Meu Novo Corpo

O corpo é a máquina que nos acompanha desde o primeiro momento em que somos cuspidos para fora do corpo da nossa mãe, até o dia em que voltamos para terra – no caso – a Mãe Terra. Um mesmo coração batendo ininterruptamente nesse mesmo corpo, uma vida inteira. Do girino até o último suspiro. Não é um troço incrível?

O corpo é um universo inteiro dentro dele, mas eu nunca tinha pensado muito nisso, antes de começar a envelhecer.

Quando a gente é jovem não pensa muito no próprio corpo: só usufrui dele. Tem muita energia, não usa protetor solar, não se cuida, sobrecarrega o fígado, não dorme, vira a noite, faz loucuras e sempre fica tudo bem.

Aí chega a hora de reproduzir. Pã! Hora de ter filhos.
As barrigas que trazem o milagre da nossa existência também serão as que mais vão nos cansar. Imaginem só: gestar, parir e depois criar a criançada toda? Não é brincadeira não. Tive duas e sei bem como foi.

Pois bem.

Ano passado eu fiz 50 anos. E achei um luxo fazer 50. Nunca me preocupei com pé de galinha nem com cabelo branco porque sempre achei rugas um charme e desde os 16 pinto meu cabelo de vermelho. Mas de repente, tudo começou a mudar. Sentimentos, sintomas e características físicas começaram a mudar meu corpinho da água pro vinho. E por mais que eu tenha consciência da efemeridade da vida, a ficha está demorando um pouco a cair.

É uma dor no joelho aqui, uma travada na lombar acolá. Os dez quilos que surgiram do nada (mentira: tudo cerveja, azeitona e amendoim) que acabaram virando umas curvinhas e dobrinhas que eu não reconheço no espelho. São os calores do climatério, as pintas brancas e marrons iguaizinhas da minha avó alemã, uma barriguinha desgraçada que nem com cinta se disfarça, as teias azuladas das varizes, o cansaço absurdo que eu sinto quando levanto da cama às seis da manhã. A preguicinha de sair no fim de semana, a melancolia sem explicação, as desculpas para não ir nadar, a disposição extraordinária que se precisa ter para uma noite de amor.

Outro dia passei na frente de uma vitrine, me olhei de longe e levei um susto. “Meu Deus! Será que aquela senhora ali sou eu?” E era.

Envelhecer…


Irene Ravache deu uma entrevista dizendo que não fez nenhuma plástica porque estava muito curiosa para saber como ia ficar enrugada. Achei genial. É assustador o que anda acontecendo com as jovens senhoras que estão com medo do tempo: estão todas ficando muito parecidas. Com a mesma bocona de Angelina Jolie e sem nenhuma expressão por terem se esticado. Será que elas não percebem que tirar as linhas de expressão vai justamente impedi-las de expressar-se? De ser quem são? E que as rugas são o registro físico de tudo aquilo que vivemos?


Ainda assim, estou aqui no meu processo de aprender a amar o meu novo corpo. Porque não sou mais a Tatiana gatinha, magrinha de 20 anos, que usava calça Saint-Tropez e dançava descalça nas festas até o amanhecer, mas também não sou a vovó fofinha e gordinha que serei aos oitenta. Que vai fazer muitos bolos, usar xale de tricô e contar histórias deliciosas para os meus netos. Me sinto agora como se estivesse num vácuo do tempo. Nem gatinha, nem vovozinha. Então, quem sou eu? Balzac escreveu sobre as mulheres de 30. Roberto Carlos fez música para as de 40. E as de 50? Ninguém vai homenagear não?


Meu novo corpo continua macio e cheiroso. Continua saudável e faminto. De amor e de vida. Talvez isso seja o suficiente para viver mais uns 30 anos. Mais 30 anos com o meu coração batendo sem parar. Nessa máquina mágica que abriga minhas histórias e minhas memórias. Não há nada mais lindo e digno do que envelhecer amando quem se é.

Carta aos meus pés

Meus queridos pés,

Caminhamos juntos há quase quarenta e quatro anos.

Chegamos a esse planeta num parto rápido e indolor, num país chamado Brasil, mais precisamente nas terras de Minas Gerais, no outono de abril de 1973.

Não demoramos muito a nos firmar no chão. Nossos primeiros passos foram dados em Teresópolis, numa solitária casinha no Vale São Fernando.

Nossos primeiros anos foram preciosos.

Nos refrescávamos em riachos, pisávamos felizes em pedrinhas, grama verde e chão de terra batida. Corríamos livres por colinas e bosques. Subíamos em árvores altas, escalávamos montanhas, percorríamos nosso pequeno mundo com curiosidade. Tínhamos muita coragem.

Crescemos e fomos parar na cidade grande. Estranhamos muito o Rio de Janeiro. A dureza do asfalto, a pressa das pessoas, a ausência dos vaga-lumes. Mas nos encantamos a primeira vez que pisamos na areia da praia de Ipanema. Encontramos o mar e o mar nos curou da saudade da terra.

Foram anos bonitos também.

Andávamos de patins, de bicicleta. Aprendemos a dançar, a gostar da cidade, tínhamos muitos amigos. Até que um dia encontramos um solo tão precioso para nós quanto um dia tinha sido a terra. Lembram? Foi quando pisamos num palco de teatro pela primeira vez. Depois de muitos anos, tínhamos encontrado de novo um lugar no qual nos sentíamos em casa.

Foram anos emocionantes.

Brincávamos de ser outros pés, de existir de outras formas. Sonhávamos acordados, voávamos para onde queríamos. Descobrimos que a vida era sonho e que sonhar também podia ser uma forma de caminhar pelo mundo.

Mas o tempo passou. E o tempo nos trouxe o tempo de carregar outros pés dentro de nós. Colocamos no mundo dois pares de pezinhos encantadores. E encontramos de novo o sentido de existir.

Foram anos incríveis. E muito trabalhosos também.

Porque passávamos quase o tempo todo ou alimentando os pezinhos ou correndo atrás deles. Acho que nunca podíamos imaginar o que significava colocar outros pés no mundo.

Foi quando a vida nos levou a percorrer outros solos do nosso país. Fomos para São Paulo, para Joinville. Mudávamos de endereço como quem muda de sapato. Buscávamos alguma coisa que nunca encontrávamos.

Foram anos estranhos.

Até que chegamos a Niterói. Cidade que vivemos hoje. E durante muito tempo aqui fomos felizes. Até que vocês adoeceram.

Há mais de um ano, vocês passaram a sentir muitas dores para caminhar. No início, a dor acontecia somente na hora de sairmos da cama. Eram os primeiros passos depois do sonho que nos faziam sofrer. Mas com o passar dos meses, a dor no caminhar foi se transformando em algo constante e muito angustiante para nós.

Falo com vocês, tento entender o que sentem, mas nenhum dos dois parece me ouvir. É onde nós estamos que vocês não querem mais estar? É por onde caminhamos que vocês não querem mais caminhar? A dor paralisou vocês e eu preciso entender por que.

Temos vivido um período de profunda tristeza. Cuido de vocês com toda a dedicação. Já fiz de tudo que podia. Tudo que estava ao meu alcance. Massagem com cremes, banhos de óleo com canela. Salmoura com ervas. Gelo úmido. Comprei sapatos confortáveis. Tomei anti-inflamatórios, babosa, florais. Encomendei pantufas coloridas. Toalhas felpudas para secar vocês. Fiz fisioterapia com bolinhas, moxabustão. Fiz carinho. Escrevi em vocês palavras de amor e cura. Os abracei com amor. Mas nada parece ajudar.

Meus pés, meus queridos pés

O que é que vocês estão tentando me dizer com essa dor que não cessa nunca? Que vocês não querem mais caminhar? Ou que não suportam mais o caminho que escolhemos trilhar?

Será que não nos enraizamos o que precisávamos para estar aqui? Será que nunca ancoramos na Terra como deveríamos? Ou será que precisamos agora de asas para voar?

Meus pés, falem comigo. Me digam o que preciso fazer para que parem de chorar.

Sei que sentem falta do tempo que andávamos livres por riachos e também sentem saudade dos palcos da vida. Mas será que são essas ausências que fizeram vocês adoecerem? Me deem uma pista do que posso fazer. Por vocês… por nós.

Se estamos vivos, é sinal de que nossa missão ainda não chegou ao fim.

Mas não me deixem aqui sozinha. Caminhar sem vocês não faz sentido algum. Porque não conseguirei caminhar por inteiro. E muito menos ser feliz.