtro, a paixão começou a virar irritação. As meninas começaram a reclamar de falta de água, eu perdia a conta de quantas vezes já tinha enchido e esvaziado a botija e no frigir dos ovos, estava comprando mais garrafas d’água na padaria do que pão.

Foi quando me deu o clique.

Eu tinha sentado para tomar um café na mesa da cozinha, de tarde, sozinha. E enquanto esperava o café esfriar na xícara, olhei fixamente para o filtro. Com a mesma raiva embotada de antes. Até que o mundo ao meu redor escureceu. E o filtro, sozinho no meu campo de visão, sussurrou o que eu precisava ouvir. E eu entendi. Entendi tudo.

O filtro não era só um filtro. Era um retrato do tempo. Não como uma ampulheta, mas como um velho ancião, um sábio, que chega à vida da gente para nos ensinar lições profundas sobre a existência.

Eu senti vergonha de mim. Da minha pressa, do meu imediatismo, da minha surdez. Aquele filtro tava tentando, há mais de um mês, me ensinar que por mais que eu tente, por mais que eu corra, por mais que eu queira o tempo não vai ser o tempo que eu quero que ele seja. O tempo é do tempo que as coisas precisam para ser. Para existir.

Como a mãe que espera para ver o filho nascer, o arco-íris que espera a chuva cair, uma planta que espera para florescer, um dia que espera a noite chegar, uma lua que espera para mudar, uma maré que espera para encher, uma vela que espera para queimar, um fruto que espera para amadurecer, uma vida que espera para findar.

A gente não tem mais tempo de esperar. A gente quer a vida depressa, a gente quer a vida pronta. Tem microondas para descongelar o feijão. Tem despertador para acordar da ilusão. Tem Waze para cortar o trânsito, tem Whatsapp para encontrar as pessoas, tem Facebook para validar a vida. A gente tem isso tudo, mas tempo, isso a gente não tem mais.

Depois desse dia, passei a olhar para o filtro com uma enorme gratidão. Porque ele estava ali, na minha cozinha, para me lembrar todos os dias, que eu não preciso correr tanto para viver. E que para ser – ser num sentido mais profundo de existir – eu vou precisar mesmo caminhar no contra fluxo do mundo. Mesmo que isso seja difícil. Mesmo que todo mundo me estranhe.

O que está posto não muda. O que muda é o nosso jeito de caminhar. O nosso poder de escolha. Eu escolho por uma vida menos acelerada e mais cheia de sentido. Eu escolho filtrar e deixar para trás tudo aquilo que me não me alimenta e não me faz bem. Eu escolho desacelerar minha corrente sanguínea, meu batimento cardíaco, para simplesmente voltar a ter algum tempo.

Pensar que no dia que comprei o filtro de barro, estava comprando de volta a minha liberdade.

A vida é maravilhosa.

Catadora de Lindezas

Arte de Pieter Bruegel

Para Rosane

Esse ano eu amanheci diferente.

Também pudera.

Dia 31 não fiz nenhuma lista de metas para o próximo ano. Não prometi nada para ninguém nem para mim mesma. Não fiz nenhuma expectativa para a festa de réveillon. Não tive pressa do tempo.

No último dia do ano, passei o dia experimentando a difícil e linda tarefa de não reclamar de nada. De verdade.  Respirando fundo quando me aborrecia. Agradecendo mentalmente tudo aquilo de maravilhoso que tenho em minha vida. Agradecendo a chance de estar viva e poder recomeçar.  Tentando me perdoar pelos erros que ainda me atormentavam. Mas, sobretudo, desejando ter entendido tudo que a vida me ensinou, para pelo amor de Deus não ter que voltar para mesma lição, toda de novo, no início do ano.

Esse ano eu amanheci diferente.

Com um propósito simples de olhar para vida de um lugar diferente. Todos os dias. Como se eu simplesmente pudesse mudar de ângulo. De perspectiva. Numa mesma vida. Num mesmo corpo. Numa mesma alma. E parte dessa decisão se conectava justamente ao ato de não querer mais reclamar. Reclamar é um veneno que intoxica. E apodrece a gente por dentro.

Transformar o lamento em alguma coisa melhor pode ser um ato diário extraordinário. Porque todos os dias eu preciso lavar louça. Mas não é por causa disso que preciso me estressar tanto. É preciso reinventar a coisa. É preciso aprender a brincar com a espuma. Conversar com as xícaras.  Fazer poesia com as panelas.

Foi quando me lembrei de um texto que recebi de uma amiga querida esse ano que dizia assim:

“Eu venho de um lugar que é luz mesmo em noite escura. Que é paz, fé e carinho.
Eu venho de lá e não estou sozinho, “sou catador de lindezas”, sobrevivo de encantamento, me alimento do que é bom, do bem. Procuro bonitezas e bem querer, sobrevivo do que tem clareza e só busco o que aprendi a gostar.”

Nessa hora, minha alma deu um estalo. E eu decidi o que queria fazer em 2017. Ser catadora de lindezas. Virar uma caçadora de poesia nas coisas escondidas. Mudar o olhar para o mundo. E fazer isso diariamente. Não só no dia de inspiração profunda. Mas também no dia da tristeza, do mau humor, da desesperança. Para mudar, é preciso alterar as nossas configurações mais profundas. Parar de reclamar é uma escolha. Viver poeticamente também.

Esse ano eu amanheci diferente.

Também pudera.

Voltei a escrever.

P.S. O trechinho do texto lindo é da autora Rita Maidana.

Uma carta para Marcia do Valle (ou esse labirinto dentro da gente)

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Marcinha, minha amiga querida

Há umas semanas atrás você encontrou Clara e Catarina no ônibus e perguntou sobre os meus textos. “Cadê os textos da tua mãe, gente?” Elas riram. Adoram você. E trouxeram a notícia como quem traz uma sementinha. Jogaram a coisa dentro de mim e quem diria, a coisa brotou.

Desde então não paro de pensar em você. E nesse vazio que ficou lá no “Onde Habita Minha Alma” desde que me perdi pela última vez. Levei um susto ontem quando me dei conta que tem mais de dois meses que eu não escrevo. Nem uma linha sequer.

É impressionante como a gente se perde nessa vida. A toda hora. A todo instante. Eu sou mestra em me perder de mim mesma. E me encontrar. E logo em seguida me perder. Até parece que a minha existência foi plantada num labirinto.

A grande verdade minha amiga, é que essa coisa de existir para mim é bem complicado. Principalmente existir todos os dias. Porque se eu tivesse que existir só de vez em quando, talvez eu desse conta. Mas todo dia po. É uma canseira esse troço. Principalmente quando a gente se exige inteireza. Aí é que a coisa pega.

Minha alma é um vendaval, você sabe. Bastou ventar mais forte que eu me desequilibro. Há dois meses minha vida deu uma desmoronada – nada grave, os desmoronamentos normais da vida – e aí eu fiquei sem telefone, sem internet, depois tive que mudar às pressas de onde eu morava para o antigo apartamento da minha mãe e desde então, passei a viver acampada entre caixas. Se isso já é uma coisa esquisita, imagina para uma taurina? Fora que eu ando trabalhando exaustivamente na Escola. E trabalhando exaustivamente nesse projeto que é criar dois seres humanos. Parece bobagem . Mas foi o bastante para me perder. E quando eu me perco, a primeira coisa que acontece é eu parar de escrever.

Deveria ser o contrário né. Lembra daquela mãe-de-santo que me disse uma vez que minha escrita deveria ser meu porto seguro, meu norte, minha bússola? Pois é.  Pois eu nunca consigo colocar isso em prática. E ao invés de jogar esse bote salva-vidas na água, eu fico me afogando que nem uma louca no mar de todos os dias. Por que eu faço isso? Porque eu sou um ser humano e apesar de toda genialidade genética da minha espécie, no fundo eu sou um poço de contradição e chatice.

Mas enfim, minha bichinha, às vezes a mágica acontece e uma pessoa do nada chega na vida da gente e sopra uma esperança. Como foi o seu caso, lá naquele ônibus, quando fez a tal pergunta para as meninas.

Por isso, e por mais um bocado de saudade, resolvi vir aqui te escrever e dizer, que mesmo perdida, eu vou seguindo o curso do rio. Porque no fundo acredito que alguma hora, alguma correnteza vai fazer sentido. Que as desventuras em série vão se esclarecer, os medos vão se dissipar e o equilíbrio vai voltar a governar. Pelo menos até a próxima encruzilhada.

Tem duas coisas que tem me ajudado muito no labirinto: uma é chamar pelo presente. Conhece aquele gnomo da luz, Eckart Tolle? Cara, desde que descobri esse homem e essa teoria do “Poder do Agora” que não paro de pensar no quanto é possível dissipar as angústias se a gente chama pela nossa simples presença nos dias. Essa teoria dele é genial, mas como tudo no cotidiano, fica forte quinze minutos e se perde no resto das 23 horas e quarenta e cinco minutos do dia. Mas esses quinze minutos! Ah caramba! É o nirvana. Porque é isso Marcinha! Não existe nada que não seja o momento presente. No fundo, no fundo, repara. A gente tá sempre sofrendo muito pelo que passou ou pelo que ainda nem chegou. Faz uma lista! É impressionante descobrir o quanto a gente é refém dessa merda de mente pensadora enlouquecida e esquizofrênica. Mas enfim.

E a outra é pensar, assim que eu acordo, onde é que está meu coração naquela manhã. Aprendi isso com uma amiga querida aqui de Niterói, a Catita. Uma irmã de caminho maravilhosa que você ia adorar conhecer. Ela me ensinou que grande parte da desconexão da gente diária se dá, porque nem todo dia a gente sabe onde está nosso coração. Situá-lo no mundo significa essencialmente nos ouvir a cada manhã. Entender e acolher a forma que acordamos. Entender se estamos fortes para a luta, ou sensíveis demais. E nos alinhar para a forma que conduziremos o dia. E nos respeitar apesar de todos os pesares.

Eu me alinho muito quando ouço músicas que habitam minha alma. E acendo uns incensos cheirosos. E tomo um café com Adélia Prado e faço minhas preces de gratidão à vida e a todas as infinitas bênçãos que tenho – apesar de ainda desejar tantas que ainda não tenho (olha a contradição aí de novo pentelhando). Mas enfim, paciência Tatiana, paciência com a sua humanidade.

E como humana anônima repito: só por hoje consegui escrever. Só por hoje consegui me conectar. Só por hoje tenho coragem de confessar: morro de saudade e desejo de voltar aos palcos contigo. Uma hora dessas, eu encontro a saída e a gente vai ser capaz de se reencontrar. Não só na vida, como na arte.

Te amo, minha irmã. Nunca se esqueça.

Beijos da tua eterna, Tatiane Pelinque

 

Amor e verdade

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Para Marcia Cypriano

Eu sempre achei essa coisa de “lema de vida” uma coisa meio cafona, meio lugar comum, meio comercial da Nike. Talvez por preconceito. Talvez por temer ficar na superfície das coisas, como se uma frase de motivação não pudesse nunca resumir um sentido de vida para mim. Uma atitude bem pedante se a gente for pensar, mas era assim que eu sentia.

Aí um dia eu conheci um cara que revolucionou a minha forma de olhar o mundo. Que me fez despertar de um monte de coisa esquecida em mim e me fez reavaliar metade das coisas que eu achava que pensava do mundo. Sabe essas pessoas que a gente conhece e acabam virando um divisor de águas na nossa vida? Pois é. Isso foi o que fez Jonatan Agra quando chegou na minha vida. Uma bagunça incrível que eu nunca vou esquecer.

Eu não sei bem como a coisa começou. Eu sei que duas palavras surgiram nas nossas bocas e passaram a ser repetidas como um mantra. Quando a gente via, lá vinham elas de novo, trazendo tudo que a gente queria dizer. Foi então que a gente entendeu que elas tinham chegado para ficar. E que de alguma forma, tinham virado um lema de vida. A gente passou a ter orgulho delas. E orgulho de ter um lema. Para vocês verem como a vida às vezes dá um safanão na nossa cara. Mas tudo bem.

Amor e verdade.

De repente, tudo no meu cotidiano parecia perfeitamente espelhado no sentido mais profundo dessas duas palavras. E elas passaram a ser um pilar. Uma estrutura básica de conduta e força para a minha vida. Uma coisa linda. Poética. Viva. Real.

Mas… A vida é como ela é.  E não é só é uma caixinha de surpresas. Mas também um baú de concreto que de vez em quando cai sobre as nossas cabeças. Mesmo que a gente ache que já passou por tudo, não. Não passou.

Então, na semana passada, um golpe do destino me fez cair do cavalo e me fez regurgitar meu lema de vida só para me mostrar que as coisas não são tão simples como eu gostaria que fossem e que para se ter um lema de vida é preciso muito mais do que proferir duas palavras. E preciso entender que ou elas caminham juntas, ou podem simplesmente se aniquilar.

A vivência foi simples. Eu coloquei o amor na frente da verdade, contei uma mentira e vi todo o meu mundo despencar. Foi patético. E muito doloroso.  Porque acabei ferindo outras pessoas, mesmo sem ter tido a intenção.

Mentira é uma coisa muito esquisita. Porque ela é tolerada pela sociedade desde que o mundo é mundo e muita gente acabou se acostumando com ela. As pessoas falam mentiras, os políticos falam mentiras, as propagandas falam mentiras. Ela está entranhada no nosso dia-a-dia. E a pergunta que me faço é: por que é tão difícil falar a verdade?

Prestemos atenção num dia de 24 horas: quantas pessoas no mundo conseguem passar um dia inteiro sem contar uma mentirinha sequer? Para alguém ou para si mesmo?

Aquele ditado que mentira tem perna curta é irritantemente verdadeiro. Mas porque será que ela não se sustenta? Porque ela é feita de pó. De boato. De embromação. De ilusão. No dia que fui pega na mentira, senti uma dor tão forte no peito que mal podia respirar. Deve ter sido o efeito da adrenalina. Ou da vergonha. Voltei para casa com vontade de fugir para longe e nunca mais voltar. Mas como é da minha natureza, ao invés de fugir eu resolvi que queria ir fundo na experiência e entender porque, naquela altura da vida, eu ainda conseguia cair numa armadilha dessas. E cheguei à conclusão de que a verdade é muito mais difícil de ser aplicada do que o amor.

O amor, para quem foi amado, é um sentimento fácil de ser multiplicado. Porque ele se espalha e penetra com facilidade nos menores cantinhos. Em muitas ações, grandes ou pequenas, podemos disseminar o amor.  Até mesmo para aqueles que preferem o substantivo ao verbo. Mas a verdade…

A verdade já são outros quinhentos. Porque ela carrega em si um peso daquilo que não tem filtro, não tem máscara, não tem saída. A verdade é crua. E absoluta. E por isso pesa. Porque o ser humano é contraditório e egoísta. E por mais que a gente queira ser honesto sempre, muitas vezes acaba simplesmente não conseguindo falar a verdade, porque acha que ninguém vai entender o que você não conseguiu explicar.

Mas é uma escolha.

Assim como muitas que a gente precisa fazer todos os dias.

Com a verdade não há sobressaltos, nem medo, nem adrenalina, nem arrependimento. Com a verdade só há preto no branco. Ou uma paradoxal transparência.

Amor e verdade.

Eu rogo para que vocês nunca mais se separem, e que ao caminharem juntas, possam me ensinar que muito mais do que um lema para a minha vida, vocês possam ser aquilo que eu vou poder deixar de herança para as minhas filhas. Um legado de paz a um mundo que cada vez parece mais perdido em suas contradições. E por isso, termino meu texto aqui parodiando Frida Kahlo, com toda a admiração que tenho por ela:

“Onde não puderes amar e falar a verdade, não te demores”.

A estranha consciência da morte

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Eu sempre fui uma pessoa esquisita. Fora dos padrões, fora do lugar. E sempre tive uma sensação muito profunda de inadequação no mundo.

Mas talvez uma das coisas que mais me faça sentir uma marciana nessa vida seja essa minha estranha consciência da morte.

Não tem nada a ver com morbidez. Ou qualquer outra esquizofrenia nefasta. É apenas uma estranha e absoluta certeza da minha finitude.

Não me lembro direito quando foi que essa sensação me arrebatou pela primeira vez.  Eu estava fazendo uma coisa qualquer, num lugar qualquer. E de repente, não mais que de repente, eu me descolei da cena e percebi que tudo aquilo, um dia, chegaria ao fim.

Me senti esvaziada. Olhei ao redor. Olhei pro céu. Respirei fundo. Como era possível um dia deixar de existir? Como era possível um dia ter que deixar isso tudo para trás?

Talvez esse tenha sido um dos momentos mais estranhos e solitários que eu já vivi. E mais significativos também. Como se o meu fim, muito antes de acontecer, me pudesse ter sido soprado no rosto e isso não tivesse vindo como maldição, mas como profunda benção divina. Claro que na hora foi meio assustador. Uma conscientização tão aguda assim da nossa não eternidade não é um troço fácil de viver. Foi quase como um tapa na cara. Um choque de realidade. Ou da não realidade. Sei lá.

Sei que isso voltou a acontecer muitas vezes. Mas depois, com o tempo, eu fui me acostumando àquela coisa que vinha de vez em quando. E quando a coisa vinha, eu acolhia como quem acolhe um filhotinho de qualquer espécie, com muito cuidado, amor e respeito.

Foi então que eu fui estudar espiritismo. Depois comecei a meditar. Comprei o “Livro Tibetano do Viver e do Morrer” (mas nunca li). Depois entrei na terapia. Descobri o xamanismo. Com o tempo, todo o processo foi perdendo peso e ganhando a leveza que precisava ganhar. E no final consegui transmutar a tal sensação de mau agouro numa profunda e abençoada consciência de estar viva.

Não é para todo mundo que eu posso contar essa história. As pessoas tem muita dificuldade de falar sobre a morte. Só o assunto provoca arrepios. E quando eu digo que quero ser cremada? As pessoas me olham com um olho arregalado, me achando uma criatura de outro mundo. “Como é que você pode pensar numa coisa dessas?” Ué gente. Eu acho bonito o ritual de jogar as cinzas de quem morreu num lugar bonito. Nunca vou esquecer o momento que joguei as cinzas da minha avó no Jardim Botânico. Foi uma das coisas mais bonitas que já vivi. Ela amava aquele lugar e pôde voltar para lá de alguma forma. Isso não é bonito? Inteiro? Verdadeiro? Por que a morte tem que ser um assunto tabu sempre? Por que a gente não pode nem falar sobre isso? Será que as pessoas não entendem que a gente está aqui só de passagem? Que somos seres espirituais, passando por uma experiência terrena? Será que as pessoas evitam o assunto porque não falando dele, ele passa a não existir?

Ah sei lá. Esses assuntos que a gente não pode nem tocar me fazem pensar sempre que são os que mais a gente precisava falar.

Talvez o único apertinho no coração que permaneça desse processo é quando a coisa vem e eu estou ao lado das meninas. Aí o meu coração contrai. Deve ser por esse amor desesperado que eu sinto por elas. Ou por essa coisa de ser mãe e achar que os filhos sempre precisarão da gente. Eu não tenho medo de morrer. Talvez tenha medo de sofrer para morrer. Mas da morte, não tenho medo nenhum. Muito pelo contrário. Imagino que voltar para as estrelas será um grande alívio no final das contas. Claro que viver é uma benção. Mas para mim não é fácil viver. Nunca foi. Nem mesmo quando eu era uma menina-fada e achava que a vida era um sonho.

Mas quando olho nos olhos dessas filhas que me escolheram para vir para cá, fica difícil de me imaginar fora daqui. Difícil me imaginar separada de corpo delas. Porque a separação só vai ser de corpo né. De energia – espiritualmente – eu nunca vou me separar delas. Um amor como o nosso, nem a morte pode romper.

Sim. Um dia eu vou morrer. E se Deus quiser, vou virar pó de estrela. Rezo muito para que quando eu já esteja nesse estado cintilante, Deus também possa me soprar no rosto, um estranho instante de consciência, só que ao invés da morte, seja da vida. E que esse sopro, me traga o hálito da Clara e da Catarina. Só para me dizer, que no final das contas, não importa em que dimensão a gente está. O que importa é o que a gente é. E acredita, esteja vivo ou não.

Um Certo Doutor Rodrigo

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Para Rodrigo Vianna

Há pessoas e pessoas nesse mundo de meu Deus.

Se eu pudesse classificar meu ginecologista e obstetra Dr. Rodrigo, diria que ele é uma das pessoas mais incríveis que eu conheço.

Antigamente, lá nos tempos onde tudo era tão diferente, existiam médicos que eram considerados verdadeiros curandeiros. Eram médicos de família e conheciam profundamente a história de seus pacientes. Não só a história de suas enfermidades e órgãos, mas a história de suas almas.

Dr. Rodrigo é um médico de antigamente.

Nos conhecemos na época que eu estava grávida da Catarina. Na época estava tentando um parto mais humanizado e tinha escolhido ter meu neném em casa, com uma parteira. Ele era o médico que estaria de plantão caso alguma coisa acontecesse. Como de fato aconteceu.

Antigamente, lá nos tempos onde tudo era tão diferente, talvez nossa situação pudesse ter ficado mais séria. Eu tinha o cordão tão curto, tão curto, que a bichinha fazia força para sair, mas a placenta – como um ioiô – fazia força para ela voltar. Apesar de ser um grande entusiasta do parto normal, Dr. Rodrigo acabou sendo meu herói naquele dia. Fez uma cesariana emergencial super bem sucedida e no final da história, acabou salvando a minha vida e a vida da minha pequena.

Nunca me esqueço do dia que ele foi me visitar em casa depois da cirurgia. Com seu sorriso de sempre, entrou no meu quarto, mediu minha pressão, examinou meu corte, fez algumas perguntas, sorriu, brincou com a Catarina, indagou como andava meu coração depois de todo aquele susto, receitou alguns remédios e foi embora levando com ele minha profunda gratidão por aquele instante. Eu nunca tinha sido visitada por um médico em casa. Nunca tinha sido cuidada dessa forma por um profissional da saúde. Fiquei me achando importante. Única. E isso faz a maior diferença. Não só para uma mãe frágil no pós-parto, mas para qualquer pessoa que precisa de cuidado.

Depois daquele dia, nunca mais pude me imaginar consultando outro médico.

Dr. Rodrigo deve ser o obstetra mais amado de Niterói. Seu consultório vive abarrotado de barrigas-luz e ele atende todo mundo como se não existisse mais ninguém na sala de espera, esperando. E não é só de grávidas não. Moças, mulheres e senhoras esperam o quanto for para serem atendidas porque sabem que poucos médicos tem um respeito tão profundo pelo sagrado feminino como ele. E isso para gente, faz uma diferença enorme na hora H.

Com sua voz serena e uma calma hipnotizante para falar, ele cuida da gente como quem cuida de um jardim. Tem umas mãos de nuvem que fazem do Papanicolau parecer um suspirinho de três segundos. E conversa sobre o tempo, explica questões médicas sérias com leveza, troca experiências, reclama do Fluminense, conta histórias e ri da vida como quem já entendeu quase tudo.

É por essas e outras que eu digo: há pessoas e pessoas nesse mundo. Mas algumas fazem a gente ainda ter um monte de esperança na humanidade. Dr. Rodrigo é uma delas.