Nos últimos anos eu tenho sofrido de um mal terrível.
Uma ânsia desesperada pela natureza. É um sentimento tão forte que chega a me dar uma dor no peito. Mas eu sei que essa sofreguidão pelo verde vem de lá dos recôncavos da minha infância.
Durante os meus primeiros anos de vida morei numa casa em Teresópolis cercada de mato por todos os lados. O Solar do Aveiro ficava bem no meio de um vale e parecia um pouco com o Condado dos Hobbits de Senhor dos Anéis. Aquele lugar perfeito onde a vida parecia ter sido feita só para as partes felizes de um filme bom.
Minha relação com a natureza era visceral. Eu e ela éramos um só organismo. Andava pelos morros e riachos como se tivesse nascido daquela própria terra. Não tinha medo dos bichos, vivia entre vagalumes e borboletas e sapos como se eles fossem meus melhores amigos. Colecionava flores, frutinhas e folhas como se elas fossem um tesouro perdido. Sempre fui louca pela infinidade de verdes e texturas que as folhas escondem. Até hoje isso me emociona. Adorava fazer arte com elas! Era minha brincadeira preferida. No final, jogava tudo nas panelinhas e fazia uma sopa nutritiva e colorida para as bonecas. Tive uma infância mágica. Nada do que possa ter acontecido de ruim naqueles anos, pode apagar as lembranças do que fui naqueles tempos. Minha potência estava toda ali. Misturada a uma poesia que eu nem sabia que existia, mas já fazia parte do mais profundo do meu ser.
Se eu pudesse resumir minha existência num único instante, voltaria à varanda da minha casa no Vale São Fernando, nos finais de tarde que caiam as tempestades mais lindas de verão. E eu ficava por horas a fio, ouvindo minha avó Luzia tocar piano, enquanto via a chuva e os trovões caírem nas colinas do Vale. Se minha vida tivesse terminado ali, eu teria sido imensamente feliz.
Mas a verdade é que eu cresci e precisei me mudar para a cidade grande. Dessas coisas que acontecem nas nossas histórias e a gente não tem como escapar. Meu destino me levou para a cidade do Rio de Janeiro, depois me trouxe para Niterói e é aqui que tenho vivido desde então. Nesse centro urbano esquisitíssimo que abriga ruas, calçadas, bueiros, prédios, postes, fios, lixo. Pessoas andando de um lado para o outro, morrendo de pressa e angústia por não poder mais existir com nenhuma calma. Morando em seus apartamentos apertadíssimos sem nenhuma árvore ou a lembrança de qualquer coisa boa que um dia foi chamado de natureza. Nossa. Eu nunca me acostumei com a cidade. Não vejo nenhum sentido nos grandes centros urbanos. O gás carbônico, os ônibus, os carros, as buzinas, o trânsito, a poluição visual, a sujeira, a pressa mal educada das pessoas e seus compromissos importantíssimos que as tornam meio cegas, meio robôs. Alguém me diz se é possível encontrar equilíbrio num lugar que foi totalmente atropelado pelo cinza e pela urgência cosmopolita de existir?
É, eu preciso encontrar um jeito de voltar pro mato. Preciso parar de chorar quando ouço os passarinhos no Youtube. Ou quando passo por uma floricultura. Ou quando chove. Ou quando depois da chuva, um arco-íris aparece no céu. Isso não tem mais sentido nenhum. Assim como virar essa velhinha rabugenta que só reclama das coisas. Isso também não tá nada bom.
Outro dia fui ver o mar. Taí uma coisa que tem sido bem terapêutica para mim. Passar um tempo conversando com a minha Avó Oceano tem me feito muito bem. Ela tem aconselhado a buscar de volta um lugar no mato para morar. Uma casinha de madeira onde eu possa escrever e existir sem pressa. Um lugar que eu possa plantar umas coisas para comer, ouvir os grilos a noite, um galo cantar no nascer do dia. Um lugar onde eu possa voltar a conversar com sapos e vagalumes. Onde o ar seja fresco e as coisas do mundo não me maltratem tanto mais. Um lugar onde o tempo volte a correr no tempo que as coisas têm. Eu preciso fazer isso por mim e por essa lembrança doce do que já fui um dia. A “Tatianinha” que mora em mim vai adorar. É dentro dela que eu quero envelhecer. Dentro dela, integrada à natureza, como um musguinho verde que cresceu num tronco de árvore e vai permanecer ali até o fim dos tempos. Que o Grande Espírito me permita partir assim…
– Mãe, você não vai escrever
sobre isso tudo que tá acontecendo, não?
Engoli em seco. Sabia que essa
pergunta ia surgir mais dia menos dia. Fiquei olhando bem firme na imensidão
daqueles olhos que eu mesma coloquei no mundo e respondi sem titubear.
– Eu não sei o que tá
acontecendo, filha. Não tenho como escrever sobre alguma coisa que eu não
consigo explicar.
Ela me abraçou em silêncio. E
aquele abraço me derreteu por dentro. E apesar da suavidade do gesto, foi como
um soco na boca do estômago. Ela sabia como fazer para me destampar. Minhas
filhas sempre tiveram esse dom. Como se soubessem intuitivamente o remédio para
desentupir as veias da própria mãe.
Saiu devagar do abraço e mesmo
vendo que meus olhos estavam cheios d’água, foi firme como um general:
– Tá na hora, mãe.
Na verdade tinha passado da hora.
Desde o início da quarentena e de todas as primeiras notícias da pandemia, eu
tive uma vontade desesperada de escrever. Como se eu pudesse de alguma forma ir
registrando num diário de bordo essa viagem louca que a gente começou a fazer
do dia para noite. Mas tudo foi ficando tão surreal, tão doloroso, tão
apocalíptico, que as palavras não pareciam mais servir para traduzir a dimensão
que a coisa tava tomando. Como se o mundo de repente tivesse virado do avesso e
a gente não coubesse mais nele. E atordoada, fechei meu caderno e passei a
viver os dias, ancorada no presente, planejando só o que era possível: o almoço
e o jantar.
Mas ontem eu ouvi o chamado. E
entendi que parte dessa revolução que o mundo inteiro tá vivendo, vem de uma
transformação muito profunda de cada um de nós. É uma guerra biológica que a
gente não tem nenhum controle? É. É um vírus avassalador que transformou o
mundo em meses? É também. Mas como tudo nessa vida a gente pode escolher de que
forma vai viver a coisa.
Então sentei no computador e
estou aqui.
No início da quarentena eu via todos os jornais e acompanhava todas as notícias. Minha irmã veio para cá com os meus sobrinhos e vivemos umas semanas de férias forçadas, felizes por estarmos juntos, mas ainda assim, chocados com tudo que tava acontecendo. Mas o tempo foi passando e eles acabaram voltando para casa, porque cada um precisava reaprender essa nova configuração de vida. Foi então que as meninas foram para São Paulo passar uns dias com o pai e na primeira noite, recebemos a notícia da morte da Érika, professora de teatro da Clara, por Covid-19.
Aquela foi a primeira grande
perda de alguém muito próximo. Uma pessoa maravilhosa, cheia de vida e alegria,
tinha sido levada pelo vírus em menos de cinco dias. Ali naquele momento eu
senti uma ruptura muito profunda com o mundo que existia antes. Como se a
partir dali eu realmente fosse viver o luto não só da Érika, mas de um mundo
que eu nunca mais veria igual.
Desde então a gente vem recebendo
uma bomba atômica de informações, vídeos emocionantes, revelações sobre curvas,
lives intermináveis, textos transformadores, instruções médicas e as
estarrecedoras notícias diárias de milhões de mortes pelo mundo. Se alguém
achava que o mundo ia acabar em 2012, não imaginava o que nos esperava 2020.
O mundo como estava posto morreu e nem sequer teve direito a um funeral. Nesse momento vivemos a entressafra de algo que não podemos dimensionar. Ninguém faz ideia do tempo que isso tudo ainda vai durar. Sem contar o medo paralisante que sentimos. Uns com mais, outros com menos. Mas certamente a vibração de medo que paira no inconsciente coletivo da humanidade é bem maior do que a gente tem coragem de confessar.
Numa dessas últimas semanas, tive
uma crise de alergia muito forte. Passei uma noite péssima e de manhãzinha, acordei
febril e com uns calafrios. Pronto. Era tudo que eu precisava para detonar o
demônio do medo dentro de mim. Sintomas físicos para me desesperar e acessar
todas as informações e estatísticas que tinham ficado impregnadas em mim com
todos os Jornais Nacionais que eu tinha assistido.
O medo é sem dúvida, o mais
corrosivo de todos os sentimentos humanos. Naquela manhã eu estava apenas com
os sintomas de uma alergia muito forte, mas na minha mente, tinha contraído o
Coronavírus, tinha piorado vertiginosamente em poucos dias, tinha sido
internada, entubada, e sofria porque morria com falta de ar, sem conseguir me
despedir de ninguém.
Agora parece hipocondriacamente engraçado. Mas na hora que eu tava vivendo a coisa, foi bem doloroso. Tenho conversado com muitos amigos e isso tem sido recorrente em muitas casas: o medo paralisante da morte.
Eu não tenho medo de morrer. Já
escrevi isso em várias crônicas minhas. Mas essa doença me traz outra coisa a
ser contemplada e que é quase tão difícil de pensar quanto à própria finitude: a
nossa absoluta falta de controle sobre tudo. E isso é bem enlouquecedor.
Quando o mundo era outro mundo, o
meu maior medo era sair de casa e sofrer algum tipo de violência na rua. Sabia
que não tinha como controlar o destino e que se uma bala perdida tivesse que me
encontrar, eu não tinha como escapar dela.
Sinto que essa doença vem falar da mesma coisa, só que de outra forma.
Nem com toda prevenção, isolamento, água, sabão, álcool gel e máscaras, se eu
tiver que contrair a doença e passar por todo o processo que ela me trará, eu simplesmente,
não tenho como escapar disso. Porque no fundo no fundo todo ser humano acha que
pode ter algum controle sobre a vida. E não tem. Não tem e ponto.
Minha alergia melhorou e eu
passei a cuidar da minha saúde da melhor forma que eu posso. Tomando geleia
real em jejum, própolis com mel e limão, vitamina, homeopatia e floral. Me
alimentando bem, tomando sol no meu terraço e tentando meditar todos os dias.
Parei de ver o Jornal Nacional e só dou uma passada de olho nas notícias de
manhã para ver se um milagre acontece e o nosso panorama político muda. Porque
no Brasil, não só precisamos lidar com a pandemia como também com a psicopatia do
nosso atual governante. E sinceramente, isso tem me feito adoecer mais que o
próprio medo da Covid-19.
Mas enfim, quero terminar esse texto dizendo para Clarinha que, mesmo sem entender em profundidade tudo que está acontecendo no universo, aqui na minha pequena e divina existência, eu hoje já tenho condições de escolher por vibrar na gratidão das coisas essenciais que tenho a sorte de ter: minha saúde, a saúde daqueles que amo, meu alimento e essa casa que me acolhe e me permite estar protegida. A “gratidão” é o melhor lugar que podemos estar agora. Agradecendo aos médicos que cuidam dos doentes e a todos que estão fazendo a máquina do mundo funcionar.
Obrigada filha. Escrever me fez
muito bem. Estou me sentindo mais viva do que nunca!
Que possamos todos juntos gestar com amor esse novo mundo que virá.
Já tem mais de duas semanas que
você partiu para as estrelas e que eu venho tentando escrever essa carta para
você. Mas toda vez que começo, abre uma torneirinha aqui em cada olho e eu não
consigo nem mais achar as letras no teclado. Engraçado como a lágrima é um
condutor de memórias e sentimentos. Parece que quanto mais se chora, mais se
tem vontade de chorar. E disseram para gente que a gente precisava chorar. Que não
era bom segurar o choro porque ele devagarinho ia ajudar a doer menos.
Sabe meu amor, a gente não tava
pronto para sua partida. Foi um susto para todo mundo. Porque tudo aconteceu
mais depressa do que a gente podia compreender com a nossa mente humana. E o
nosso coração. Você sabe né, as coisas aqui na Terra sempre precisam de
explicação. E é praticamente impossível para gente entender a morte.
Principalmente para aqueles que acham que a morte é o fim de tudo. Eu não tenho
nenhuma religião, mas encontro muitas respostas na compreensão do que é
espiritualidade.
Acho que a gente nunca tinha
conversado sobre isso, mas nos últimos anos eu aprendi muito sobre esse assunto
misterioso no xamanismo e como essa filosofia de vida “entende” a morte. É bem
lindo e faz muito sentido para mim. No xamanismo, quando alguém desencarna, costumamos
dizer que essa pessoa atravessou o rio e deixou de caminhar o Caminho Vermelho
(o caminho da vida, do sangue, de quando estamos encarnados) e passou a
caminhar o Caminho Azul, o caminho das estrelas, do céu, do retorno ao Grande
Mistério. Você ia adorar esse papo todo, tenho certeza. Tantas coisas que eu
ainda queria trocar com você…
Mas enfim.
Nessas duas semanas eu não parei
de pensar em você um minuto sequer. Antes de começar a te escrever, montei um
altar bem lindo com o seu nome no centro, embaixo de uma máscara de teatro. E
vivi momentos de uma emoção muito, muito profunda, porque senti demais sua
presença ao meu lado. Tenho feito assim. Quando a saudade aperta demais eu vou
lá fora e olho as estrelas e converso com você. E é incrível como eu te sinto.
Te vejo. Se eu fechar os olhos agora, posso ver seu sorriso, o brilho que tem
nos seus olhos, o cheiro delicioso que vem dos seus cabelos, sua alegria que
sempre me transbordou.
Ainda é difícil de acreditar que
tenha partido. Porque você está muito presente dentro de nós. Você está em
todos os lugares. Ainda pulsa e vai pulsar, enquanto nós estivermos aqui. E
essa é a beleza da vida. O que fomos na vida uns dos outros. O que significamos
para eles. O que deixamos plantado no coração de cada um com quem tivemos a
chance de conviver. Sempre digo isso para as minhas filhas: o que deixaremos de
legado após nossa partida? O Amor que pudemos amar. Já dizia Frida Kahlo: “Onde
não puderes amar: não te demores.”
Eu te vejo assim. Um universo
inteiro de amor numa única alma. Pura luz, pura beleza, pura alegria. Um anjo
que passou por nossas vidas e que precisou voltar muito cedo às estrelas porque
anjos são muito ocupados. Mesmo que a gente sinta que foi cedo demais, eu
acredito que o Tempo da Terra não é o mesmo Tempo do Cosmos. E se você partiu é
porque precisava ter partido. Porque tinha cumprido sua missão por aqui. E eu
agradeço minha querida, agradeço e honro cada minuto passado ao seu lado. Cada
abraço e sorriso que recebi seu, cada ajuda que me deu naquela peça de teatro
que fizemos ano passado. Você foi a assistente mais maravilhosa que eu podia
ter sonhado. E espero que me ajude esse ano, daí das estrelas. Eu vou precisar
você sabe.
Quanto a sua família, fique
tranquila. Estamos cuidando deles da melhor forma que podemos. E eu sei que
você também estará cuidando deles daí de cima. E que em algum momento, todos se
reencontrarão, igual aquele filme lindo “Viva, a vida é uma festa!” Marina me
falou que tem quase certeza que você viu. Tomara!
Sabe que eu sempre sonhei que
minha avó Luzia me buscasse na Estação, quando fosse minha hora de voltar para
as estrelas. Mas agora conversei com ela e pedi que você venha também. Será que
você pode me buscar quando for minha hora de atravessar o rio? Vai ser
maravilhoso te reencontrar minha querida. Ser recebida por você nas estrelas
vai ser uma das minhas maiores alegrias.
Sabe, eu não tenho nenhum medo de morrer. Meu único medo é partir antes das minhas passarinhas saberem voar sozinhas. Mas quem sabe desses planos é o Grande Espírito. Então, vou deixar com ele as Grandes Decisões. Por hora, vou cuidando aqui de tentar ser feliz e multiplicar esse amor que habita meu coração.
No fim do ano, quando decidirmos
a peça, vou lá no terraço e leio o roteiro para você. Combinado? Ah! E uma
última boa notícia: sabe a sala de teatro da Escola Nossa? Vai ser batizada com
o seu nome.
Sala de Teatro Isabel Sampaio.
Não é incrível? Eu sabia que você
ia gostar.
Me despeço com um abraço apertado
e essa canção, que cantamos para você lá na Escola. O clipe é a sua cara!
Um ano que eu passei a olhar para
cima com uma sensação absoluta de propriedade. Difícil de explicar, mas
explico.
O céu é um teto planetário
misterioso que está lá todos os dias, para todos nós, desde o dia que nascemos
até o dia que partimos. E desde pequenininha que eu tenho essa relação com ele
de espanto e paixão, porque nunca consegui me acostumar com o deslumbramento
das nuvens e das estrelas. Perdi a conta das horas que ganhei na vida deitada
na grama olhando para essa coisa azul que ninguém explica.
Mas no ano passado eu tava em
busca de uma nova casa que pudesse abrigar as meninas em quartos separados e qual
não foi a minha surpresa quando descobri que tinha uma cobertura para alugar no
meu condomínio, pelo preço de um apartamento normal, porque o terraço não tinha
telhado, nem churrasqueira nem piscina. Só um céu. Mas as pessoas não estavam
interessadas nisso.
Pois bem. Aluguei a cobertura e na primeira noite que dormi na casa nova, saí sozinha no terraço e fui invadida por um sentimento avassalador. Era uma noite estrelada, limpa, fresca. Silenciosa. Já era tarde e quase todas as luzes dos prédios vizinhos estavam desligadas. Eu me deitei no chão de braços abertos e bebi daquela imensidão como se estivesse vendo o céu pela primeira vez. Uma epifania pela qual nunca tinha passado. Como alguns poucos momentos que a gente passa e entende uma centelha da existência.
Enfim, me sentindo profundamente
abençoada, segui meu ano colecionando céus, tempestades, pores e nasceres de
sol, uns mais lindos que outros. Estrelas-cadentes, luas cheias e minguantes,
arco-íris, gaivotas, balões, aviões. Meu céu tinha se transformado num divã: o
melhor lugar para curar minhas angústias só pela simples contemplação do
infinito.
E foi assim, observando essa
imensidão, que um dia, eu descobri o menino sem estrelas.
Ele mora numa janela em frente ao
meu terraço e quase todas as vezes que eu o busco no olhar, ele está lá, no
mesmo lugar, no mesmo quarto, na mesma cadeira, olhando a mesma tela grande que
reproduz imagens de um laptop, que reproduz imagens de uma guerra, onde ele
está sempre atirando em alguém.
É desesperador. Meu coração tem
que se contraído ao observá-lo na mesma proporção que se expande ao olhar para
o céu e eu não sei o que fazer com isso. Já tentei várias formas de me
desapegar dessa história, mas a cada dia, me sinto mais envolvida na trama de
observá-lo, assim como fazia o personagem de James Stewart em “A Janela
Indiscreta” de Alfred Hitchcock.
Queria me desapegar do julgamento
de vê-lo ali tão preso, mas não consigo. Queria tentar entender o que leva
alguém tão jovem a encarcerar-se dessa forma, mas não consigo. Queria ter a
coragem de chama-lo para a vida, mesmo sabendo que não tenho direito de achar
que o que vive não é vida, mas não consigo.
Os sóis nascem, os dias correm, as luas chegam, as noites caem. E o menino sem estrelas está sempre ali. E não há nada que eu possa fazer por ele. A não ser sonhar com o dia que lhe mostraria o céu e a paleta de cores que pode surgir num entardecer. Ah, seu eu pudesse, mostraria ao menino os vários tipos de vento que o vento sabe ventar. E lhe mostraria a dança das folhas, a forma mágica das nuvens, o anúncio de calor que trazem as cigarras, a liberdade que nos ensinam os passarinhos. Esperaria ao seu lado o anoitecer e lhe ensinaria que a primeira estrela que nasce no céu não é uma estrela e sim um planeta. E que todas as mais lindas constelações tem nomes próprios e que surgiram para ajudar os nossos ancestrais a compreenderem os ciclos da terra e do tempo.
Eu sei que o menino nem imagina
que eu existo. Mas se eu tivesse uma chance, uma chance apenas, diria a ele que
a vida é um sopro e que o tempo passa depressa e que se ele não se atentar, vai
perder a chance de viver, tudo que a vida tinha reservado para lhe dar.
De tempos em tempos, mesmo com a dureza crua dessa rotina que a gente insiste em viver, Deus me dá um sacode bonito e eu volto a ver um pouco daquilo tudo que está ao meu redor. O despertar dessa anestesia chega a ser emocionante de tão simples que é.
Todos os dias estaciono o meu carro na mesma vaga, na mesma posição, há mais de sete anos.
Mas hoje, depois de voltar do supermercado, minha retina ficou retida numa cena deslumbrante. O chão de grama estava coberto das pétalas da árvore. Coberto. Eu já tinha fotografado Catarina naquela grama, já tinha achado linda aquela cena, mas hoje aconteceu alguma coisa diferente dentro de mim que me fez ver aquilo tudo com os olhos da alma.
Como pode uma imagem estar carregada de tanta poesia? Tanta beleza, equilíbrio, delicadeza, simplicidade. É só um chão de grama coberto de pétalas de flor. É só um chão verde de grama fresca coberto de finas pétalas cor de laranja. Como pode?
Foi naquele pedacinho de mundo hoje que eu entendi um monte de coisas. Mas uma delas é que esse é o caminho que eu quero caminhar na minha vida. Um caminho de poesia e delicadeza. Um caminho simples onde eu possa de vez em quando ouvir Deus falando comigo.
“Ritratto di vecchio con barba” Marcantonio Bassetti (1586 – 1630)
Entrei na sala e dei de cara com ele. Giulio olhava para mim como se estivesse me esperando há muito, muito tempo. Seu olhar era tão cativante e simpático que eu o cumprimentei mesmo sem conhecê-lo. A paixão foi tão instantânea que eu tive que me controlar para não sair correndo e ir até ele para convidá-lo para um café comigo no bistrô do Paço. Mas eu sabia, que mesmo que quisesse muito, isto infelizmente não seria possível. Giulio está preso há alguns séculos num quadro e por mais vivo que pareça estar não pode sair dali.
Confesso que desde que fui assistir à exposição de pintura italiana no Paço Imperial, não paro de pensar no Giulio. Nele e em todas aquelas criaturas que estão presas lá. Algumas existiram de verdade e são tão bem retratadas que chega a dar um estranhamento olhá-las por mais tempo. Suas almas parecem presas na tinta. Me invade então a inquietante curiosidade de descobrir quem foi cada uma daquelas pessoas. Quem será que foram aquelas criaturas? Será que foram felizes? Pelo que passaram ao longo da vida? O que será que estavam fazendo na hora em que foram pintadas?
Quem viu “Moça com Brinco de Pérola” sabe do que estou falando. O filme de Peter Webber foi uma realização para as minhas fantasias. Na história ele recria o exato momento em que o pintor Johannes Vermeer retrata uma jovem camponesa, e tudo o mais que permeia a criação desta famosa obra de arte. É um filme encantador.
Percorro a exposição e percebo que não é só Giulio que parece estar presente. Tabeliões, condes, homens e mulheres. Sei que era um costume da época retratar o povo, mas qual seria o real desejo de cada um? Tornar-se imortal? Em tempos de selfie, fico imaginando o que há por trás dessa nossa obsessiva necessidade de se fotografar o tempo todo. Desejo de imortalidade também? Imaginem minha imagem fotografada por uma câmera digital, pendurada numa exposição em 2440 e alguém me observando tendo a mesma curiosidade de saber quem eu fui. Será que isso seria possível? Será que a humanidade vai existir até lá?
No fundo o que eu gostaria mesmo era de ser uma viajante do tempo. Ter a licença poética de Deus para conhecer o passado. Descobrir o que fazia esse velhinho bonachão que vocês podem ver aí em cima. Quem ele foi. As pessoas que amou. O que deixou de mais significativo em sua passagem pelo planeta. Acho que ele foi carpinteiro. E deve ter feito uma cadeira de balanço tão bela para o pintor Marcantonio Bassetti, que este resolveu presenteá-lo com um retrato.
O próprio Paço Imperial é um exemplo de nostalgia histórica inquietante. Nunca consigo passar por lá sem dar uma espiada de rabo de olho nas carruagens e ficar imaginando a cena que Dom Pedro gritou para o povo que ia ficar. Imaginem só o rebuliço que não estava naquela praça, naquele 9 de janeiro de 1822. Não seria fascinante dar um pulinho lá para ver este discurso?
Ah, minha mente viaja. Torço muito para que no futuro uma máquina do tempo seja mesmo inventada e a humanidade possa viajar em todas as dimensões do espaço. Seria maravilhoso receber uma visita dos meus tataranetos. Já pensaram? Sem a menor cerimônia eu pediria a eles para darmos um pulinho no ano de 1600. O que eu faria? Convidaria meu amigo Giulio para tomarmos uma taça de vinho tinto na taberna mais charmosa da Itália. Não seria um programa adorável?
Final da tarde. Céu azul já se pintando de laranja. Praça XV frenética com seu vai-e-vem de gente correndo para alcançar a barca. Um homem solitário está sentado numa cadeira meio quebrada, solando um som psicodélico em sua guitarra estridente, com os olhos vidrados em algum lugar muito longe dali. O amplificador – a um passo de quebrar também – não me parece amplificar somente sua música, mas também sua explícita angústia de colocar para fora esse desejo incontrolável de expressar-se. Me emociono. Ali está mais um caso de urgência artística, um dos grandes males que sofrem os artistas do mundo. Sei como o moço da guitarra se sente. Porque sou exatamente como ele.
Rapidamente me vem à cabeça meia dúzia de filmes que falam sobre isso. Nicole Kidman, no papel de Virginia Woolf, escrevendo alucinadamente até fazer calos nas mãos em “As Horas”. Ed Harris, no papel de “Pollock”, que quase enlouquece até encontrar sua melhor forma de pintar. Isabelle Adjani como “Camille Claudel”. Salma Hayek como “Frida Kahlo”. Sim, não há dúvida que há algo muito perturbador que assolam os artistas mas o mais incrível, é que mesmo que eles não tenham muita condição de se manifestar – como é o caso do guitarrista da Praça XV – eles sempre inventarão uma forma de serem ouvidos e sentidos. Mesmo que seja numa rua frenética cheia de transeuntes apressados e surdos.
Sigo meu rumo em direção ao CCBB. Esta noite vou assistir a uma peça sobre Clarice Lispector. Que alegria imaginar que daqui a algumas horas eu vou estar sentada dentro de um teatro, numa poltrona confortável, entregue de corpo e alma, simplesmente, a uma manifestação artística de alguém como eu, que não pode viver sem arte. A vida é maravilhosa.
Passo pelo Café Livraria Arlequim. Hummm. Sinto uma vontade incontrolável de tomar um café expresso. Entro no Café e agradeço poder sair um pouco do ar viciado e carbônico da Primeiro de Março e poder entrar num mundo paralelo, apenas atravessando uma porta de vidro. As livrarias definitivamente tem um cheiro divino, principalmente as que se misturam com café. Essa alquimia ainda pode se tornar mais curativa, quando além do olfato você cuida dos ouvidos. Entrei na Arlequim e tive um sopro de prazer. Tocava um tango. Belíssimo! Entrei, fechei os olhos, respirei fundo e disse para alguém que não ouviu: obrigada pelo instante!
Ah essa fartura sensorial de que é feito o mundo! Como é bom poder garimpar no cotidiano formas criativas para se viver melhor. Eu adoro. É claro que a gente precisa nutrir o corpo, mas nutrir a alma é quase tão importante. E não só de obras de arte, mas também da arte que a vida nos dá. No cotidiano, nos sentidos, no observar as pequenas coisas e inundar-se delas. Outro dia ganhei um presente da vida. Eu voltava para Niterói de 750 e me deliciava com aquela beleza absurda do sol refletindo na água do mar – quando consegui me deparar com uma cena ainda mais linda dentro do ônibus. O trocador, quieto e concentrado, fazia um origami de pássaro numa nota de dois reais.
Uau.
Saramago costumava dizer que “todos somos escritores, só que alguns escrevem outros não.” Eu diria que todos somos artistas, só que alguns tem pressa, outros não.
Outro dia eu tava lavando louça quando uma frase invadiu minha cabeça:
Eu preciso ir além.
A frase entrou e foi direto para um lugar bem fundo de mim e encontrou lá dentro um eco profundo de aflição e verdade.
Eu preciso ir além.
Além da montanha, além da mesmice dos dias, além do que se vê apenas com os olhos.
Foi bem forte.
Eu sei que a vida habita no simples do dia-a-dia. E que depende de cada um de nós resignificar esse cotidiano.
Mas eu senti que essa invasão de pensamento tinha um porquê.
Como um chamado de uma alma ansiosa que precisa muito ser ouvida.
Um dia eu realmente vou precisar ir além.
Além do que eu planejei, além do que eu sonhei, além do que eu sequer imaginei.
E vou precisar arranjar tempo para ampliar meus horizontes. Ampliar minha consciência. Ter tempo para ler um livro inteiro. Ter tempo para digerir tudo que apreendo do mundo. Ter tempo para criar tudo aquilo que me transborda. Ter tempo para fazer arte. Escrever meus textos. Tempo para meditar, tempo para nadar sem tempo. Tempo para ser. Simplesmente ter tempo para ser.
Um dia eu vou conseguir ir além.
E vou conseguir me desprender um pouco das tarefas mundanas e me dedicar somente às realizações divinas. Aquelas que a gente sente que nasceu para fazer. Para tentar transformar o olhar. Para tentar transformar as pessoas. Para quem sabe, tentar transformar o mundo.
Um dia esse dia há de chegar.
E aí sim eu vou me acalmar. E me sentir realizada. E vou sentir que a vida finalmente fez sentido. E que o mundo pela primeira vez não pareceu tão surreal.
Um dia esse dia há de chegar.
Ou porque consegui um esquema mágico de não ter tantas demandas que me afoguem no dia-a-dia.
Ou porque envelheci e tive a chance de me aposentar.
Ou simplesmente porque desencarnei.
Não importa.
O que importa, é que um dia eu realmente vou precisar ir além.
Além do que eu planejei, além do que eu sonhei, além do que eu sequer um dia eu imaginei.