Redes Surreais

Para Clara Meira

A discussão toda começou por causa de um texto que eu tinha postado e resolvido tirar do ar. Um texto que ela tinha amado. Mas que eu não tinha ficado nem um pouco satisfeita.

– Mas mãe, por que você fez isso?

– Porque eu não gostei do texto, filha. O site é quase um retrato da minha alma. Uma extensão do meu coração. Se escrevo alguma coisa da qual me arrependo, eu tenho todo o direito e licença poética para ir lá e tirar.

– Aff mãe, você se preocupa demais com umas coisas e de menos com outras. Com quantas curtidas está sua página no Facebook?

Ali percebi que a discussão ia esquentar.

– Minha filha, sinceramente, você acha que eu sei essa resposta assim, na ponta da língua?

– Mãe, você parou de abastecer sua página, não dialoga com o seu público, como quer que a página cresça se não investe nela? Nem Twitter você tem!

– Ah não Clara, não me vem com essa história de Twitter de novo…

– Mãe, o Twitter tem um poder muito maior de divulgação que o Facebook. E o seu Instagram, há quanto tempo você não coloca nada lá? Assim não dá mãe…

– Mas filha, para mim é tudo a mesma porcaria. Eu não consigo entender para que tanta diversidade de rede social. Pensa bem: é Whatsapp, Facebook, LinkedIn, Twitter, YouTube, Instagram, Skype, Vimeo, Snapchat, Tumblr. Caramba! Todo mundo tem tanta coisa pra falar, mas quantas se escutam? Eu conto nos dedos os amigos que eu realmente troco alguma coisa de verdade.

Ela fez aquela cara que ela faz quando tá arquitetando uma resposta inteligente para me desarmar.

E de repente, me deu um aperto no peito. Uma angústia, misturada com frustração, com desânimo. Meus olhos se encheram d’água e eu não sabia mais o que falar.

Ela desarmou a cara de briga e me olhou com aquele olhar doce de quem entendeu tudo. E veio me abraçar com todo o carinho.

– Mãezinha, por que você tá chorando?

Eu queria tentar explicar para ela que os poucos anos que dividem as nossas gerações, transformou tudo rápido demais e o que parecia tão simples e óbvio para ela, não fazia quase nenhum sentido para mim.

– Clarinha, eu sou de um tempo muito diferente do seu. Quando eu tinha a sua idade ninguém tinha acesso a computador. Não existia essa tecnologia toda que existe hoje. Imagina que só tinha aparelho para tocar CD quem fosse muito rico. O máximo que eu tive em casa foi um telefone com fax e isso era assim uma coisa muito extraordinária. Eu tinha aparelhos eletrônicos sim, mas era um toca-fitas, uma vitrola e um aparelho de videocassete para ver filmes alugados. Você sabia que se a gente não rebobinasse a fita pagava uma multa na locadora? Você entende agora a diferença dos nossos tempos?

– Entendo mãe, claro que entendo. Mas hoje você tá muito bem adaptada às modernidades desse novo tempo, só resiste um pouco a elas.

– Eu to, claro que eu to. Eu tenho um laptop meio calhambeque, mas tenho. Tenho um site oficial de crônicas e isso eu agradeço muito porque foi a chance que eu tive de mostrar para muita gente aquilo que escrevo. Eu tenho um celular moderno, com android – mesmo sem saber direito o que isso significa – e eu tenho conta em algumas redes sociais, mas no fundo, lá no fundinho de mim, eu sempre fico com a impressão de que esses lugares mais me sugam energia do que me nutrem…

– Como assim, mãe?

– Ah Clara, tem muita gente postando coisas interessantes nas redes sociais, mas na grande maioria o que vejo é o retrato de uma geração solitária e esvaziada de sentido. Por exemplo: as pessoas amam tirar selfie. Tudo bem. Mas para quê tanto selfie? Ninguém mais tá vivendo o momento, porque só se preocupa em registrar o momento.

– Mãezinha, não precisa levar tudo tão a sério… Posso te falar uma coisa?

– Pode.

– Você não quer ser uma escritora famosa e poder viver do que escreve?

– Sim.

– Você não sabe que o caminho para publicar um livro através de uma editora é bem complicado?

– Sei.

– Então, a internet mãe é uma ferramenta poderosa porque atinge muitas pessoas em segundos. Eu sei que isso te assusta um pouco, mas respira e segue em frente.

– Eu não sei se eu consigo dar conta desse mundo, filha.

– Presta atenção. Foca nas três redes mais importantes para você agora. O Facebook, o Instagram e o Twitter são redes diferentes, mas você precisa de todas para formar uma grande rede de pessoas. No Facebook você pode trocar coisas interessantes com os seus amigos, divulgar seus textos e ideias. O Instagram é um registro mais pessoal de você como pessoa e o Twitter é aquela rede social mais rapidinha, que tudo acontece em segundos, mas que por causa da possibilidade dos retweets, você vai atingir muito mais gente…

– Mas como que eu vou dar conta de tanta coisa num dia só? Abastecer todas as minhas redes sociais, escrever, ler, cuidar de vocês, de mim, da casa, do trabalho e do espírito? Eu não vou dormir né?

Dessa vez ela abriu um sorriso tentando buscar paciência.

– Mãe, é só se organizar que você vai conseguir. Quer que eu te ajude?

– Quero.

– Quer perguntar alguma coisa?

– Quero. O que é retweet pelo amor de Deus?

 

Ladies and Gentlemen

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Ele estava sozinho numa sala toda branca, gelada e silenciosa. Enorme, imponente, colorido. Ocupava quase toda a parede de um extremo ao outro numa das salas da exposição de Andy Warhol no Centro Cultural Banco do Brasil. Entrei sozinha e fiquei ali, em estado de choque, ao me deparar com a imagem que via. Era um retrato duplicado de duas mulheres, carregado de muita tinta, que delineava formas e texturas e enchia de sombras um simples retrato.

Para falar a verdade, até aquele momento, a exposição não tinha me emocionado muito. Eu conhecia um pouco da história de Warhol e da importância de tudo que ele tinha feito – e pensado – sobre arte no mundo contemporâneo. Gostava da releitura com a imagem da Marilyn Monroe e da reflexão que ele sugeria ao imaginar que até as celebridades, ao serem retratadas de forma mecânica e em série, podiam se transformar em figuras impessoais e vazias. Mas daí a me emocionar com que ele tinha feito eram outros quinhentos.

Eu fui porque precisava ir. Porque não perdia uma única exposição no CCBB. E porque queria entender e ver de perto o que o mundo chamava de “pop art”. Mas na hora que eu entrei naquela sala e deu de cara com aquele quadro, meu coração congelou.

A tela eram dois retratos idênticos, um acima do outro, numa mesma tela gigantesca. Duas mulheres, duas faces de mulheres, uma mais à frente e a outra recuada para trás, como se abraçasse a primeira pelas costas. Bom, para falar a verdade as duas eram meio andrógenas, mas eu as vi como mulheres. Estavam sérias.  E o que diferenciava os retratos eram as cores que predominavam em cada imagem: laranja, rosa e azul na de cima. Verde, roxo e um outro tom de laranja, na de baixo. Pois bem. Tudo teria sido igual se a mulher que estava mais à frente no retrato não tivesse uma estarrecedora semelhança comigo.

Fui olhar o nome do quadro: chamava-se Ladies and Gentlemen e tinha sido pintado no ano de 1975. Rapidamente fiz as contas de quantos anos eu teria na época. Em seguida me senti ridícula por ter feito isso. Voltei a olhar a imagem. Eu olhava para ela e ela olhava para mim e eu comecei a sentir um desconforto esquisitíssimo. A boca pequena, o lábio fino, o nariz, o formato do rosto, o olhar sério, o cabelo, o jeito. Eu sabia que era uma loucura pensar isso, mas eu pensei. E num fração de segundos eu imaginei que aquela mulher talvez pudesse ser eu. Numa outra vida, numa outra época, numa outra geração, num outro nome, numa outra dimensão.

Na mesma hora me lembrei de um dos meus filmes favoritos do Krzysztof Kieslowski: A Dupla Vida de Veronique. Numa das cenas do filme, o personagem de Irene Jacob se vê de longe numa praça. Ela está dentro do ônibus e por um instante a “outra ela” a vê também dentro do ônibus e elas se reconhecem. Essa foi uma das cenas mais emocionantes que eu já vi no cinema e agora eu estava ali, com a mesma impressão e pavor por estar me reconhecendo num quadro de Andy Warhol.

Ah, esse dia foi muito surreal. Eu demorei horas para conseguir sair daquela sala. Fui à livraria, comprei o catálogo da exposição e fiquei sentada o resto da tarde naquela escada que tem no vão central do CCBB com o livro no colo e um café na mão, com o olhar perdido e uma sensação esquizofrênica de ter perdido algum capitulo da minha vida.

Eu sabia que nada nem ninguém poderia me explicar aquela sensação de dejavú que eu estava sentindo. Mas vamos combinar que não é todo dia que uma coisa dessas acontece na vida de uma pessoa. Qualquer um teria ficado esquisito. E como eu definitivamente não me sinto qualquer um, até hoje essa história me arrepia os cabelinhos.

De tempos em tempos eu tiro esse livro da estante e abro na página 91 e fico olhando para essa Tatiana. E penso que não seria tão mal assim um dia encontrar comigo mesma, quem sabe, tomando um café nas escadarias do CCBB. Nas minhas viagens quânticas, seria mais uma chance de reinventar minha existência.

Quem sabe.

A Coragem do Herói

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A vida tem seus mistérios.

E quando a gente menos espera, recebe um chamado da alma para transformar todas as coisas que pareciam sólidas e imutáveis como uma grande rocha.

Depois de muito relutar, hoje parto para uma grande aventura. Um profundo encontro comigo mesma. Passarei oito dias imersa num retiro espiritual chamado “A Jornada do Herói”. Longe de todas as tecnologias, mergulhada na natureza, longe de tudo aquilo que estou acostumada, mergulhada dentro de mim mesma. As malas estão prontas.

O convite surgiu no ano passado. De uma amiga muito querida, num almoço despretensioso de domingo. Na primeira vez que ouvi falar do curso, meus olhos brilharam como se fosse uma coisa impossível de vivenciar. Milhões de obstáculos pareciam se transpor àquele sonho de estar imersa em mim mesma. Mas a vida é mágica. E quando o chamado da alma é verdadeiro, ela dá um jeito de desatar todos os nós.

Eu sei que a coisa não vai ser fácil. Que todo mundo que já passou pelo processo diz que a coisa não é simples. Que o encontro com a nossa sombra às vezes pode ser assustador. Que o processo de sair da zona de conforto é desesperador para o ego. Mas eu me sinto pronta para partir. Pronta para enfrentar os meus demônios, sejam eles quais forem.

Na verdade o que sinto aqui no fundo do meu coração é uma profunda saudade de mim. De uma Tatiana que eu não encontro há muito tempo. Seja onde for que eu vá encontrá-la, eu tenho certeza que o encontro será de amor. E paz. E renascimento.

Até a volta, queridos leitores.

Carta ao Dinheiro

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Eu queria muito entender por que tem certos assuntos que são tão difíceis de serem compreendidos. Eu sei, por exemplo, que cada um de nós está num estágio na escala de evolução espiritual e que isso certamente nos dá mais ou menos condição de compreender qualquer coisa. Sei também que para compreender determinados assuntos, precisamos levar em consideração não só as ações que cometemos nessa vida como também as ações que cometemos em outras vidas e isso é um pouco de sacanagem, já que definitivamente não temos como mensurar as coisas que fizemos lá para trás. Mas enfim, na totalidade do que é possível nesse momento da minha caminhada, me debruço com um pouco mais de coragem para escrever sobre dinheiro para ver se alguma forma eu desfaço esse nó de marinheiro que é esse assunto dentro de mim.

Tenho 42 anos e dentro dos parâmetros de uma sociedade capitalista, acho que não posso ser considerada uma pessoa bem-sucedida financeiramente. Sou atriz por formação, professora por vocação e nunca, nunca chego ao fim do mês com todas as contas pagas. Tenho um monte de dívidas, o nome mais sujo que pau de galinheiro, nenhuma poupança, nenhuma herança em vista e nenhuma perspectiva de mudança morando num país onde a crise financeira é absurda. Mas de todas essas afirmações talvez a mais grave e complexa seja a que vou dizer agora: tudo que se refere a dinheiro para mim tem uma névoa sombria e esquisita que não me faz conseguir ter clareza sobre o real valor que ele possui.

Vivo numa gangorra de sentimentos antagônicos em relação ao dinheiro. E por mais que trabalhe muito isso na terapia, não há São Francisco de Assis que me faça compreender o que há por baixo de tanta dificuldade em lidar com algo. No quebra-cabeça da vida, vejo todas as peças que se referem a ele espalhadas e nunca consigo encaixá-las, porque no fundo, no mais profundo da minha alma, não consigo encontrar muito sentido no desequilíbrio que ele causa no mundo.

Voltando no tempo, cresci numa atmosfera lúdica maravilhosa. Não fui uma criança rica, mas tive tudo do bom e do melhor. Morei em casas confortáveis e felizes, estudei em boas escolas e só não ganhava presente no Dia das Crianças porque meus pais não concordavam com o golpe comercial da coisa. Aos sete anos, meus pais faliram. Falir significa não ter mais como cumprir com as obrigações financeiras. Eles se separaram e eu fui morar com minha mãe e minha irmã num apartamentinho pequenininho que era da minha avó, no Jardim Botânico. Sinceramente, nada cruel. Saí de uma mega escola alternativa em Santa Tereza para estudar numa escola pública lá perto de casa. Foram os melhores anos escolares da minha vida. Me lembro como se fosse hoje a angústia que me causava estudar no CEAT e não suportar a arrogância das minhas amigas ricas. Todas elas já tinham ido à Disney milhões de vezes, tinham motorista e moravam em mansões. E me humilhavam por minha mísera e pobre coleção de papéis de carta. Quando cheguei ao Camilo Castelo Branco, a tal escola pública, eu era a menina rica que tinha uma linda coleção de papéis de carta. Nunca vou esquecer a sensação de sentido que tive no dia que decidi dividir minha coleção com as minhas novas amigas. Foi um dos momentos mais incríveis que já vivi. O brilho nos olhos de cada uma, a gratidão pelo meu gesto. Foi assim que comecei a minha formação interna de valor.

Morei com a minha mãe até os 28 anos. Até então nunca tinha me preocupado em pagar nenhuma conta. Ela fazia das tripas coração para sustentar o meu sonho de ser atriz. Investia em mim como quem investe no próprio sonho. E eu, trabalhava muito, mas amava tanto o que fazia que não me importava saber o quanto eu ia ganhar em cada trabalho. Essa era a minha última preocupação. Geralmente eu ganhava uma merreca por peça. Só conseguia pagar minhas passagens de ônibus e tomar um suquinho na esquina. Mas eu estava tão feliz que me conformava com a dura realidade de uma jovem atriz brasileira. Minha única opção mais concreta de receber um bom salário era me render a trabalhar na Rede Globo de Televisão e essa era a última coisa que eu queria fazer.

Os anos foram passando. Um belo dia resolvi casar com um belo rapaz que era o meu vizinho. Marcelo era trabalhador e tinha uma carreira promissora dentro da área que trabalhava. Tinha uma facilidade incrível de fazer dinheiro e era muito competente. Casei e três meses depois engravidei. Larguei o teatro e passei a me dedicar inteiramente à maternidade. No fundo, tinha pulado dos braços de sustentação da minha mãe para os braços de sustentação do marido. E assim, seguia alheia à compreensão e ao contato real com o mundo do dinheiro.

Meu casamento durou sete anos, depois de cinco de namoro. Em 2009, com exatamente 36 anos, pela primeira vez na vida, me vi precisando enfrentar o mundo real das contas e a necessidade de trabalhar para me sustentar. Foi um desastre. Passei anos me descabelando. Porque apesar de ter uma pensão generosa do meu ex-marido, eu não sabia lidar com o dinheiro.

E até não sei direito. Hoje tenho minha planilha de gastos no computador, uma pasta toda organizada com as contas da casa, faço mil cambalhotas para puxar daqui, puxar de lá. Mas nem com todas as acrobacias, não consigo me livrar das dívidas. Deve ser porque ainda estou engatinhando no meu aprendizado de vida real. Não sei. Alguns me acusam de ser perdulária. Olha que palavra horrível que é essa. No início eu me ofendia muito. E por isso fui estudar a fundo o significado do palavrão. Ser perdulária significa ser esbanjadora. Gastadora. Mas também significa ter desapego ao dinheiro. Ser pródiga. E ser pródiga possui um outro belo e muito precioso significado para mim: ser aquele que distribui algo com generosidade e liberdade. Uau.

Por isso é o que eu digo: as coisas precisam ser contextualizadas para serem compreendidas. Depois de toda essa história aí, até dá para entender porque eu ainda não sou uma pessoa de pleno sucesso financeiro. A terapia me trouxe a consciência do fato. Tá. Mas e aí?

E aí que Deus é testemunha que eu tenho tentado transformar essa relação. Já fiz curso de prosperidade, ho’oponopono pedindo perdão pelas falhas passadas com o mau uso do dinheiro, reprogramação neurolinguística, mas sinceramente que nada parece adiantar muito. E o pior: todos, absolutamente todos os mapas astrais que já fiz na minha vida, dizem que eu tenho uma conjuntura mágica para fazer dinheiro através das minhas mãos. Como assim? Então tá faltando alguma peça nesse quebra-cabeça.

A grande verdade é que esse conceito de prosperidade e abundância é muito relativo. Porque no fundo no fundo eu me sinto uma pessoa muito privilegiada. Imagina: eu tenho uma saúde abundante, duas filhas perfeitas e também 100% saudáveis. Uma família que me apoia incondicionalmente, um emprego divertido e que me dá liberdade de sonhar. Moro num apartamento pequeno, mas delicioso num condomínio aconchegante num dos bairros mais verdes de Niterói. Trabalho a cinco minutos da minha casa. Tenho um carro vermelho, dois gatos de revista, uma mente criativa e já viajei cinco vezes para o exterior sem nunca ter planejado nenhuma dessas viagens. Será que isso não é ser próspera?

Sei lá. Gosto muito daquela frase do Bukowski que diz: “quanto menos preciso melhor me sinto.” Eu queria ter um espírito 100% franciscano e não precisar mesmo de nada para viver nem ser feliz. Mas essa coisa de ser taurina é que me lascou a vida. A pessoa não tem um centavo na conta, mas ama tomar um bom vinho com gorgonzola, adora almoçar fora no domingo, ama ver peças de teatro, frequentar cinemas, livrarias, papelarias, museus, comprar umas batas indianas, uns perfumes exóticos, cremes da Victoria’s Secret. Gosta mais do que tudo de conhecer lugares novos e por isso sonha com um cartão de crédito sem limites para um dia colocar uma mochila nas costas e ir conhecer o mundo antes de voltar para as estrelas. Taí. Eu queria ter dinheiro só para realizar esse sonho. Conhecer o mundo. Se eu conseguir isso um dia, essa minha encarnação terá sido perfeita.

Posso escrever muitas e muitas páginas sobre esse assunto que a coisa parece que não se esgota. E o pior: aquela peça chave que faltava para entender o que está faltando na minha vida para que o dinheiro entre de forma abundante, eu ainda não descobri qual é. Vou seguir caminhando. Talvez não seja nessa vida que eu vá entender o dinheiro. Talvez não seja nessa vida que eu vá andar de balão na Capadócia. Tudo bem. Numa outra encarnação eu chego lá.

O Poder Avassalador de um Abracinho

Abraço mágico de Gisele Magalhães - minha irmã.

Abraço mágico de Gisele Magalhães – minha irmã.

Minhas filhas são criaturas estranhas. De vez em quando, elas parecem seres de outro mundo. Claro que elas são muito chatinhas também. Todos nós somos. Mas tenho assistido atitudes nelas surpreendentes nesses últimos anos. Esse tal desse amor incondicional que a gente ama os nossos filhos deve fazer alguma mágica. Pelo menos nas minhas, está fazendo.

Outro dia Clara me abraçou depois de um berro que eu dei com a Catarina. Foi uma das coisas mais bonitas que eu já vivi com ela. Eu gritei, ela veio na minha direção, olhou fundo nos meus olhos e me abraçou. E no abraço, ela ficou respirando fundo, como se quisesse que eu a acompanhasse na respiração. Foi inacreditável. Minha impaciência foi se dissipando, a raiva foi indo embora. Quando me dei conta, estava imersa num manto de amor que ela me cobriu.

Na mesma hora me lembrei do vídeo sobre o abraço que já tinha mostrado para elas no Youtube.

Puxa vida. Quanta coisa a gente aprende e esquece que aprendeu.

Mas essa coisa do abraço tem um poder muito esquisito mesmo. Depois daquele dia com a Clara resolvi experimentar a vivência com os meus alunos. E foi incrível também. Quando eles estão nervosos, ou impacientes, ou desestruturados com alguma coisa que tenha acontecido, eu pergunto com todo o carinho: “você quer um abracinho?”. A resposta é sempre a mesma: sim. E ali, naquele encontro de peitos, chacras e corações, as energias entram numa mesma vibração e tudo o que estava caótico, entra em harmonia. Eles se acalmam e voltam para um centro de alegria lindo de ver. É impressionante.

Bom, se o abraço não fosse mesmo uma forma mágica de tocar as pessoas, a Amma não teria tantos discípulos como tem hoje. Para quem não conhece, Amma é uma guru indiana que transforma multidões apenas com o poder de seu abraço. Minha mãe recebeu um abraço dela quando ela veio ao Brasil e disse que ele tem uma potência astronômica e que não dá para explicar o que é.

Minha mãe me ensinou a abraçar desde muito pequenininha. Ela dizia que duas coisas demonstravam muito sobre o caráter de uma pessoa: o aperto de mão e o abraço. O aperto de mão precisa ser firme. A firmeza nesse ato vai falar da sua firmeza na vida. Não tem nada que me dê mais nervoso do que apertar a mão de alguém e esse encaixe ser molinho porque a mão do outro já veio molenga para sua. Ai! Caramba. É horrível. A mesma coisa é o abraço. Tem muita gente que tem medo de abraçar. Medo de encostar o corpo. Medo de encostar os sexos eu acho. Mas quando a gente encontra uma pessoa que sabe abraçar, nossa. É um oásis. Um Sol na Terra.

Tem uns abraços que recarregam a nossa bateria em segundos. Como o abraço das minhas pequenas. Já ensinei para elas o lance do aperto de mão. E do abraço. Ainda bem. O que seria de mim se não tivesse as duas para me lembrar das coisas que insisto em esquecer?

 

Gratidão

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“Quanto menos eu preciso, melhor me sinto”
Charles Bukowski

Desde a entrada da primavera, um sentimento de gratidão tem me invadido o corpo, a mente e a alma.

Como algo que emerge de um lugar muito profundo e se instala na superfície possibilitando a instalação de uma nova lente no olhar e um novo filtro no coração.

É uma sensação sublime de plenitude. Um sentimento simples. Quase tão orgânico como respirar. Quase tão óbvio como existir.

É um estado de contentamento. Uma possibilidade de compreensão do quanto me sinto abençoada e sortuda com a vida que ganhei, conquistei e integrei.

Porque é isso. Tem uma parte que a gente ganha quando nasce. Alguns acreditam em sorte. Eu acredito em merecimento espiritual. Você ganha existência e é um girininho nadando num oceano de infinitas possibilidades. Mas é claro que tem girininhos que nascem abençoados, e outros nem tanto.

Depois tem a parte da conquista. Aquilo que você batalhou muito para conseguir depois que se transformou num ser adulto e consciente de toda a suas possibilidades. A conquista não fala de sorte, mas de todo o esforço e empenho que você tratou a vida.

Mas de todas, a parte que eu mais gosto é quando a gente chega num determinado pedaço da caminhada e entende que de nada adianta nascer bem ou conquistar um bocado de coisas se ao longo da vida você não aprende a integrar tudo que plantou, semeou e colheu.

Integrar conhecimentos e experiências para mim hoje é o grande pulo do gato nessa vida. Quando você consegue pegar toda a massaroca do que aprendeu e passou e transforma a coisa em sabedoria de vida. Porque simplesmente… Amadureceu.

Já dizia Cecília Meireles: “Aprendi com as primaveras a me deixar cortar para poder voltar inteira”.

Então é primavera. E eu estou aqui transbordando essa gratidão por tantas coisas.

Por ter tido a benção de trazer ao mundo não só uma como duas criaturas inacreditavelmente especiais.

Por ter uma família para lá de gostosa e amorosa que me apoia tanto em tantos momentos da vida.

Por ter uma saúde maravilhosa apesar  a minha hipocondria insistir em dores e doenças que nunca existem graças a Deus.

Por ter uma lista tão grande de amigos de verdade, amigos que me apoiam, me abraçam, me perdoam. Dividem bravamente suas existências comigo, contando comigo, me dando sempre de presente parte de seus corações.

Por ter um trabalho tão significativo, tão importante para o futuro e, sobretudo, por poder ter minhas filhas inseridas nele.

Por ter um namorado tão cuidadoso e amoroso, que luta para estar comigo como um guerreiro e me enxerga de um jeito doce e poético como nunca ninguém enxergou.

Por ter encontrado nas palavras uma arma para lutar, por ter sofrido tanto e ter tanto o que falar, por ter nascido quem eu sou, com essa alma exagerada e esse jeito desesperado de viver os dias como se eles fossem os últimos, todos os dias.

Eu agradeço meu Deus, eu agradeço.

E sei, aqui dentro de mim, que a qualquer momento eu posso morrer. E não tenho medo disso. Tudo que vivi e senti, já valeu essa encarnação.

 

 

Picasso e tudo aquilo que eu entendi

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“A arte é o vazio que a gente entendeu”
Clarice Lispector

Semana passada fui ver o Picasso. Sozinha. Ah! Tem coisas que eu a-do-ro fazer sozinha. Exposição é uma delas. Se cada um tem um tempo diferente para entender a vida, imagina uma obra de arte. A viagem precisa ser individual para que cada viajante possa vivenciar a experiência da forma que desejar. A arte é um mergulho profundo no vazio de cada um. Estar só nesse momento – pelo menos para mim – me ajuda muito no processo de entrega para a coisa.

Mas então. Picasso.

Me comove muito essa coisa do povo enfrentar uma, duas horas de fila só para ver uma exposição de arte. Gente! É demais. Esse tipo de coisa me devolve a esperança no mundo. Na humanidade. E me faz lembrar aquele livro da Celina Fioravanti “Os Curadores do Espírito” que fala dos artistas como principais agentes de cura e equilíbrio do mundo.

Bom, eu enfrentei uma hora de fila feliz. Li um pouco, observei as pessoas, ouvi conversa alheia, comi pipoca, liguei para uma amiga, lixei minhas unhas, arrumei minha carteira, tomei água com gás, masquei meia dúzia de chicletes. Na verdade nem terminei de fazer minhas tarefinhas de bolsa quando recebi a senha para entrar.

O Centro Cultural Banco do Brasil é um espetáculo por si só. Aquele lugar é uma viagem no tempo. Todas as vezes que entro naquele prédio e sinto aquele cheiro característico dele – uma mistura de café, cultura, refinamento e elegância – agradeço por existirem lugares no mundo como ele. Na verdade o espaço é uma garantia de prazer. Não importa que exposição esteja em cartaz. Nem que peças de teatro estejam passando. Ir ao CCBB é um programa barato e de satisfação garantida. Não sei o que é. Tem uma coisa na atmosfera daquele lugar que me fascina. A começar por aquela cúpula que fica no centro do prédio. Aquilo não é uma cúpula. É um portal para outra dimensão.

Mas voltando ao Picasso.

A fama do cara é uma coisa indiscutível. Picasso é considerado hoje um dos mais importantes artistas plásticos do século XX. Num leilão em maio desse ano, alguém pagou quase 180 milhões de dólares por um quadro dele. Pensa. É uma quantia astronômica por uma obra de arte. Mas eu entrei na sala e dei de cara com uma pintura dele. E naquele momento, não havia nada entre nós. Nem a fama, nem a história, nem o valor da obra, nem o tempo. Só eu e ela, a tela. E dentro dela, a alma dele, impressa na textura daquela tinta a óleo.

Uau.

Primeiro quase não consegui respirar. Como pode? Eu estava ali e podia sentir a presença dele. Não a presença do mito, mas do Pablo, o cara que tinha nascido na Espanha, que desenhava e pintava desde pequeno, que quase morreu de escarlatina, que sonhava em morar e trabalhar em Paris, que tinha amado e maltratado muitas mulheres e tinha revolucionado a arte com suas ideias. Minha fértil imaginação me capacita a coisas incríveis. Em alguns segundos, voltei no tempo. Ao dia, ao exato momento que ele pincelava naquela tela aquelas impressões que o mundo lhe causava. E pensei na brevidade do tempo diante de certos fenômenos da nossa existência. Essa é uma das razões da arte me fascinar tanto… Ela é imune ao tempo.

Mas voltando ao quadro.

Devo ter ficado alguns minutos em frente à primeira tela da exposição. Depois de passado o deslumbramento da viagem no tempo, voltei à sala do CCBB e fiquei tentando imaginar porque que aquela pintura era tão famosa. Lia e relia os resumos do curador da exposição e ria sozinha daquelas definições esdrúxulas que os entendidos em arte insistem em escrever, tentando definir o indefinível. Taí uma coisa que eu não entendo nas exposições. Para quê tanta explicação intelectual para algo que deve apenas ser sentido com o coração? Nada do que está escrito ali pode me ajudar a buscar uma emoção se ela não vem. Geralmente nas exposições que vou, elejo o quadro ou o objeto que mais me emocionou na sala e vou seguindo a jornada, os guardando na memória e no coração. Antes de ir embora, volto para me despedir de cada um, agradecendo silenciosamente sua existência, como se eles de alguma forma tivessem despertado algo mágico dentro de mim.

Na exposição do Picasso um único quadro me emocionou. E é o tipo da coisa que não dá para explicar por que. O pintor mesmo tem uma frase que gosto muito. Ele diz: “a qualidade de um pintor depende da quantidade de passado que traz consigo”. Talvez o mesmo possa ser dito do espectador. Gostar ou não de uma obra de arte também pode depender de tudo que o espectador tenha vivido. Como nos filmes. Dificilmente conseguimos explicar a alguém que odiou determinado filme, o porquê de termos gostado tanto dele. Nosso passado. O que vivemos. O que vimos do mundo. A forma que vimos. O quadro que amei da exposição era pequeno e sem destaque. Mas calou em mim alguma coisa que não sei explicar. E nem preciso. Sei o que senti e pronto.

A verdade é que essa exposição do Picasso – e todo estranhamento que ela me causou – me trouxe uma reflexão profunda em relação à arte. Um artista traz ao mundo sua criação. O que as pessoas vão fazer com o que sentiram em relação a ela só compete a elas. Tá. É engraçado estar parado em frente a um quadro e ouvir atrás de você uma pessoa tentando explicar o que está vendo. É difícil decodificar o que se está sentindo, principalmente quando o que se está sentindo é algo profundamente abstrato. Pérolas saem dessas situações. Mas surreal mesmo é ouvir um intelectual metido a entendedor de Picasso afirmar categoricamente o que aquele quadro quer dizer. Como assim? Como ele acha que pode afirmar o que estava se passando dentro do Pablo naquela hora que ele pintou um minotauro cego sendo guiado por uma menina que carregava uma pomba?

O surrealismo de Salvador Dali eu até alcanço. Mas o cubismo de Picasso! Poxa vida. Eu até tentei estudar o movimento, mas foi quase impossível para mim. O que entendi do processo – e por isso não importa se eu gostei ou não da exposição – é que ele criou um movimento por um profundo desejo de contravenção. E para isso eu bato muitas palmas para ele. O cara ficou exaurido de um sistema, foi lá e reinventou as perspectivas no que deu na telha dele. Pô. Isso é genial. E precisa ser respeitado. E admirado. Se as pinturas são estranhas, tortas e o cara parecia estrábico, definitivamente não importa. O que importa é celebrar a coragem que ele teve de ir lá e fazer.

Tenho recebido muitas críticas aos meus textos. Hora porque estou colocando vírgulas onde não devo, hora porque estou conjugando verbos de maneira errada, hora porque não me aprofundo, hora porque me aprofundo demais. Depois de ver Picasso pensei no quanto as pessoas que vão lá e fazem, mexem com as outras que apenas assistem. É preciso muita coragem para se expor e colocar para fora o que nos inquieta a alma. É preciso coragem para enfrentar o mundo de dentro, mas é preciso ainda mais coragem para enfrentar o mundo de fora.

Meu amor aos Musicais

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Para Henrique Band

Há certos sentimentos nessa vida que são complicadíssimos de se explicar. Ou as pessoas o sentem ou jamais entenderão aqueles que sentem.

É o caso dos filmes musicais. Outro dia um amigo meu – músico – me indagou atônito, como é que eu podia ser capaz de “amar de paixão” os filmes musicais. Eu respondi: é muito simples. É que a vida lá é exatamente como eu gostaria que fosse cá. Ele não entendeu nada. E seguiu reclamando da coisa ser muito nonsense. “É esquisito as pessoas estarem falando… e de repente! Saírem cantando”. Ué. Mas a própria vida não é esquisita? Esquisito é a gente se acostumar com as esquisitices da vida.

Dentro de mim é assim: os musicais me fazem estar num lugar onde tudo parece ser possível, onde tudo é celebrado, onde a vida consegue ser mais do que um videoclipe. É uma longa história celebrada com canções, lágrimas e gargalhadas. Eles mexem comigo porque muitos sentimentos me vêm à tona. E deixam meus cabelinhos em pé. Porque os sentimentos não são escondidos, são venerados. O sentir é celebrado com exagero. Se há tristeza, ela é cantada com drama. Se há alegria, ela é supervalorizada. Como se o mundo de repente pudesse se transformar num grande caldeirão de emoções. E nele eu pudesse me reconhecer sem medo ou vergonha.

Tá, eu sou um exagero. Eu sei. Mas ser um exagero na vida cotidiana tem seu preço. Experimenta ser assim na realidade massacrante do mundo? Destoa, gente. Fica chato. Por isso eu vivo disfarçando meu lado Piaf de ser. No musical eu me realizo. Porque me identifico. E me encontro. E me liberto, porque finalmente me aceito.  Ai que coisa mais prazerosa que é a gente se aceitar!

Em Mamma Mia – filme que a Meryl Streep canta as músicas do ABBA – há uma cena antológica em que as amigas a convencem a voltar a ser uma menina divertida e despudorada como na juventude e cantam juntas “Dancing Queen”. Elas saem do quarto e vão pela linda Grécia, contaminando todo o vilarejo com sua música e entusiasmo e terminam a cena num grande pulo na água do mar! Como que alguém em sã consciência pode não se contagiar com uma cena dessas?

Como não se contagiar com a “Noviça Rebelde” quando ela dá dicas de como enfrentar o medo da tempestade aos filhos do Capitão Von Trap? Ou com a música mais linda de amor que Nicole Kidman e Ewan McGregor cantam juntos em “Moulin Rouge”? Como não cair em prantos na cena em que Anne Hathaway canta seus sonhos perdidos em “Les Miserables”? Como não explodir de excitação na cena final de “Dirty Dancing” quando Patrick Swayze mostra para aquela burguesia nojenta que dançar com paixão pode ser a coisa mais linda e pura do universo?

Ah! Como eu queria conseguir explicar pra esse meu amigo esse sensação que eu tenho de que as músicas associadas a histórias de pessoas podem ir além da própria música! E que se a gente se permitir eles podem nos servir como verdadeiros divãs. Eu faço isso todas as vezes que a vida vem querendo me pesar. E como num despertar de consciência, lembro o quanto o mundo me espanta e o quanto preciso traduzir esse espanto para o mundo. Escrevo por vocação, porque se pudesse ter escolhido um talento, com certeza teria pedido a Deus um gogó de ouro para sair cantando por aí.

Terapia para quê gente! Vai estourar umas pipocas e assistir “Cantando na Chuva” para ver que tipo de milagre pode acontecer na vida de vocês!

A seguir, um mergulho em algumas cenas citadas no texto. Divirtam-se!

Mamma Mia
https://www.youtube.com/watch?v=juTRRspWUqM

Moulin Rouge
https://www.youtube.com/watch?v=fFtssl7u7lE

Les Miserables
https://www.youtube.com/watch?v=-M2mpgwFSQ0

Dirty Dancing
https://www.youtube.com/watch?v=l9BbUqHrWFI

Cantando na Chuva
https://www.youtube.com/watch?v=-yaxcdMDcrs

Trânsito: uma história de amor e fúria

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De todas as provações humanas talvez uma das mais perigosas e patéticas seja o trânsito.

Penso, penso e não consigo encontrar um lugar mais perfeito para radiografar a nossa alma do que esse covil de máquinas ambulantes. Bestas e santas criaturas se revelam e não podem esconder sua face porque a coisa está toda ali, na cara de todo mundo e não há disfarce que possa esconder quem você é.

Vejo por mim. Eu não sou nenhuma santa, mas estou trabalhando muito pela minha tentativa de evolução espiritual. E mesmo eu, que ouço mantra, medito, rezo e peço a Deus todos os dias por muita paciência já me peguei no trânsito com desejos compulsivos e assassinos.

Veja bem: se eu estou numa via rápida distraída, dirigindo lentamente e vem alguém e me dá uma piscadinha, eu acho chato, mas saio para pista do lado. Agora, se eu estou numa via rápida, dirigindo rapidamente e vem um carro, desde lá debaixo, piscando o farol freneticamente para eu sair da frente dele, o tempo fecha. Como é que essa pessoa se acha no direito de me mandar sair da frente dela se eu estou na velocidade adequada para a pista? Não, porque a mensagem subliminar desta infame piscadinha é: “sai da frente sua mosca, porque você está me atrapalhando”. E aí, o que acontece, é que toda a minha suposta elevação espiritual começa a ir por água abaixo. O meu sangue ferve e dele desperta o monstro negro que mora nas minhas entranhas. Ao invés de simplesmente sair, eu diminuo a velocidade e fico no retrovisor fazendo um gesto de “ué, fofinho, passa por cima.” Feio. Muito feio.

A pergunta é: por que uma coisa dessa tão simples me tira tanto do sério? Eu não sei responder. A verdade é que eu faço isso, mas morro de medo do apressadinho atrás ser um psicótico e se irritar com o meu sarcasmo e apontar uma arma para minha janela, gritando: “quer morrer, madame?” Às vezes os caras insistem. Se isso acontece, geralmente acabo engolindo a raiva e saio da pista por medo da loucura dos outros. O carro passa por mim e eu faço um esforço enorme para não mandar um dedo do meio para o desgraçado. Se estou num dia mais tranquilo, até consigo respirar fundo, contar até dez e desfiar meu rosário de frases feitas que me ajudam a me acalmar do tipo “apressado come cru hein” ou “vai tirar a mãe do puteiro vai!”. Mas essas frases ridículas nunca me isentam de sentir no fundo um peso enorme pela tristeza da mediocridade humana.

Claro que onde há sombra, há luz. E da mesma forma que me irrito profundamente com a falta de educação das criaturas humanas no trânsito, também me emociono e tenho vontade de chorar quando as pessoas mostram o lado mais bonito delas em gestos simples e generosos. É a mesma piscadinha do carro da frente que me faz sorrir, quando estou para entrar numa rua que não tem sinal e o carro pára o fluxo do trânsito para educadamente me ceder a vez, para que eu entre antes de todos. Poxa, isso é lindo demais.

Mas voltando ao lado negro da força, o trânsito já enlouqueceu muita gente. Às vezes uma fechada, uma vaga roubada ou apenas uma buzinadinha pode trazer a tona uma fúria cega que mora dentro da gente. Outro dia recebi um texto muito bom sobre isso (dizem que é do Arnaldo Jabor, mas texto de internet sempre é uma incógnita) Chama-se “A Lei do Caminhão de Lixo”. Ele fala que as pessoas são como caminhões de lixo, que acumulam um monte de raiva e frustrações dentro delas e que na primeira oportunidade, querem despejar toda a porcaria em cima de quem topar. Deus me livre um lixão desses.

Tudo é mesmo uma questão de como a gente se coloca na vida. Outro dia um velhinho me deu uma fechada daquelas de doer. Minhas filhas já me conhecem, não me aborreço com velhinhos dirigindo porque acho que eles têm licença poética de fazer umas besteirinhas no trânsito. Mas esse dia a fechada foi feia. Eu já ia reclamar quando passo pelo velhinho e ele está fazendo um gesto de desculpas… E em seguida me manda um beijo. Fala sério! Morri de amor com aquele velhinho!

Desses retratos de quem somos nós, nunca vou esquecer o enjoo de estômago que saí do cinema, no dia em que vi “Ensaio sobre a Cegueira”. O mundo perde a visão e com ela toda a dignidade humana. Saramago costumava dizer “Não é que eu seja pessimista. O mundo é que está péssimo”. Essas visões sobre nós são assustadoras. Mas nós somos assustadores mesmo. Somos complexos e de uma potencialidade absurda. Para o bem ou para o mal. Podemos ser arrogantes, prepotentes e egoístas. Assim como podemos ser generosos, solidários e profundamente amorosos.

Seja como for, o lema é sempre o mesmo: a vida da gente será o que alimentarmos dela. Se aquele velhinho beijoqueiro me emocionou tanto, é aquele sentimento que eu preciso regar. E não a fúria diabólica que eu senti por aquele Emerson Fittipaldi de araque, piscando alucinadamente para mim, no fundo desejando me transformar em pó. Afinal, de todas as superações humanas talvez uma das mais bonitas e emocionantes seja o perdão.

A vida, como ela pode ser

freehugs

Vinha andando distraída pela rua, paquerando de longe a barraquinha de milho verde, quando dou de cara com um bando de mímicos, em plena Praça General Osório às seis horas da tarde. Eles pulavam de um lado para o outro, abordando as pessoas com um simples cartaz que dizia:

ABRAÇOS GRÁTIS

O pessoal que vinha na minha frente começou a resmungar. Uma senhora correu para atravessar a rua mesmo com o sinal aberto. Um homem com raiva deu meio volta e pegou a direção contrária do que ia.

Eu abri logo um sorriso. Essa eu não podia perder. De longe, abri os braços para uma moça magrinha que tinha um sorriso gorducho. Ela de longe, fez o mesmo movimento que o meu. Quando nos encontramos, ali no meio da rua, nos abraçamos como se fossemos velhas conhecidas. Ficamos assim um tempão. Foi quando ela me disse baixinho no ouvido:

Ô minha filha, Deus te abençoe.

E eu pensei comigo: está acabando de abençoar!