Fragilidade Urbana

Flor_no_asfalto

Uma vez a cada quinze dias preciso sair do Condado onde vivo para atravessar a cidade, o mar e outro tanto da cidade vizinha, para chegar à Tijuca, onde fica minha terapia. Confesso que me sinto uma hobbit corajosa quando saio em busca dessa aventura. A Tijuca parece um lugar completamente diferente de onde vivo, moro e trabalho em Pendotiba. Mas a trajetória até lá é que me impressiona, porque de alguma forma me mostra – como um raio X – o tamanho da minha fragilidade urbana.

A cidade grande me espanta. Todas as vezes que salto da barca e dou de cara com a Praça XV, fico chocada. São milhares e milhares de pessoas apressadíssimas, correndo, atrasadas, ocupadas, falando no celular, falando sozinhas. Elas não enxergam as outras pessoas, não parecem estar presentes no momento presente nem tampouco presentes no espaço onde estão. Elas correm aflitas para o futuro próximo de seus empregos, seus escritórios e seus compromissos. Há uma pressa opressora no ar. E o cenário não ajuda em nada. As ruas estão sempre imundas e em obras. Camelôs gritam para vender suas mercadorias. Cachorros latem para conseguir sua comida. Executivos correm atrás do sucesso. Funcionários correm atrás de bater seu ponto. E os mendigos… bem, os mendigos não correm para lugar nenhum. Eles não existem para a essa cidade. Não fazem parte do cartão postal.

Eu olho ao redor e me sinto totalmente fora do contexto. Uma peça com defeito que não se encaixa no quebra-cabeça. Um peixe fora d’água. O Neo de Matrix quando descobre que a Matrix é uma Matrix.

Não sei se sou eu que tenho essa extra sensibilidade irritante ou se é mesmo a rua que tem cheiros demais, buracos demais, barulhos demais. É uma poluição sonora, visual. Um excesso de energias diversas, contraditórias e desequilibradas. São pombos, pedras, placas, avisos luminosos, cartazes, jornaleiros, árvores secas e abandonadas, pessoas nas ruas dormindo abandonadas, bueiros, buracos, cuspes, pingos de ar condicionados, cocô de cachorro, cocô de gente, pichações, lixo… meu Deus… a quantidade de lixo que tem pelas ruas é uma coisa muito surreal. Um caos absoluto. Eu olho para esse mundo e não consigo acreditar que as pessoas não se afetem com tudo isso. Será que elas se acostumaram com a coisa ou nunca chegaram a perceber o cenário de ficção científica que estão inseridas?

São raros os momentos que eu consigo respirar nesse mundo. Raros, mas existem. E quando acontecem, são como tomar um fôlego, depois de muito, muito tempo sem respirar. Uma alegria instantânea. Uma brisa no rosto. Um carinhozinho na alma. Acontecem quando encontro um artista de rua – como aquele moço com vilolino que vi ontem em frente ao Paço Imperial. Gente! Que momento sublime foi aquele. Eu fiquei parada diante dele, derretendo por dentro de emoção. E ele tocou aquela melodia triste e me olhou nos olhos e durante alguns segundos eu não me senti mais sozinha. Foi incrível. Assim como quando dou a sorte de cruzar o olhar com um senhor de terno e gravata, cheiroso e arrumado e ele me cumprimenta com um sorriso e um sonoro “bom dia, senhorita”. Ou quando percebo uma florzinha nascendo solitária no meio da rua, no meio do cimento, no meio do caos cinzento. Esses momentos, são momentos importantíssimos para mim. Porque entendo que de alguma forma, há dentro de todos nós, desertos e oásis. E só depende de nós qual cenário valorizar. Se o cenário da luz ou o cenário da sombra. Só depende de nós.

O Looping da Ladainha

elastico

Esse ano o Natal aqui em casa foi diferente.

Tivemos a tradicional troca de presentes – aquele momento mágico da noite que todo mundo volta a ser criança – mas junto dela eu tive a ideia de propor uma novidade para galera, dando uma sacolinha a mais de presente para cada um.

Na verdade, dentro da sacolinha misteriosa, tinham dois presentes. Duas propostas de prática espiritual para o ano novo: o Potinho da Gratidão e a pulseirinha mágica das reclamações.

A primeira é fácil e bonita de fazer. Junto de um potinho com tampa, vinha um bloquinho colorido e uma caneta para todo mundo escrever e colecionar os melhores momentos vividos em 2016. Foi uma ideia copiada do Facebook, mas achei tão simples e tão carregado de poesia que resolvi fazer um potinho para cada um da família. O pessoal adorou. Já a segunda proposta… Uau.

A tal da “pulseirinha mágica” foi um rebuliço. Há meses atrás eu já tinha recebido o desafio da minha amiga de Joinville, aquela que eu amo e é a minha dentista preferida – mas tinha desistido nos primeiros dias depois de surtar por descobrir minha total incompetência de realizar a tal tarefa.

Mas com a chegada do fim do ano – e a percepção de todos os erros que eu tinha cometido nesse mesmo ano – achei que era uma boa hora de tentar de novo o desafio e carregar todo mundo que eu amo pro mesmo barco que eu, onde as grandes oportunidades de crescimento estão escondidas atrás das grandes superações.

Bom, a prática da pulseirinha em si é muito fácil de fazer. Você coloca a pulseira num braço. E todas as vezes que reclamar, muda a pulseirinha de braço. Para minha família, eu distribui um monte de elásticos coloridos, porque são fáceis de tirar e porque eu já sabia de antemão que isso ia acontecer muito mais vezes do que eles podiam imaginar. Na verdade, o tipo de pulseirinha que você vai escolher não importa – cada um vai poder usar o modelo que quiser. O que acontece é que a tal pulseira vai se transformar num retrato de quem você é. E é aí que mora o perigo. Porque parece uma coisa fácil né. Mas não é. Se a gente for honesto com o processo, vai ficar chocado com a quantidade de vezes que reclama de tudo, o tempo todo.

Mas por que eu inventei de fazer isso com a minha pobre família? Porque eu acredito profundamente no poder que está por trás das nossas sombras. No que pode acontecer de mágico quando a gente muda o jeito de ver as coisas. E a gente só muda o jeito de ver as coisas, quando tem coragem de colocar uma lupa nas coisas que esconde.

A gente está habituado a reclamar. Habituado a ser chato.  Habituado a nunca estar satisfeito com nada. Habituado a olhar as coisas de um jeito negativo. Habituado a julgar a tudo e a todos. E cara, isso é uma energia péssima e totalmente voltada para o lado negro da Força. Na reclamação a vida não flui, não tem espaço, não tem luz, não tem para onde se expandir. Porque a reclamação é uma energia estagnada, repetitiva e muito, muito ingrata.

Na noite de Natal, na hora que a proposta foi apresentada, todo mundo achou muito engraçado. Divertido. Depois de uma hora, todo mundo já tinha trocado a pulseirinha de braço umas dez vezes cada um. E olha que a gente estava numa noite de festa, tranquila e alegre. Imagina numa segunda-feira de manhã, nesse calor que tem feito, no trânsito, indo para o trabalho? Todo mundo saiu da minha casa meio bolado. E eu fiquei feliz por isso.

Talvez a maior sacação dessa prática espiritual não seja a intenção de cura do vício de reclamar, mas nos fazer perceber o quão repetitivos e dramáticos podemos ser na vida. Claro que muitas vezes fazemos a coisa de uma forma inconsciente. Pelo hábito da coisa. Por ignorar a potência negativa da coisa. E por isso mesmo, devemos nos perdoar. E rir desse nosso jeito pentelho de ser. Porque só o humor vai poder nos salvar da raiva que sentiremos de nós mesmos. Foi assim comigo na primeira vez. Eu senti tanta raiva e vergonha de mim mesma que desisti de tentar não reclamar.

Mas dessa vez, eu encontrei uma outra forma de ver a coisa.  Porque passei a me observar de longe. E entender que para sair do looping da ladainha é preciso, antes de mais nada, ter muita paciência com a gente mesmo. Se a intenção é mudar a forma de ver, é preciso antes mudar a forma de ser. E essa mudança é possível. Com a pulseirinha no braço, o mecanismo de conscientização vai evoluindo aos poucos. Depois de passar algumas horas sem mudar a pulseira de lado, seu sistema de reclamação começa a ficar em alerta. E antes mesmo de abrir a boca para reclamar de algo, a consciência pára e se pergunta: será mesmo que eu preciso reclamar disso agora? Será que não dá para respirar fundo e tentar transformar o que está me incomodando sem colocar a boca no trombone?

Gandhi costumava dizer que “não existe um caminho para a paz, porque a paz é o caminho”. Eu não quero mais me preocupar com o resultado do processo. E sim, como vou viver o processo. Não importa quantas horas eu vou conseguir ficar sem reclamar. O que eu quero é sentir o sabor dessa alegria de estar ao menos tentando ser uma pessoa melhor. E curtir essa felicidade que é tomar posse de algo tão simples e tão poderoso.

Desejo para o próximo ano que outras pessoas possam aceitar esse desafio e que elas possam afinar seu próprio jeito de olhar para a vida. E perceber o tamanho de espaço que se estabelece para outras coisas incríveis acontecerem, quando paramos de reclamar da vida e simplesmente agradecemos as enormes e incomensuráveis bênçãos que recebemos todos os dias.

Que o Potinho da Gratidão possa contabilizá-las e que o ano de 2016 seja um ano de novos e transformadores padrões de comportamento.

Nossas almas agradecem. E os nossos amigos também!

Feliz ano novo, pessoal!

P.S. Mickaela Lindermann, minha irmã, obrigada mais uma vez por me ajudar a ser uma pessoa melhor. Eu te amo!

Processo Funil

Radha

Arte de Francina LaXisca

É batata! Basta entrar dezembro no calendário que a minha alma começa a querer viver o mesmo ritual de sempre: o processo funil.

Tem coisas que são da gente e por mais que a gente tente, não consegue mudar. Eu sou assim com os rituais. Não consigo sentar para escrever sem acender uma vela, um incenso e pedir à benção do Grande Espírito. Não consigo mais dormir sem agradecer todas as coisas divinas que tenho. Não consigo mais tomar banho sem mentalizar que aquela água me limpa por fora e por dentro. Os rituais nos ajudam a viver. Nos ajudam a integrar sensações, resolver sentimentos. A encarar melhor a insanidade maravilhosa que é viver.

O processo funil também é um ritual. Acho que um jeito maroto que a minha alma encontrou para não se perder. E começa no início do mês para dar tempo de fazer a limpa em todos os setores do organismo e da alma. Tipo um Clean Master da pessoa. Ele vai escaneando todos os meus arquivos internos e vendo o que precisa ser jogado fora. É muito bom. Como se fosse uma retrospectiva da sua vida, só que meio resumido, feito um filme. Parece incrível, mas olhar a vida sob uma perspectiva distanciada nos dá uma noção subjetiva bem interessante das coisas.

Eu gosto muito quando o processo funil começa. Assim como eu adoro começar uma faxina. Sabe aquela energia de arregaçar as mangas para o trabalho? É isso que eu sinto. Claro que cada um vai encontrar o seu próprio mecanismo. Eu por exemplo adoro fazer listas porque elas tem o poder mágico de sintetizar as minhas bagunças internas. Então eu sento e começo a listar tudo que me vem à cabeça. As melhores lembranças do ano, as piores. O que eu quero mudar no ano que vem. O que eu quero fazer nas férias. O que vou mudar na casa. O que de jeito nenhum quero viver mais. Os lugares que quero visitar. Os livros que quero ler.

É preciso olhar e celebrar o que deu certo. Jogar fora o que não deu. Cuidar com afeto aquilo que não foi bem compreendido. Digerir o que ficou entalado. Deixar ir aquilo que não serviu. Ritos de passagem requerem coragem. Não é um processinho fácil não. Às vezes pode ser doloroso e esquisito. Mas muitas vezes pode ser divertido também. O ideal é que a gente se divirta com o processo e encare os fatos com leveza.

No meu pente fino desse ano eu já descobri algumas coisas. Mas a que mais tá me incomodando foi ter descoberto que a grande promessa que eu fiz a mim mesma no ano novo, eu não cumpri. No réveillon de 2014 eu prometi que em 2015 eu faria dança de salão. Eu tenho loucura para voltar a fazer dança de salão. Tá, mas então o que é que aconteceu? Por que eu não consegui? Foi por falta de tempo? Por falta de lugar? Dinheiro? Preguiça? Aiiii. No processo funil nada passa batido.

Eu também não meditei tanto quanto gostaria, não cuidei da minha saúde como deveria. Li bem menos livros do que prometi, fiz bem menos exercício do que precisava. Mas em compensação realizei meu sonho de abrir um site e escrever um texto por semana, trabalhei arduamente pela Escola que amo, cuidei com bravura das minhas filhotas, passei quase cinco meses sem comer açúcar. Dá para lamentar e celebrar com cada coisa vivida.

Mas ainda estamos no dia 06 de dezembro. E eu espero que o processo funil possa me ajudar a afinar tudo que precisa ser transformado para o ano que vem. Todos os campos, todas as camadas, todos os poros do meu ser serão revistos. Porque desejo profundamente acertar mais no próximo ano. Estar mais leve no próximo ano. Estar ainda mais inteira no próximo ano.

Somos seres em construção. Em evolução. Que todos os processos de cada um de nós possa nos levar a apuração do melhor que podemos ser em cada área de nossas vidas. Viver é um grande desafio. Mas viver com consciência pode fazer uma profunda e significativa diferença na nossa existência. A gente só precisa acreditar. E ter coragem para mudar.

O Jequitibá e o tempo

Foto de Irene Monteiro

Foto de Irene Monteiro

Outro dia vivi uma experiência extraordinária.

Eu tinha viajado com a minha família para o Sítio São José, em Cachoeira de Macacu e minha mãe cismou que eu precisava conhecer uma árvore.

Minha mãe é esse tipo de pessoa que quando cisma com alguma coisa, essa coisa vai precisar da nossa atenção porque algo inesperado pode acontecer.

Pois bem. Lá fomos nós: minha mãe, John, as pequenas e eu para o Parque Estadual dos Três Bicos, onde morava a tal da árvore.

Caminhamos uns dez minutos num trilha deliciosa, das minhas preferidas: bem úmida, fechada, com milhões de texturas e cores de folhas, um cheiro de terra inebriante. Passamos por cavernas de pedras, raízes esculturais, várias espécies de borboletas. De repente, numa clareira, eu vi a árvore.

Levei um susto.

Fiquei olhando para ela em choque como se tivesse visto um fantasma.

A árvore era nada mais nada menos que um Jequitibá-rosa de 40 metros de altura e um tronco com um diâmetro de mais ou menos sete metros. Um gigante em meio àquela floresta.

Mas de todas as coisas que aquela árvore me despertou naquele dia, talvez a mais arrepiante de todas tenha sido pensar que ela está ali há mais de mil anos.

Gente. Mil anos.

Pensem comigo. Quando Pedro Álvares Cabral chegou ao Brasil, essa árvore já estava ali há 500 anos. Eu não sei para vocês, mas para mim é uma piração imaginar uma coisa dessas.

Bom, naquele dia, quando eu consegui chegar pertinho do tronco, a primeira coisa que me veio ao coração foi a necessidade profunda de me deitar aos pés daquela divindade e reverenciar sua ancestralidade e sabedoria. Depois me levantei e abri os braços para abraça-la quando percebi que Clara e Catarina já estavam abraçadas a ela de olhos fechados há um tempão. Minhas filhas-fadas. Que orgulho meu Deus.

Passamos ali um tempo mágico. Ninguém queria ir embora. Ninguém conseguia acreditar no que via. A presença do Jequitibá era tão forte que a impressão que me dava é que a gente podia senti-lo respirando.

Parece que no Parque Estadual do Vassununga, em Santa Rita do Passa Quatro em São Paulo, tem o maior e mais antigo Jequitibá-rosa vivo no Brasil. Ele tem 3.032 anos de idade. Será que isso é possível?

Mas desde o dia que eu estive na presença do Jequitibá, não consigo parar de pensar nele. Fecho os olhos, coloco na palma das mãos o pedaço de tronco que encontrei dele no chão (esse da foto) e me conecto a alma daquele ser de uma forma estranha e mágica.

Desde pequena sou uma viajante do tempo. Perdi a conta da quantidade de vezes que fui ao Centro do Rio e fechei os olhos, sentada num banco de praça e me imaginei voltando no tempo. Eu abria os olhos e via os bondes, as pessoas elegantes vestidas passeando com seus chapéus, via Machado de Assis escrevendo no Café da esquina. Quantas vezes me vi na praia imaginando o tempo em que essa terra era somente habitada por índios!

Eu acho que não sou do meu tempo. Sempre tive uma sensação física de estar fora dele. O dia que Woody Allen fez “Meia Noite em Paris” enlouqueci. Aquele filme me representa! Mesmo a moça que morava no tempo antigo que ele visita, sonhava em viajar no tempo ainda mais antigo do que o dela, achando que somente aquele tempo deveria ser legal. Minha cara.

Para o futuro nunca me projetei. Até porque a minha cultura cinematográfica me impede de desejar o futuro. Quem viu “Blade Runner” sabe do que eu estou falando.

Mas a verdade é que eu estou sempre pensando no tempo. E aquele Jequitibá me atiçou isso de novo.

Pensando no tempo. E nas dobras do tempo. E nas possíveis dimensões que o tempo nos traz.  Quem me dera ter capacidade mental de estudar a fundo a física quântica. Isso sim deve fazer uma pessoa pirar o cabeção. Na física quântica a realidade é comprovadamente relativa. E o tempo não existe como o compreendemos.

Quem sabe essa paixão toda por essa árvore não se justifique porque eu fui uma indiazinha que presenciou o início do crescimento desse Jequitibá há mil anos atrás? Hein? Quem sabe?

Ah Tatiana, isso aí, só o Grande Espírito sabe. Mais ninguém.

Celebração da Primavera

Foto Clara Meira

Foto Clara Meira

Este texto é especialmente dedicado ao Roda de Lobas

Sábado passado vivi umas das experiências mais bonitas dos últimos tempos.

Há vários anos minha mãe Irene reúne mulheres (e alguns poucos homens corajosos) para celebrar a entrada da Primavera. É um evento grandioso, mas muito simples em seu propósito. Eu já tinha ido há alguns, nos anos passados. Me lembro como se fosse hoje da Clara pequenininha correndo cheia de flores no cabelo por entre as muitas saias que rodopiavam por lá. Mas este ano aconteceu alguma coisa especial.

O encontro aconteceu na Casa Tebekato, um lugar fora do tempo e do mundo em São Conrado. Um espaço verde, de mata abundante, piscina natural e uma energia extraordinariamente positiva – já que é uma casa alugada especialmente para trabalhos espirituais. As convidadas são, em sua grande maioria, as muitas mulheres que frequentam os grupos que minha mãe ministra do estudo do livro “Mulheres que Correm com os Lobos”. Ela vem fazendo esse trabalho há mais de dez anos. São diversos círculos de mulheres que se reúnem mensalmente para estudar o livro e estudar profundamente o que o livro causa dentro delas.

Como dizem por aí, eu sou uma “loba coroada”. Terminei a leitura do livro, com o primeiro grupo que se juntou em 2004, depois de quatro anos de estudos. Praticamente uma faculdade de psicologia. Foi engraçado como tudo aconteceu. Minha mãe comprou o livro e começou a ler. Alguns meses depois comprou um para mim e me deu com recomendações seríssimas: “Minha filha, você PRECISA ler este livro.” Com o passar do tempo, descobrimos que todas as mulheres que liam aquele livro, passavam pelo mesmo processo: o despertar profundo da Mulher Selvagem que habita dentro de nós. E com ele uma enxurrada de insights que simplesmente não dava para vivenciar sozinha. Divulgamos o encontro para falar do livro e de repente, se juntaram na minha pequena sala da Gávea, mais de vinte mulheres ansiosas por dividir o que estavam passando silenciosamente em suas vidas. Foi demais! Foram anos de muitas histórias, muitas lágrimas, muitos aprendizados e, sobretudo, um belíssimo despertar do nosso feminino sagrado.

Pois bem. Imaginem que minha mãe já está na formação de seu 11º grupo de estudos de “Mulheres que Correm com os Lobos”. E na Celebração se reúnem quase todas as mulheres que já passaram e estão passando por essa experiência. É uma loucura!

Esse ano levei comigo umas amigas queridas, minha Clarinha – que ficou responsável por fotografar o evento e estava empolgadíssima com isso – e Catarina, que no meio do mato fica como um beija-flor. Chegamos lá, tiramos os sapatos, abraçamos meia dúzia de mulheres e descemos para o jardim. O dia estava radiante. Calor, céu azul. Pássaros cantando. Aos poucos, outras tantas mulheres chegaram. De uma hora para outra, Djaala – umas das maravilhosas companheiras de trabalho da minha mãe – começou a puxar uma fila de mulheres que deram suas mãos e iniciaram uma dança silenciosa, em direção à piscina. Pronto. Ali já comecei a ter um treco de emoção. Como uma grande irmandade, fomos dançando e caminhando, dançando e caminhando, até que chegamos até a piscina e nos sentamos ao redor dela, com os pés dentro d’água. Tudo silenciosamente, com sorrisos floridos no rosto. Depois que todas estavam acomodadas, tive o desejo de cantar com aquelas mulheres, velhas canções que despertassem o melhor de todas nós. E foi maravilhoso. Porque cantamos todas juntas, em uníssono, bem baixinho, como se de alguma forma, chamássemos algo há muito adormecido em nós. Não tive dúvida. Com o calor e minha mulher selvagem já correndo nas veias, pulei na piscina de vestido, sem me dar conta que Djaala tinha feito a mesma coisa, ao mesmo tempo que eu. Saímos d’água, nos reconhecemos na travessura e gargalhamos dizendo: “Lobas coroadas”! Não foi preciso muito tempo para que as tantas outras nos seguissem, mergulhando na piscina refrescante da Tebekato.

Quando Maria chegou – nossa querida convidada que seria responsável por conduzir as danças deste ano – aproveitou a cena de filme e mergulhou na piscina para dar inicio as danças ali mesmo dentro d’água. E dançamos as canções de Juremar, unidas numa só voz e coração.

Se o dia tivesse terminado ali, já teria sido um dia perfeito. Mas tantas outras coisas nos esperavam naquele dia mágico. Tivemos a montagem do altar – na base de uma linda e centenária árvore da Tebekato – com flores, velas, incensos e mel para reverenciar o novo ciclo da Mãe Terra, meditação ao ar livre, um almoço coletivo maravilhoso, mais danças e por fim, uma fogueira especialmente acesa para transmutarmos desejos, intenções e todas as mudanças possíveis que a gente sonha na entrada da Primavera.

Naquele sábado senti um orgulho muito profundo pelo trabalho que minha mãe vem fazendo ao longo desses últimos anos. O despertar do que há de melhor, mais sagrado, mais feminino e poderoso dentro de cada uma daquelas mulheres. Catarina foi chamada por ela no final da montagem do altar e as duas trocaram meia dúzia de palavras. Na volta da conversinha com a avó, ela sentou ao meu lado com um sorrisinho feliz. Eu perguntei: “o que Vovó disse para você, filha?” Ela respondeu com o peito cheio de orgulho: “que eu sou a herdeira disso tudo aqui”. E me deu uma piscadinha. É minha gente, a força do mundo não está nas mãos de ninguém. Está no ventre das mulheres. Aho!

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Foto Clara Meira

Olha

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Querido leitor, por favor, clique na música antes de começar a ler o texto.

Olha aquelas nuvens alaranjadas no céu

Olha aquelas gaivotas atravessando o sol

Olha aquele menino soltando aquela pipa colorida

Olha aquele mendigo olhando as ondas do mar

Olha a cor daquelas flores na janela

Olha aquela moça chorando pela rua

Olha aquela mãe amamentando o filho

Olha aquela borboleta que pousou na lata de lixo

Olha aquela poesia pichada no muro

Olha aquele velhinho bem velhinho atravessando a rua

Olha aquela menina de maria chiquinha chupando picolé

Olha aquela flor que brotou no meio do cimento

Olha aquele gari dançando com a vassoura

Olha aquela bicicleta azul encostada na árvore

Olha aquele gurizinho brincando na poça

Olha aquela moça beijando o moço na ponta do pé

 

Eu olho pro mundo e o mundo me espanta

Mas o que mais me espanta

É perceber que quase ninguém tá reparando no mundo.

 

Colecionando instantes

polaroid

Entrou na praça e viu.
Uma revoada de pombos vinha em sua direção.
Juntos faziam um desenho quase geométrico
no azul daquela tarde de sol.
No momento em que passaram sobre sua cabeça,
fechou os olhos e com a alma
fotografou o instante.
Sorriu.
Guardou a fotografia na gaveta dos sonhos e seguiu em frente.
Costumava fazer isso todos os dias de sua vida.
Colecionar instantes.
Esses, que tornavam sua existência sublime.
Alimentava o sonho infantil de pedir a Deus
um último desejo antes de morrer:
assistir por inteiro a seleção de instantes
que guardara ao longo dos anos.
Como num filme, onde teria enfim,
a essência do que fora sua felicidade.

Anjo miúdo

Foto Adriana Esteduto Machado

Foto Adriana Esteduto Machado

Como posso ser tão cega e não perceber o que essa criança está a horas tentando fazer?

Acordei de madrugada mais uma vez para escrever. A inquietude da minha alma tem me despertado todas as madrugadas, por volta das três horas da manhã como se fosse oito. Resignada, levanto, lavo o rosto, preparo um chá e vou para frente do computador tentar descobrir o que de tão urgente precisa sair de mim.

Mas nada acontece. Me distraio então com alguma pesquisa na internet, dou uma olhada nos meus e-mails e me lembro, como um despertadorzinho interno, da maravilhosa declaração de David Lynch a respeito da criação artística: “Se desejamos pegar peixes pequenos, podemos viver em águas rasas. Mas se desejamos pegar peixes grandes, então não escapamos de mergulhar em águas profundas”. Sei bem o que isso significa: meditação.

Meditar para mim é um esforço sobre-humano. Todas as vezes que tento meditar me deparo ainda mais com as turbulentas águas em que transbordam minhas idéias. O contato com essa realidade é assustadora. Somos um povoado de imagens e sentimentos que se misturam violentamente dentro da cabeça. Minha guru diz que a meditação é o único caminho para a paz interna. E que a paz é a única chance que temos de sobreviver ao caos em que o mundo se instalou. Através dela temos a chance de expandir nossa consciência e ir ao encontro da divindade que habita no fundo da nossa alma. Ela diz também que meditação não é nenhum bicho de sete cabeças. Basta sentar-se e permanecer em silêncio. Mas e quem disse que eu consigo ficar em silêncio com todas as urgências gritando dentro de mim?

Pois bem. Estava eu aqui de madrugada debruçada sobre essas questões, quando chega Catarina, minha filha caçula, descabelada agarrada ao seu urso e chamando chorosa por “mamãe, mamãe…” Ai puxa vida, pensei comigo, agora mesmo que a meditação foi para o beleléu. Peguei-a no colo e a coloquei na cama.

– Não mamãe, quero colo.
– Catarina, pelo amor de Deus minha filha, tá de noite, olha só lá fora, o sol ainda não chegou, você tem que dormir…
– Tá, mas no seu colo mamãe.
– Tá bem…

Coloco-a no colo e canto baixinho uma canção de ninar. Minha cabeça continua a ferver. Ansiosa, desejo desesperadamente que ela durma para que eu possa voltar ao meu universo conturbado de tão sérias questões a resolver. Devagar, a acomodo sobre o travesseiro macio. Saio de mansinho. Um minuto depois, ela sentada na cama, de olhos molhados, me chama:

– Mamãe, eu quero você.
– Filha, o que é que tá acontecendo com você meu anjo?
– Mamãe, quero colo.
– Tá bem, eu vou deitar do seu lado.
– Não, eu quero colo. Colo sentada.

Impaciente, saio de novo do computador e a pego no colo. Sento na cama. Ela me olha fundo nos olhos, dá um sorriso, faz um carinho no meu rosto e fecha os olhos. Só então eu compreendo. Meu anjo miúdo de cabelos cacheados tinha saído de sua caminha para vir até aqui me ajudar a meditar. Que burra! Como pude ser tão cega e não perceber o que essa criança estava a horas tentando me dizer? Deitada eu pegaria no sono com ela. Sentada, precisando fazê-la dormir, era uma chance de ouro que eu tinha de entrar em profundo estado de meditação. Bastava fechar os olhos e sentir nossos corações baterem juntos.

Nessa madrugada fiz uma meditação profunda. E agora sentada aqui no computador escrevendo, com o pensamento mais tranqüilo, percebo um barulhinho que vem da janela e que me chama a atenção. Olho depressa. É um passarinho, outro anjo miúdo, que me olha através do vidro da janela. O que ele veio me dizer eu já sei: não existe um caminho para a paz. A paz é o caminho.

Quimera do olhar

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Foto Clara Meira

Árvores. Folhas verdes. Vários tons de verde. Várias texturas de folhas. Céu azul. Nuvens brancas. Brancas, com tons de rosa e laranja. A laranja-fruta tem furinhos. Pequenininhos. Como os poros da pele. Que também pode ser colorida. Branca, vermelha, amarela, negra. Negra, como a cor da noite. Noite onde tem estrela brilhando. Ela pisca, ou é impressão? Não, impressão é o que os olhos sentem, porque o mundo é da forma que você o vê. Ou da forma que te ensinaram a ver. Poetas tem esse dom. Eu vejo o mundo vibrante se o dia tem sol. Mas se chove, vejo a vida triste, com toda a beleza que pode existir na melancolia. Eu gosto de ver chuva. De ver gota pingando no chão. Gota correndo do vento. Relâmpago. Trovão. Adoro ver essa luz eletrizando o céu. Luz elétrica. Luz linda é a luz da vela. Luz suave, doce, mágica. A luz do mundo, quando o mundo era simples. A luz que atravessa os poros e ilumina a alma. Luz perfeita para se escrever cartas de amor. Amor. Eu vejo amor por toda a parte. Na flor que desabrochou hoje no jardim. Na borboleta que é pétala que voa, como me ensinou Clarice. Vejo amor nos olhos da Clara. Nos abraços incriveis da Catarina. Vejo amor no suspiro profundo. No choro miúdo. Na gargalhada do Edu. Vi amor quando fiz pudim de leite ontem. Vi amor nos sorrisos felizes dos que comeram o pudim. Ah! As coisas de comer podem ser as mais lindas do mundo. Principalmente as que vem direto da natureza. Como os morangos, por exemplo. Kiwi, quando se revela por dentro. Carambola, quando vira estrela. Gominho de mexerica. Carocinho de mamão. Tudo tem sua beleza. Não foi Neruda que viu na cebola uma rosa de água com escamas de cristal? Eu não vejo mais, eu fotografo com a minha polaroid mental. E vou guardando tudo na memória até encontrar a palavra certa para cada imagem arquivada. Aquilo que minha retina viu e ficou pasma, eu corro para tentar traduzir em palavras. Acho que é por isso que tenho tido tanta urgência em escrever. Por medo de perder esse instante. Mas coisa feia eu não guardo. Por nada. Não perco meu tempo. Mas as lindas, ah… estas eu foco o olhar com o coração e deixo que elas me inundem. Como zeppelin voando no céu. Clara conversando com formiga. Sorriso desdentado de velhinha. Vento varrendo folha. Açúcar virando caramelo. Cata-vento ventando. Gato se espreguiçando. Córrego escorrendo. Copo de vinho tinto. Bocas se beijando de língua. Trilho de trem quando se bifurca. Avião rasgando o céu indo para longe. Arco-íris! Cavalo correndo livre. Noite virando dia. Dia virando noite. Ondas do mar fazendo espuma. Gelo boiando na água. Tinta de caneta virando poema. Última página de livro. Os cílios da minha mãe. Língua falando lápis-lazúli. Linhas do tempo na palma da mão. Mão fazendo pão. Mão carinhando alguém. Mão dando adeus. Mão pedindo. Mão oferecendo. Mão é uma coisa danada de linda. Pode ser mão pequena, delicada. Ou mão de homem da terra, toda enrugada. Mão maltratada pelo tempo. Mão de bebê. Para mim, mão é a parte mais linda do corpo. Acima dela, só mesmo o olho. Olho que é o único órgão que brilha, que se explica na íris e que se entrega na lágrima. Olho que pode ver tudo. Quantas vezes quiser. Que pode ver árvores. Folhas verdes. Vários tons de verde. Várias texturas de folhas. Céu azul. Nuvens brancas.