Chico

Quando ele chegou nas nossas vidas, era só um bola de pelo dourada. Um protótipo perfeito da perfeição canina.

Ele chegou e deixou a gente naquele estado letárgico que nos deixam qualquer filhote, de qualquer espécie de animal. Quando ficamos por horas observando as cambalhotas, os puns e os latidinhos, querendo desmaiar de amor com tudo que fazem. Filhote é um artifício que a natureza inventou para preservação da espécie. Só pode ser. Como eles são insuportavelmente lindos, a gente faz qualquer coisa por eles.

Foi nessa armadilha que a gente caiu, quando Clara encontrou o Chico nos jardins da UFF, sozinho, perdido e tristinho. Ela me ligou de vídeo e claro, eu disse sim.

Desses momentos cruciais da vida, que um “sim” ou um “não” podem transformar toda uma existência.

Então.

Foi nesse sim, assim, que Chico chegou ao nosso apartamento em São Francisco em novembro de 2022. Enrolado num paninho sujo, com os olhinhos cheios de remela, precisando desesperadamente de um lar.

Eu já tinha tido três experiências com cachorros. A primeira foi com a Tatá. Uma vira-latinha da minha infância que por muito tempo foi chamado de Totó até que um dia percebemos que o que ele tinha entre as pernas não era um pinto, e sim uma perereca.

As outras duas experiências foram traumáticas, porque quisemos ter os cachorros e depois não demos conta de cuidá-los. O primeiro foi o Toddy, um boxer branco gigante que não conseguimos criar e foi doado para uma pessoa que morava num sítio. Certamente foi feliz. E o outro foi o Woody, um schnauzer com cara de lorde inglês que chegou no mesmo ano que a Clara começou a engatinhar. Não foi possível na época, coordenar minha loucura com limpeza junto de um cachorro que fazia xixi e coco por todos os cantinhos do apartamento. Mas tudo bem. Eu já me perdoei por isso.

Mas Chico tinha chegado para ficar.

Fizemos todos uma promessa de que ele ficaria conosco até velhinho. Que superaríamos todas as diversidades para ficar com ele. E no início tudo foi lindo. Claro que ele comeu umas meias, quebrou coisas importantes, mastigou outras tantas que eu amava. Mas ele era filhote e tudo valia a pena por aqueles olhinhos pidões.

Mas Chico foi crescendo, crescendo. E crescendo. E de repente eu me dei conta que aquela fofurinha tinha virado um Gigante Cão Caramelo. A primeira vez que ele tomou uma vacina, o rapaz falou:

– Esse daí tem cruza de Fila.

– Como é que é, meu senhor?

– É! Vira-lata mas tem Fila-Brasileiro no sangue.

Eu voltei para casa e fui pesquisar na internet. Cara de um, focinho do outro. De repente minha vida tinha virado um filme. Eu tinha um desses Caramelos que viraliza no Instagram, meio Scooby Doo, meio Marley. Que legal.

A verdade é que Chico veio para nos ensinar sobre muitas coisas. Paciência. Desapego. Resiliência. Mas, sobretudo, sobre o amor. Cachorros são os maiores professores de amor que existem na natureza. São seres de luz. Talvez até tenham vindo de outras galáxias nos primórdios da humanidade, como sugerem os antigos astronautas.

Porque ele me enlouquece, mas fala com os olhos. É um pentelho, mas me lambe de beijos. Não pára de pedir comida, mas eu também não. Late muito alto, mas entende tudo que a gente fala. De vez em quando faz mal criação. Mas vira a cabecinha de lado quando não entende. Pula na gente, arranha a gente, morde a gente. Mas nos defende de todo e qualquer perigo na rua. E é absolutamente feliz com a ração mediana que damos para ele, com o ossinho que a gente traz de vez em quando e com o potinho de sorvete dele que está sempre cheio de água fresquinha. Fora isso, sai para passear três vezes por dia.

Outro dia perguntei à veterinária dele, Julia Brasileiro, que é amiga de infância da Clara

(que aliás é uma indicação que quero deixar aqui registrada com estrelinhas piscando: obrigada Julia, pelo carinho e competência que cuida do nosso Chicote!)

…se mesmo morando num espaço tão pequeno, ele podia ser feliz. Ela respondeu sorrindo:

– Tia Tati, se o Chico estiver com vocês, ele vai estar feliz. Onde quer que seja.

Eu sei que precisamos contratar um adestrador. Sei que ele não pode ficar tomando calmante para sempre, sei que precisa de um quintal. Mas sei, sobretudo, que estamos fazendo o nosso melhor por ele. Então, que Chico siga conosco, nos bons e maus momentos. Porque ele é um cão, mas a vida é como ela é.

Queria terminar minha crônica de hoje prestando minha profunda solidariedade ao João Fantazzini, tutor do Joca, que ainda está de luto pela perda irreparável que viveu. Minha solidariedade à Roseana Murray, que mesmo tendo sido atacada violentamente por aqueles cachorros da sua vizinhança, iluminou a todos com sua sabedoria de vida e poesia. E por fim, queria prestar minha solidariedade às alminhas daqueles mesmos cachorros que atacaram a poetisa.

Eles com certeza não foram criados com amor, nem com afeto e nem com cuidado nenhum. Que criatura viva que não teve amor, não pode tornar-se um perigo para sociedade?

Qualquer uma.

Manoel de Barros

Resolvi estudar Manoel de Barros.

Como quem escolhe uma universidade e faz o ENEM para BioMedicina ou Letras, resolvi pegar uma antologia do Manoel de Barros e estudar suas poesias como quem estuda a anatomia de uma alma.

Manoel se chamava de “serzinho mal resolvido, igual filhote de gafanhoto”. Venho sentindo que para estudá-lo é preciso bem mais do que um lápis e um dicionário. É preciso bem mais do que cultura e domínio da língua. Para estudar Manoel é preciso ter muito perto do coração, a criança que fomos um dia.

É preciso ser simples e ter a coragem de olhar o avesso. O inverso. O contrário.

É preciso ler frase a frase, fechar os olhos e repetir as palavras ao vento só para ver onde elas nos levam.

Nada é óbvio na poesia dele. Apesar da simplicidade. Nada é rebuscado. Apesar das palavras difíceis. Nada é o que parece ser. Apesar da transparência. E o melhor: não há nele uma nesguinha de metidez. Em sua obra mora um ingenuidade que dá na gente vontade de chorar.

Passo o tempo todo comigo mesma brincando de formar imagem com as poesias que ele cria. E acho que era isso mesmo que ele queria. Que a gente lesse e estranhasse. Só para ter o prazer de dar risada da gente.

Sinto Manoel assim: rindo de mim lá do outro lado do rio. Muito danado.

Eu acho que eu to apaixonada.

E me apaixono mais e mais a cada página estudada.

O segredo para ler Manoel de Barros está na subjetividade e na verdade da alma de cada um. E é isso que me fascina. Se a gente não souber criancês, não vai conseguir nunca acessar o menino das formigas, das árvores, do sol e do rio.

Esse menino também sou eu.

Eu que fui menina do mato, dos girinos, das joaninhas, das amoras selvagens, das chuvinhas tristes de Teresópolis.

O menino me atravessa.

E foi assim me atravessando, que eu descobri que somos feitos do mesmo barro, da mesma matéria. Crianças sempre em busca daquele lugar perdido onde se faz transfusão de natureza e onde tudo faz sentido.

Se eu quero virar PhD em Manoel de Barros? Quero não.

Mas quero que ele venha me buscar quando eu morrer. Nem que seja como gafanhoto.

Férias

Ah! Férias…

Como uma palavrinha tão pequena pode contemplar algo tão grandioso?

Quantos sonhos e projeções de felicidade podem morar dentro de uma mesma palavra?

A gente passa o ano inteiro sonhando com as férias. Sonhando com tempo para descansar, tempo para se divertir, tempo para fazer nada, tempo para fazer tudo. Mas quando ela finalmente chega… a gente se dá conta de que o tempo das férias é obviamente um outro tempo daquele que vivemos na rotina maluca do dia a dia. O tempo passa diferente. Aliás, o mundo fica diferente. E o que era para durar um mês, parece que só duram dez dias. Mas tudo bem. Até aí tudo bem.

Mas nessas férias eu tive a sorte de passar uns dias viajando. E a constatação que fiz nesse período foi estarrecedora.

Se puder, nunca passe férias em casa.

Viaje. Mesmo que seja logo ali para Guapimirim. Viaje. Faça uma malinha. Saia de casa. As férias só significarão “férias” se você viajar.

O que aconteceu comigo?

Esse ano eu precisei ir ao Sul para fazer um procedimento no dente. Uma amiga querida que é dentista me ofereceu a cirurgia de presente e ainda ganhei um plus a mais, porque antes passamos uns dias na casa de praia que ela tem em Itapoá, litoral de Joinville. A única coisa que eu precisava era chegar lá.

Foram dias inacreditáveis. Poucos dias que me nutriram, me descansaram, me bronzearam, me fizeram gargalhar de novo depois do fim do ano puxadíssimo que tinha tido. Mas precisamente nove dias.

Pois bem.

Quando voltei, sabia que ainda tinha quinze dias de férias pela frente. Que delícia.

#soquenão

Gente, férias em casa não existe.

Férias em casa é uma pseudoférias. Uma enganação sem fim que a vida apronta para gente.

E esse ano eu entendi o porquê. Não é só porque as funções domésticas não acabam, nem porque as demandas não sabem que você está de férias e nem porque já estamos sem grana no meio do mês: mas porque nossos fantasmas moram na nossa casa!

Quando viajei, quando sai de casa, respirei novos ares, novos lugares, em nenhum momento fui assombrada por nenhum dos problemas da vida cotidiana. Nem um único fantasminha teve a chance de me assombrar com tanta novidade acontecendo.

Mas bastou eu pisar em casa, para voltar toda a tormenta. Claro! Em casa está toda a sua projeção de mundo. Nossas alegrias, nossos sonhos, nossas frustrações, nossa exaustão, nossa esperança. Todo mundo fica ali no sofá sentadinho esperando que você tome todas as providências que precisa tomar de tudo, sem te dar nem um minuto de trégua.

Exaustivo.

Bom, pelo menos comigo é assim que acontece. Mas esse ano ter tido essa percepção me ajudou a entender que é isso mesmo. Ou a gente entra de férias e encontra um espaço neutro para descansar a alma, ou vai passar as férias tentando fugir daquilo que você não agüenta mais olhar. As lutas existem, mas pelo amor de Deus, até “da luta” a gente precisa tirar férias.

Se não, como volta abastecido e forte para começar a luta toda de novo?

Jack

São esses presentes que a vida me dá. Um dia eu morei numa cobertura e ganhei um céu. Hoje moro em São Francisco e ganhei um Jacarandá.

Me mudei para esse apartamento onde estamos no ano passado e desde o primeiro dia que cheguei aqui me apaixonei pela árvore que tinha bem em frente à minha janela. Em pouco tempo descobrimos que a árvore era um Jacarandá.

Ela é uma árvore generosa, grande, alta, bonita. Parece um bonsai gigante. A folhagem é bem delicadinha. De um verde vibrante desses que eu amo. Mas o interessante é que ela tem uma copa enorme, frondosa, que se espalha por quase todo o quarteirão e é parque de diversão para um monte de passarinhos, maritacas e outras aves estranhas que nunca vi.

Na primavera surgiram umas flores amarelas deslumbrantes. Foi emocionante acordar e dar de cara com aquela floricultura na minha janela. No verão surgiram umas formas de algo que pareciam borboletas. Mas foi no outono que descobri que eram sementes. No inverno elas secaram e caíram no chão. A diversão passou a ser observar o povo passando na rua e ouvir o “croc-croc” de todo mundo pisando nas sementes secas. Um barulhão.

E foi assim, observando e admirando, que surgiu minha amizade com o Jack. Abrindo a janela e agradecendo sua existência bem ali, ao meu ladinho, todos os dias.

Mas de todas as características que contei, nenhuma se compara ao que Jack me oferece de noite.

A luz da minha rua é curiosamente uma lâmpada bem amarelada, bonita, que de noite faz uma iluminação especial na casa quando está tudo apagado. Todas as janelas têm essa luminosidade. Mas na minha janela, com a presença do Jack, algo mágico acontece na minha parede. São sombras que parecem pinturas surrealistas. Difícil explicar.

Na realidade é apenas o reflexo do balançar que as folhas fazem. Mas aos meus olhos é algo tão poético, tão lúdico, que parece cena de cinema. Outro dia eu coloquei uma música e fiquei horas observando o movimento daquelas folhas na sombra da minha parede branca. Juro, meus olhos encheram d’água. Porque a impressão que eu tive é que aquilo era um espetáculo que estava sendo feito só para mim.

Que presentes a vida me dá… O mínimo que preciso fazer é compartilhar.

Adeus, Lady

Hoje assinei o documento de transferência de venda do nosso carro. Não há mais volta. A Lady partiu para sempre. Uma sensação estranhíssima de vazio invadiu meu peito.

Como quem perde um amigo, um filme passou pela minha cabeça, desde a primeira vez que entrei naquele Ford Ká e resolvi comprá-lo de uma vizinha lá no Bosque.

Foi amor à primeira vista. Pelo vermelho do carro, pela potência do motor, pelos bancos de couro, pelo jeitão simpático da buzina, pela TVzinha que tinha no lugar do som.

A grande verdade é que a Lady foi muito mais do que um carro para mim. Ela foi uma amiga, uma companheira, uma babá, uma van escolar, um armário, uma sala de espera, um hotel, uma lanchonete. Um palco de infinitas gargalhadas, discussões, resoluções, trânsitos, experiências e vivências extraordinárias.

Se a Lady falasse, não contaria nenhum segredo nosso para ninguém. Porque ela foi fiel, foi honesta, foi guerreira. Mesmo sem dinheiro nenhum para cuidar dela, nunca me deixou na mão. Só andava no cheiro da gasolina e mesmo assim, resistia bravamente pelas ruas de Niterói.  Pneu era só remold. Tudo bem. Meu namorado deve ter trocado uns 345 pneus que furaram nesses últimos anos, mas é a única coisa que eu poderia reclamar dela. Ah sim. Ela esquentava um pouco, mas quem não se esquenta com um trânsito dos infernos?

Eu já tive outros carros na minha vida. Tive dois Fiats 147 na época da juventude: a Chalana e o Osnar. Depois tive um Fusca Marrom quando casei. A Alcione. Um Palio cor de vinho, o Chili. E um Fiat Uno charmosíssimo. O Billy Ray. Mas nenhum desses carros deixou tanta saudade como a Lady hoje está deixando.

Vendi porque precisava vender. Porque tinha dívidas do carro, não tinha grana para manutenção, não tinha documento em dia, não tinha dinheiro para gasolina, não tinha seguro, enfim. Gente pobre não pode ter carro. Gente pobre anda de ônibus e de Uber no melhores dias do mês.

Mas eu não queria que esse dia passasse em branco sem homenagear minha brava e guerreira Lady.

Obrigada minha Charanga, por todo o transporte e apoio e chão que você nos deu nesses últimos anos. Que você seja e faça muito feliz a sua nova família.
Te amamos.

A Partida de João

Quando me mudei para cá, eles já moravam aqui.

No poste em frente a varanda, tinham feito sua casinha de barro lá no alto, para poder ter a melhor vista do Bosque.

Eu dava bom dia para eles todos os dias. Era um casalzinho simpático. Estavam sempre atarefados e costumavam cantar alto durante as manhãs de sol.

Fomos criando um vínculo, desses elos estranhos que a gente vai fazendo ao longo da vida com algumas criaturas desse mundo.  

João e Maria pareciam um casal feliz. Dizem que é uma espécie monogâmica e que podem ficar juntos até quase quinze anos de vida. Isso que é um casamento bem-sucedido. Existe uma lenda de que o macho prende a fêmea na casinha se ela faz algo de errado, mas acho muito improvável. Esses julgamentos de certo e errado são demasiadamente humanos para as leis da natureza. Enfim, pesquisei e não tinha nada de concreto sobre isso na internet.

Pois bem.

Hoje de manhã acordei e fui para varanda ver o tempo. Costumo fazer isso quando acordo, para agradecer a benção de mais um dia e ver se está sol, nublado ou chovendo. Cada tipo de tempo requer uma energia da gente. Não dá para ficar triste num dia explosivamente ensolarado. Já um dia chuvoso, há menos exigência de felicidade e expansão. Mas voltando aos passarinhos. Quando olhei para o canto esquerdo da varanda, para dar bom dia aos meus amigos, estranhei ver alguma coisa pendurada na casinha de barro. Olhei de um lado, olhei do outro e pensei:

– Ué, por que o João está pendurado na porta de casa?

Corri para o quarto da Clara, de onde temos uma visão melhor da casinha de barro.

Qual não foi o meu choque quando me deparei com uma das cenas mais tristes que já vi.

João morto, pendurado por uma das asas em uns galhos e umas poeiras, que saiam da porta da casa e Maria ao seu lado, imóvel, cantando.

Não consegui acreditar.

O que será que poderia ter acontecido com aquela pobre criatura durante a madrugada?

Teria ele levado um choque nos fios de alta tensão? Ou um predador o teria atacado no meio da noite? Teria Maria assistido a cena dramática da morte de seu companheiro?

Impossível saber.

A verdade é que uma tristeza sem fim nos invadiu aqui em casa e a sensação é de estarmos de luto.

Estou só aguardando um vento mais forte soltar o corpinho do meu compadre para ir buscá-lo lá embaixo e dar-lhe um enterro digno e poético. O enterro que merecem esses seres mágicos.  

Queria poder dizer a Maria que sinto muito por sua perda, mas ela parece perdida. Vai e volta para porta de casa, olha João ali e sai voando de novo, como quem não sabe o que fazer sem seu companheiro de vida.

Que a vida é efêmera eu já sabia.

Só não sabia que podia amar um bichinho assim como amei esse João de Barro.

Que ele siga em paz pelo Caminho Azul e voe livre pelo céu dos passarinhos.

Imagética

Viviane Mosé costuma dizer que “quem escreve escava o que o silêncio palavra”. Eu acho que eu escrevo para escavar o que a “imagem” palavra.

Isso desde pequenininha.

Me lembro na infância de ser surpreendida por alguma imagem e precisar ir buscar um lápis desesperada para não perder aquilo que tinha me tomado por completo. Nem que fosse o encontro com um bicho-pau. Eu precisava registrar. E tinha que ser por escrito.

Essa mania de querer traduzir o mundo.

Mas com o tempo fui crescendo e descobrindo que o meu negócio era porque meu cérebro não só absorvia o que via como produzia algum desdobramento do que eu tava vendo.

Explico.

Se eu visse um bicho-pau… Aquele bicho na mesma hora tinha criado vida e tinha ganhado um nome. E na minha cabeça já tinha virado um personagem cheio de questões existenciais porque tinha me contado que não queria ser um bicho-pau, mas sim um maestro de música clássica. E a história seguia.

Outro exemplo que é minha cara. To parada no ponto do ônibus. Olho pro céu azul. Imagino que aquele céu é azul há mais de cem mil anos. Pronto. Quando baixo a cabeça, já estava no planeta Terra na época dos dinossauros, tentando imaginar onde é no planeta que estaria localizado aquele ponto de ônibus.

Olha. Parece legal mas é bem enlouquecedor as vezes. Porque a mente não para de criar. E produzir imagens. Fui buscar no dicionário o que significa ser imagético e é isso mesmo: aquele que revela imaginação. No meu caso: excesso de imaginação.

Deve ser por isso que acabei me apaixonando pelas metáforas. Deve ser o desdobramento do desdobramento.

Mas claro que como tudo, essa coisa de ser imagética também tem seu lado sombra.

Muitas vezes, sem querer, produzo cenas sombrias na minha mente em menos de dois segundos. Como acidentes por exemplo. Minha mente é especialista em produzir acidentes de carro. Durante um tempo da minha vida tive medo de ser premonição. Mas não era. Graças a Deus. Ou eu morri assim em outra vida ou eu sou muito doida mesmo.

Mas enfim.

Tudo também pode ter sido pela educação cinematográfica que eu tive. Já contei para vocês que não tinha nem 10 anos minha mãe me levou para ver KOYAANISQATSI – um documentário do Coppola sem atores, nem diálogo nenhum, só com uma trilha sonora inacreditável, mostrando o ser humano, o planeta e essa convivência desequilibrada que a gente sempre teve.

Imagina gente! 10 anos!

Bem que eu tentei fazer faculdade de cinema, mas como quase tudo que fiz na vida, não terminei. Comecei mas não terminei. Minha biografia tem muitos casos como esse. Um milhão de planos e projetos não finalizados. Acho que só terminei as minhas filhas porque a Mãe Natureza ajudou. Presas nove meses na minha barriga, não tinha como não concluir o projeto. Mas enfim. Me acolho com todas as minhas estranhezas.

Mas que essa de entender hoje que escrevo para escavar o que a imagem quer palavrar… essa foi demais. Valeu a segunda-feira.

Alguém na escada

Não sei quem vai acreditar nessa minha história, mas eu vou contar mesmo assim.

Aconteceu comigo há uns meses atrás e eu tenho certeza de que não foi sonho.  

Estávamos na sala, eu a as meninas, numa dessas noites de verão de calor insuportável, amontoadas entre colchões e edredons, no único ar-condicionado bom da casa.

Já era bem de madrugada. Na sala, só a luzinha fraca de um abajur estava acesa.

Eu acordei num estalo – tenho sono leve desde que as meninas nasceram – e na mesma hora que abri os olhos, olhei para a escada (onde fica meu quarto no segundo andar) e vi dois pés estranhos, escuros, se encolhendo.

Congelei.

Sabe quando uma coisa muito chocante te acontece e você fica simplesmente paralisado, com o pensamento a mil, tentando entender o que acaba de acontecer?

A primeira coisa que fiz foi olhar para os lados, para entender onde estava, em que dia estava e que horas deveriam ser. Mas sobretudo, para me certificar que não estava dormindo.

Depois olhei para cima de novo petrificada de medo, para refazer a cena que tinha acabado de ver e tentar entender o que eu tinha visto.  

Sim. Eu estava acordada.

Sim. Eu tinha acabado de ver dois pés se encolhendo na escada do meu apartamento.

Detalhe: em nenhum momento daquela noite eu achei por um segundo sequer, que tivesse sendo observada por alguma pessoa.

Dentro do mim, o mais bizarro, estranho e inesperado era que eu tinha certeza que os pés que eu vi sendo encolhidos, não eram pés humanos.

Ainda passei um bom tempo ali sentada, repassando a cena mil vezes na minha cabeça, até ter coragem de me levantar.

Finalmente acendi as luzes da casa, acendi a luz da escada e tomei coragem para subir lentamente, até conseguir acender as luzes do terraço e olhar tudo lá fora.

A noite estava quieta. Sem lua. Sem nuvens. Sem vento. Só estrelas e a sensação absurda de ter sido visitada por algum ET.

“Caramba” pensei comigo: “Nenhuma testemunha. Ninguém vai acreditar em mim”

O segundo evento aconteceu alguns dias depois.

Nesse dia eu estava na minha cama, lá no segundo andar. Edu dormia ao meu lado. Também era de madrugada. Eu acordei num estalo e vi em cima da minha cama uma coisa voando, como se fosse um mini drone cheio de luzinhas. Congelei de novo e comecei a cutucar o Edu. Estava tudo muito escuro. De repente a coisa sumiu. Quando ele acordou, achou que eu estava sonhando. Claro. Igual esses filmes que a gente vive uma coisa absurda e ninguém acredita.

Bem, depois disso nem preciso dizer que nunca mais consegui dormir 100% tranquila nesse apartamento né.

O sentimento é sempre um misto de medo, curiosidade e a mais completa paixão por esse assunto.

Não sei quem vai acreditar nessa minha história, mas eu precisava contar mesmo assim.

Alguém já viveu algo parecido?

A trilha sonora da alma

O que é que acontece quando a gente no meio do dia, no meio de um dia comum, encontra uma coisa sem querer que fala de um lugar muito, muito profundo da sua alma?

Fica em choque.

Foi isso que aconteceu comigo na semana passada, quando buscando uma música no Youtube, eu me deparei com um disco de um pianista italiano chamado Ludovico Einaudi.

Eu estava me preparando para escrever.

Quando “Seven Days Walking” apareceu como sugestão, eu reconheci o nome dele, de um presente que tinha ganhado há muito tempo do meu amigo querido – Jo, que só me dá presentes extraordinários. Presentes para alma. E eu já tinha amado o piano lindo que ele tocava. Mas naquele dia, quando eu dei play na primeira música do disco, o tempo parou.

Eu não sei se todo mundo sente assim, mas eu sinto que cada alma tem uma trilha sonora. Uma música que representa o que a gente é, no mais íntimo do nosso ser. Uma música que toca e fala por você. Por seus sentimentos, por seus silêncios, por sua voz que nem sempre tem palavra para descrever o que passa a sua existência. Uma música que te representa no universo. Aquela que pode ser tocada quando você desencarnar e finalmente encontra o Criador.

Eu cliquei na música “Low Mist Var.1 (Day 1)” eu parei de respirar. 

Fechei os olhos e senti uma emoção vindo de lá do centro do meu ser. Não sei dizer se a coisa vinha do peito, do coração, do imaginário que é imaginar a vastidão do que eu sou por dentro. Sei que ela vinha de um lugar muito fundo, muito íntimo. E conforme a música foi tocando, meus olhos foram transbordando a emoção de me reconhecer em algo que estava do lado de fora. Como se uma sinapse tivesse sido feita. Igual aquele rabinho mágico cheio de fiozinhos que as criaturas azuis de “Avatar” conectavam com a Árvore da Vida.

Olha, é muito difícil descrever o que senti naquele dia. Só sei que fui tomada por algo tão forte que chorei por algum tempo agradecendo para alguém ou alguma coisa que eu nem sabia quem era.

Experiências sensoriais assim, são para mim, a confirmação do divino em nós.

Algo que vivemos e ninguém mais pode mensurar a magnitude da vivência, a não ser você mesmo.

Fui pesquisar, claro, sobre essa obra de Einaudi e qual não foi a minha emoção quando descobri que em janeiro de 2018 ele estava recolhido nos Alpes (olha isso) e quase todos os dias ia caminhar, sempre seguindo mais ou menos a mesma trilha. Num dia, em meio a uma forte nevasca, “seus pensamentos foram vagando livres tempestade adentro, onde todas as formas, despidas pelo frio, perdiam seus contornos e cores”, e isso permitiu que ele construísse um “labirinto musical” presente nas músicas.

Uau…

“Seven Days Walking” é um conjunto de sete álbuns que foram lançados num intervalo de sete meses a começar pelo primeiro volume, “Day One”. Em toda a obra, Ludovico Einaudi está ao piano, Frederico Mecozzi no violino e viola e Redi Hasa no violoncelo.  

Se alguém desejar passar por essa experiência sensorial extraordinária, é só entrar nesse link:

Para fechar esse texto só queria dizer que o mar, as ondas que quebram na areia, o vento, as folhas que dançam com o vento e tudo que habita a natureza também fazem parte da trilha sonora da minha alma. E que um dia, eu hei de encontrar uma forma de caminhar pelos labirintos da minha mente e escrever o livro que minha alma tanto anseia.

Quem sabe uns dias recolhida nos Alpes pode ajudar. Não custa sonhar. : )

Aqui mais um link para o trailer que explica um pouco mais sobre o projeto “Seven Days Walking” e seu processo criativo. Emocionante e belíssimo. Aproveitem!

Para onde eu quero ir

Ah… falar sobre onde eu ainda quero ir nessa vida é fácil.

É quase como fechar os olhos e fazer planos com o prêmio de uma loteria. Vivo fazendo isso, mesmo sem nunca jogar.

Numa das cenas que eu mais amo de “Comer, Rezar e Amar”, a personagem do filme conta a história de um homem que vivia na igreja pedindo ao santo para ganhar na loteria. Todos os dias ele fazia o mesmo pedido pro santo: “me ajuda a ganhar na loteria, me ajuda a ganhar na loteria”. Um dia o santo se irritou, abriu os olhos e disse para ele: “te ajudo, mas compra um bilhete, compra um bilhete.”

Essa história me toca muito porque não adianta você sonhar desesperadamente com alguma coisa se não faz por onde essa coisa chegar até você.

Passei boa parte da minha vida vivendo no modo pipa.

Modo pipa é aquela pessoa que vive voando, dispersa e solta como uma pipa, com os pensamentos lá longe. Sonha com a vida, tem um milhão de ideias e projetos e não realiza nenhum porquê não tem nada de concreto que a faça realizar nenhuma das coisas que vive sonhando. É alguém que não tem pé no chão, nem raiz que nutra seus sonhos.

Foi preciso muito tempo de terapia para eu conseguir enxergar que esse modo de ser, apesar de romântico e poético, não me servia para nada no mundo real. Claro que também tinha a questão da minha enorme dificuldade com o mundo real. Até porque realidade, convenhamos, é algo bem subjetivo. Difícil colocar todo mundo numa mesma camada de compreensão do todo, até porque isso envolve infinitas perspectivas. Mas simplificando, a verdade é que eu entendi muito bem entendido que para realizar os sonhos, eu precisava fazer minha parte.

Então hoje, quando eu sonho com todas as coisas que ainda quero fazer, todas elas partem do pressuposto que eu vou ter ralado para caramba para chegar lá. Mas enfim.

Depois do sonho de ser mãe, o maior sonho da minha vida ainda é conhecer o mundo. Eu já tive a sorte de sair do Brasil algumas vezes na minha juventude, mas agora o sonho é ver o mundo da perspectiva dessa Tatiana mais velha. Mais cascuda. É uma gana por conhecer pessoas, lugares e culturas que me façam apreender o mundo da forma mais expandida possível. É o desejo profundo de viver experiências que só vou poder viver se atravessar fronteiras.

Então, o plano é um dia desses conseguir o emprego dos sonhos: conseguir alguém que me pague para escrever sobre as viagens que vou fazer. Gente! Isso existe! Tem gente que ganha dinheiro com coisas inacreditáveis. Essa gente deve ter feito coisas muito boas em outras vidas para merecer esse trabalho não? Por exemplo: gente que ganha para experimentar as comidas do mundo. Sério, que pessoa é essa que tem esse emprego? A reencarnação de alguém muito especial, com certeza.

Mas meu plano é comprar um motorhome e sair pelo mundo vivendo, observando, integrando e escrevendo. Olha para isso, gente! Não é um sonho incrível?

Para qualquer lugar que eu vá no meu futuro, eu só peço uma coisa pro meu santo: que seja sempre com meu caderno, minha caneta e essa curiosidade infinita que me provoca a vida. Quero ficar velhinha e sentir que o mundo ainda me espanta. E deixar alguns livros para os meus netos saberem quem eu fui e como senti a existência. Não é pedir muito, é?