O relógio dá uma piscadinha para mim. Onze horas da noite. Perfeito.
As meninas já estão dormindo, a casa está tranqüila. O cd de piano na última faixa, o incenso na guimbinha da cinza. O pijama macio já esquentou o corpo, o chá de erva-cidreira já esquentou a alma. Já pinguei o soro no nariz, o floral na língua. Acho que não falta nada. Só respirar fundo, abraçar minha cama e deitar para dormir.
Fecho os olhos. Intrometido, vem o primeiro pensamento. Xííí… não paguei a conta da internet hoje, putz grila. Não! Nada de repassar a lista do que não foi feito hoje. Amanhã você faz isso. Relaxa.
Respiro profundamente. Esvazio o peito de ar mentalizando esvaziar meu dia que termina. Mudo de posição. Aquela tava meio ruim. Esse edredom tá pouco para o frio de hoje… Será que coloquei cobertor suficiente nas meninas?
Respiro fundo. Clara espirra no outro quarto. Sento na cama e espero o próximo. Ele vem. Tá vendo, coloquei pouca coberta… Levanto, vou até o quarto das meninas, saco mais uma mantinha do armário, cubro as duas e antes de voltar para cama, dou uma última espiadela. Sinto inveja do sono profundo que estão mergulhadas. Tão profundo que parecem pálidas e com olheiras. Uma vez comentei isso com Dra. Manoela – minha irmã shiatsu-acupunturista, grande conhecedora de medicina chinesa – e ela me explicou esse fenômeno que faz minhas bonecas parecem meio mortinhas quando dormem: quando entramos em estado de sono profundo, o nosso chi – energia vital – se recolhe também, ao centro do nosso organismo para se recuperar. Nesse momento, nosso corpo fica em absoluto relaxamento. E é na face que mais percebemos sua ausência.
Sei. Deve ser por isso que estou sempre pálida e com olheiras quando estou acordada. Como durmo pouco, meu pobre chi nunca tem tempo de se recolher. O cara vive cansado. Assim como eu.
Enfim, volto para cama. Deito e deixo o corpo pesar na cama que me acolhe. Cama querida… Ela quer que eu durma. Ela sempre quer que eu durma. Me chama não sei quantas vezes todas as noites. Minha mente cansada também quer dormir. Meu corpo exausto também quer dormir. Ótimo, vamos todos dormir. Fechos os olhos. Respiro fundo.
Procuro ficar quieta na cama, quase imóvel. Contendo qualquer movimento que me distraia. Não deixo o corpo mexer. Não deixo nem as pálpebras se mexerem. Mas não consigo conter o globo ocular. Vejo o escuro da direita. Depois o escuro da esquerda. E quando paro para olhar o escuro do centro, vejo nele uma palavra freneticamente piscando. Em cores fosforescentes. No centro do escuro dos meus olhos, emitindo um sinal malévolo, está mais uma vez, a palavra INSÔNIA.
Pronto. Quando essa constatação é feita, o desencadear dela é destruidor. Eu não posso acreditar que estou com insônia. De novo. Mas que droga!
Assumir uma insônia é como assinar um atestado de óbito de uma noite bem dormida. É perder a esperança de recolher o chi, de descansar o corpo, dar um tempinho para alma. Minha irmã diz que eu tenho muito dificuldade de abrigar o shen – alma etérea – porque sou muito ativa, penso demais, tenho excesso de criatividade. Engraçado ela falar de shen. Os índios chamam nosso excesso de pensamento de chenhenhem. Não parecem palavras primas? Culturas tão distintas falando sobre uma mesma coisa.
Seja o que for: shen ou chenhenhem, já entendi que esse nheco-nheco é a base da minha problemática noturna. Mas o que fazer para mudar esse comportamento maníaco-destruidor?
Sou uma pessoa totalmente avessa a calmantes, tranqüilizantes e qualquer ante que me faça dormir quimicamente. Não sei, tenho uma cisma com qualquer remédio de tarja preta. Parece aviso funerário. E se eu me viciar no vodu? Como é que faço depois para curtir um Passiflorine, uma Maracujina? Nada mais disso vai fazer efeito. E no mais, são anos e anos lutando contra a falta de sono. A longo prazo, a medicina vai ser mais nociva do que o próprio cansaço acumulado.
Quando eu era adolescente, me lembro de precisar colocar uma toalha na soleira da porta, para esconder a luz do quarto acesa durante a madrugada. Tudo para impedir que minha mãe entrasse lá pela décima vez para dizer: mas minha filha, será possível que você não vai dormir de novo! Tudo bem. Naquela época eu não dormia antes das quatro. E forçava totalmente uma barra para ter insônia. Como dormir se uma vida inteira clamava por mim? Livros a serem lidos, colagens a serem feitas, poesias a serem escritas sob a noite fresca do luar? Dormir era puro perda de tempo.
Mas depois as filhas chegaram. E o sono passou a ser artigo de luxo. Eu vivia exausta. Porque cuidava delas tempo integral. Mas também precisava de tempo para mim. Então, ao invés de descansar enquanto elas descansavam, eu me metia a escrever, estudar e pintar nas únicas horas que me restavam. Resultado? Estafa. Mas só jogava a toalha depois de um diagnóstico alarmante do médico: ou eu dormia, ou a máquina ia pifar de vez. Foram anos de um cansaço profundo. Absoluto. Avassalador.
Isso praticamente descabela minha irmã. Ela acha que 90% dos meus problemas existem por causa da minha falta de sono. Meus cabelos brancos, minha tristeza, minha dificuldade em processar os conflitos, meu desânimo… isso tudo fala da perda constante da minha essência, que os orientais explicam que uma vez perdida, jamais pode ser recuperada.
Tá, eu sei que faço do tempo moeda de troca. E que se uma madrugada resultar num bom texto, eu realmente não me importo em virar um legume no dia seguinte. Mas também… tem troço mais esquisito do que dormir? Vivenciar essa “pequena morte” todos os dias requer um bocado de confiança na vida. Acho meio surreal passar oito horas de olhos fechados, esticada numa cama, desconectada do mundo, sem controle nenhum sobre nada e ainda por cima, sonhando as coisas mais esdrúxulas que a gente sonha. Pô, coisa de maluco.
Descobri a pouquíssimo tempo que Morfeu era um dos mil filhos de Hipnos, o deus do sono. Assim como o pai, era dotado de grandes asas, que o transportavam em poucos instantes, e silenciosamente, aos pontos mais remotos do planeta. Se eu soubesse disso antes já teria mudado de atitude e teria me esforçado bem mais para dormir toda noite. Cair nos braços de um cara desses? Espetáculo de noite!
A partir de hoje vou mudar radicalmente minha estratégia para dormir. Nada de pijaminhos macios e chá de erva-cidreira. Vou deitar de camisola bonita e perfumada. Nada de perder a chance de ir para cama como um deus grego e conquistar o coração daquele que pode ser – e eu nunca soube – a maior inspiração para as minhas criações literárias: Morfeu, o cara que tem o poder de revestir de sonhos a imaginação dos mortais adormecidos. Loucura!