O lindo vazio que nos habita

“A arte é o vazio que a gente entendeu.”
Clarice Lispector

Há muito tempo, uma amiga querida me emprestou um livro e disse assim:

– Essa história é incrível, Tati. Leia para as meninas. Elas vão amar!

O livro chamava-se “O Coração de Corali”.

Cheguei em casa e antes de dormir nos acomodamos entre os travesseiros, cobertinhas e abajur e comecei a leitura. Sempre amei esse ritual de ler para as meninas antes de dormir. Sentia que construía nele uma egrégora de segurança para enviá-las ao mundo dos sonhos. Uma mente inundada de boas histórias viaja para lugares maravilhosos durante o sono.

Pois bem. A história ia muito bem quando lá pela metade do livro comecei a sentir um aperto na garganta pela emoção do enredo. Segui. Dali a pouco, formou um nó. Mais uma página e a glote começou a fechar. A voz foi ficando embargada, embargada, quando vi estava aos prantos. Chorando alto, sem conseguir me controlar. As meninas, de olhos arregalados, perguntavam desesperadas:

– Mãe, o que está acontecendo? Tá tudo bem com você? Mãe!

Foi um fiasco. Eu chorava e ria porque não queria preocupá-las, mas sabia que precisava rir porque aquela cena era no mínimo tragicômica. Mas o sentimento era tão profundo, tão avassalador, que só o que consegui fazer foi tentar disfarçar a sensação de ter sido tragada para dentro do livro.

Tá. Deixa eu explicar. “O Coração de Corali” fala de uma menina que um dia descobre que tem um grande buraco em seu coração e que por mais que todos tentassem preenchê-lo, ela nunca deixava de sentir aquele buraco. Até que um dia ela descobre que a tia sentia o mesmo que ela. Que as duas sofriam da mesma coisa. E então a tia passa a ensinar Corali a preencher esse buraco.

Como explicar para as meninas que depois de trinta e tantos anos de vida, alguém finalmente tinha conseguido traduzir o que eu sentia num simples livro de poucas páginas e ilustrações?

Essa história ficou marcada em mim por muitos anos.

Qual não foi a minha surpresa quando dia desses entro na Livraria da Travessa aqui de Niterói e me deparo com um outro livro (infanto-juvenil) com uma menininha na capa com um enorme buraco no meio, escrito VAZIO.

Não, aquela menina não era a Corali. Era a Julia. Uma outra história de uma outra menina que também tinha descoberto um enorme buraco dentro dela, mas com uma enorme diferença. Depois de tentar colocar mil coisas lá dentro, lutar para tentar tapar o buraco, ela simplesmente entrou naquilo que não conseguia preencher. Nem compreender.

Ok. Imaginem a cena. Eu estava sozinha na livraria e de novo senti a garganta apertar. Pensei: “Pronto. Vou ter um treco aqui e agora.” Mas me controlei. Peguei o livro, sentei numa poltroninha e entrei lá dentro da história. Da história e dentro do buraco da menina Julia. E foi incrível.

A grande diferença dos dois livros, é que em “Corali” eu tomei consciência do buraco. Mas no “Vazio”, eu estava aprendendo a curar o buraco. Na história ela toma coragem de entrar nessa dimensão sombria dentro dela e descobre que lá dentro, havia um universo inteiro de possibilidades. E que a partir dele, um novo mundo podia ser construído. Inclusive novos laços, através dos buracos que os outros também tem.

Sim, eu chorei no meio da Livraria da Travessa. Mas chorei aquele choro bom de cura, de sentido. De repente, naquele momento eu tinha entendido um pouco mais da minha trajetória, da minha alma, dos meus buracos e vazios e tudo aquilo que eu a vida toda, intuitivamente, tinha construído para ser.

Lembrei de ainda ser pequena e perguntar para minha mãe:

– Mãe, que dor é essa que me aperta o peito e eu não consigo explicar?

Ela respondia:

– É a dor do vazio existencial.

Algo ali se concluía. Foi um dos momentos mais bonitos da minha vida.

Agradeço por tudo que vivi até hoje para chegar aonde estou. Agradeço minha trajetória, minhas cicatrizes, agradeço minha amiga Rogéria por me trazer Corali, agradeço Corali por me ajudar a entender uma parte dos meus buracos e finalmente, agradeço Anna Llenas por me trazer Julia e essa possibilidade de perceber o vazio que nos habita com essa linda expansão de consciência.

5 pensou em “O lindo vazio que nos habita

  1. Lindo! Lindo! Lindo!
    Como sempre a Tati, com toda a sua delicadeza e sensibilidade, saber tocar os nossos corações e tb os nossos buracos….te amo, querida!!!

  2. Coisa mais linda, querida, o caminho de curar esse vazio é poder torná-lo uma caixinha de tesouros. Amei!

  3. Ana Margarida querida! Sentiremos muito sua falta na Roda… e muitíssimo bem-vinda aqui! Obrigada pela presença. Muitos beijos

  4. Dri querida! E eu te amo mais e sinto muita falta de quando a gente cuidava uns dos buraquinhos dos outros naquela roda maravilhosa de Constelação Familiar! Beijos imensos!

  5. Amo tudo que vc escreve, minha querida, porque vem desse amor que preenche qualquer vazio. Te amo!

O que achou?