Luz

Existem dois tipos de pessoas no mundo que por apenas uma ação já dizem quem são: as que usam lâmpada branca e as que usam lâmpada amarela.

Não sei como algo tão simples pode falar tão profundamente de alguém, mas isso é fato.

Caminhando esses dias pelas ruas do Ingá, me peguei observando as janelas dos apartamentos com a curiosidade de sempre que me assolam essas paisagens.

Mas ao observar as vidas vividas nas casas com luz branca, cheguei à conclusão que essas pessoas certamente têm um outro tipo de sangue correndo nas veias. Não é possível.

Se alguém entra numa loja e faz a escolha consciente de comprar uma lâmpada branca para colocar na sala de sua casa, isso significa que ela é feita de um outro material completamente diferente do meu. E claro, das pessoas que moram nas janelinhas aconchegantes do prédio do Ingá também.

Escolher o tipo de luz que vai nos iluminar quando o sol se põe, fala muito de nós.

Lá nos primórdios da humanidade, quando anoitecia, a única coisa que nos trazia alguma luz era a Lua. Depois, uma santa criatura descobriu o fogo e daí surgiram as fogueiras que devem ter mudado radicalmente a convivência humana.

Muito tempo depois vieram os lampiões, movidos à luz de velas de sebo e gordura. Que cá para nós, devia dar um toque cinematográfico à existência.

Um belo dia, numa tarde provavelmente inspiradíssima, Thomas inventou a lâmpada elétrica. Mais precisamente no dia 21 de outubro de 1879. Gente! Imagina só a revolução que deve ter sido esse dia na vida das pessoas!

Mas voltando ao meu espanto, de 1879 até hoje, um milhão de possibilidades de iluminação surgiram com a modernidade. E mesmo assim, alguém entra numa loja e resolve escolher uma luz branca para iluminar as noites em seu lar?

Será que as pessoas não percebem o tipo de luz onde estão? Será que incomoda, mas não tanto ao ponto de trocar? Será que elas sentem calor com a luz amarela e acham a luz branca mais fresquinha? Pesquisei sobre isso e não existe tá. É só uma questão psicológica “o frio e o quente” das lâmpadas. Pelo menos essas que a gente usa de LED e que são bem mais econômicas. Mas enfim. Esse não é um texto-denúncia. É só um texto-reflexão. Não quero ninguém chateado por amar luz branca. Só quero entender o que vocês sentem.

Porque tudo bem usar uma luz branca num hospital. É um lugar que precisa estar muito iluminado, te dar uma sensação de assepsia, foco, percepção. Mas em casa? Em casa a gente quer aconchego, abraço. Descanso para os olhos. Descanso para a alma. Não? Uma luzinha de abajur ligado no fim da noite faz a gente esquecer o mundo.

Tem coisas que eu vou morrer sem entender. Essa da luz é uma delas.

Um Sal de Fruta Mágico

Quando minha irmã morou em Teresópolis uns anos atrás, a coisa que eu mais lembro era de passar o fim de semana toda empanturrada.

Os cafés da manhã eram fartos, lindos e cheirosos. Comíamos com a mesma satisfação de quem come café da manhã de hotel. Uma alegria! Depois, ainda tirando a mesa do café já começava a função do almoço. Era um acontecimento a família toda reunida para cozinhar. Tinha música, cervejinha gelada, amendoim, gargalhada. Depois do almoço uma soneca na rede, uma biribinha, uma pausa daquelas incríveis que os finais de semana nos permitem sem culpa. O fim da tarde vinha chegando e com ele, claro, a hora do café. Um bolinho, um biscoitinho, uma torradinha talvez. Eu nem tinha digerido o almoço direito e já tava me enchendo de pão com geléia.

Durante o café da tarde se discutia qual seria o lanche: wafflles, pizza ou uma sopinha mais leve? Mesmo que fosse a sopinha, ela não vinha sem pães de queijo, pastinhas, broas e croissants. Era uma orgia gastronômica.

Lembrei disso essa semana porque nos últimos meses eu tenho me sentido assim empanturrada. Não de comida. Mas de vida.

São tantas vivências, notícias, preocupações que a impressão que me dá é que num dia de 24 horas eu nunca consigo digerir nem metade das coisas que coloquei para dentro. Tipo aquela sensação de quem acabou de sair de uma churrascaria.

Drummond já dizia que “a vida necessita de pausas”. Mas com a vida apressada que a gente tem levado quem tem tempo para dar um tempo? Ninguém.

E aí vem a sensação de empanzinamento. Caramba. Até a palavra é indigesta.
Não sei se você se sente assim, leitor. Mas de uns tempos para cá, eu venho desejando um sal de fruta mágico para dar conta da vida pós-pandemia. A gente coloca coisas demais para dentro e não tem nenhuma estrutura emocional para dar conta de absorver tanta coisa.

Minha terapeuta costumava dizer que as vivências precisam de tempo para ser integradas. Qualquer que seja a experiência, a gente não consegue assimilar nada de uma hora para outra. E mesmo as noites, que dividem os dias, não são tempo suficiente para nenhuma digestão. Claro né. Com a cabeça cheia, quem consegue ter uma noite restauradora de sono? Ninguém.

Outro dia uma amiga tentou salvar um passarinho-bebê de ser atropelado. Parou o trânsito, fez mil manobras numa rua super agitada, mobilizou toda sua energia para no final, ter que assistir uma pessoa louca de pressa, furar todos os bloqueios e esmigalhar o pobre bichinho bem na sua frente. Ela ficou destruída. Estragada para o resto do dia, que estava apenas começando. Uma vivência assim, como tantas outras que a gente tem vivido, precisa de um tempo para assentar na alma.

Eu ando suspirando muito. Acho que é essa tentativa de colocar a alma no lugar. Trazer ar para um corpo que anda sufocado. Um corpo que anda amedrontado que falte ar. Que falte sorte. Que falte leito. Que falte vacina. Que falte compaixão. Que falte vergonha na cara desses governantes. Que falte dinheiro. Que falte esperança. Que falte, sobretudo, força e coragem para a gente enfrentar tudo que precisa enfrentar, todos os dias, quando abre os olhos de manhã.

Alguém aí conhece uma solução para isso? Algum Sonrisal milagroso que ajude o corpo e a alma a dar conta de tanto sapo engolido? Sapo, tristeza e dureza?

Aguardo dicas! Inté!

Uma Carta para Dona AstraZeneca

Bom dia, Dona AstraZeneca.

Que imenso prazer te conhecer!

Seja muito bem-vinda ao meu organismo.

Entre aí pela musculatura do meu braço gordinho e fique à vontade de se espalhar por todas as veias e vielas do meu corpo! Eu te recebo com imensa gratidão. Nem acredito que finalmente estamos nos conhecendo.

Sei que por onde a senhora entrou vai ficar dolorido, mas não se preocupe que já tenho aqui arnica ou o velho e bom Vick Vaporub para massagear o local.

Pensar que veio de tão longe, não é? Oxford se não me engano. Acho chiquérrimo. Depois passou uma temporada com o pessoal da Fiocruz para dar uma garibada no visual que eu estou sabendo. Ô povo mais esforçado para nos salvar Dona AstraZeneca. Emocionante de ver… nem sei como agradecer. A eles e a todos os laboratórios do mundo que correram contra o tempo e a ciência para tentar encontrar uma solução para essa pandemia louca que nos enfiamos.

Mas é isso aí.

Espalhe esse coitado do Coronavírus por todos os cantos do meu corpo que o esquadrão antibomba já está a postos para treinar o pessoal.

Diga a ele que eu sinto muitíssimo por sua triste existência, mas não que não há como perdoá-lo depois de tudo que ele fez. Imagino que ele não tenha feito por mal. Dizem os espiritualistas que essa doença chegou para nós para uma expansão de consciência da humanidade. Mas fica difícil de explicar isso para as milhões de famílias do mundo que perderam seus amores. É uma situação muito delicada, a senhora entende.

Mas siga aí sua digna tarefa de espalhar esses bichinhos pelo meu corpo que eu sei que a guerra entre eles e os meus anticorpos não será fácil. Mas estou aqui a postos para toda e qualquer luta.

Estou preparada para as reações que eu sei que a senhora vai provocar. Eu não ligo. Acolho com alegria a dor de cabeça, a febre, os calafrios e a dor no corpo que virá. Para cada uma delas tenho um remedinho de prontidão. Só não há remédio para morte Dona AstraZeneca. Para a morte e para o medo que invadiu nossas vidas há exatos 15 meses. Por isso a senhora e as outras vacinas que estão sendo produzidas pelo mundo são tão importantes nesse momento. Porque são nossa única defesa.

Eu não sei se a senhora está acompanhando a situação do Brasil, mas a coisa por aqui está gravíssima. Nosso governante é um homem completamente louco e traçou para o Brasil uma necropolitica assustadora. Ele acha mesmo que pode decidir quem vive e quem morre por aqui. Ele, a senhora sabe quem, é um lunático e está sendo chamado por muitos de genocida. Faz ideia da gravidade disso? Parece coisa de filme da Marvel. Ele, a Capitã Cloroquina e outros personagens sinistros são no momento nossos arquinimigos. Se a pandemia já era assustadora para o planeta, aqui no Brasil o que temos vivido é um verdadeiro pesadelo. Ele foi contra a compra de vacinas até muito pouco tempo e só Deus sabe como estamos fazendo para sobreviver a esse Voldemort brasileiro. Temos tanto horror ao capiroto que nem gostamos de mencionar o nome dele.

Mas enfim, não quero mais atrapalhar seu trabalho. Cuide bem aí da minha patrulha e me ajude a ficar bem forte para caso do Coronga me aparecer de algum espirro alheio. Sabe que aqui o povo ainda resiste à máscara e ao distanciamento. É um povo que precisa ser estudado Dona AstraZeneca. A senhora nem imagina.

Mas é com imensa gratidão que me despeço. Desde já agradeço por todo o trabalho que está desenvolvendo.

Lembranças ao pessoal de Oxford.

Abraços calorosos,

Tatiana Monteiro – do distante e bucólico Condado de Pendotiba

Eu vejo amor

Foi uma cena simples.

Um pai e uma filha se despediam no portão de embarque do aeroporto.

Ela chorava muito, ele tentava se segurar. A mãe ao lado se emocionava ao ver os dois abraçados.

Ela já era uma moça adulta, mas naquele instante, parecia uma menina pequenininha se despedindo de um grande herói. Quando finalmente conseguiram se desgrudar, a esposa o abraçou e eu percebi que ela também chorava.  Ele entregou seu cartão de embarque com o coração despedaçado, a mãe abraçou a filha e a acolheu da melhor forma que pôde.

Ele atravessou o portão, voltou a olhar para trás e ao olhar para as duas, tentou brincar fazendo um gesto de tirar o coração do peito e jogar para elas. Elas de longe, seguraram o coração. Ele finalmente entrou e as duas se abraçaram.

Eu, que já tinha embarcado minhas duas pequenas para a casa do pai, desmontei ali mesmo com aquela cena linda de amor. Não sei se mais alguém acompanhou aquele momento, mas eu segui tomando meu café com o coração tomado de gratidão.

Eu vejo amor em quase todos os lugares.

Queria que a vida tivesse mais momentos assim. Esses fragmentos de tempo carregados de sentimentos genuínos e profundos. A humanidade, em sua melhor versão. Como é bonito testemunhar a vida assim. Bonito e verdadeiro.

Eu vejo amor em muitos lugares. Vejo amor nessa despedida. Vejo amor na moça que me serviu o café com um sorriso imenso e gratuito. Vejo amor no taxista que me levou de volta para casa contando do nascimento de sua filha. Vejo amor quando vejo alguém ajudando a senhorinha a atravessar na Praia de Icaraí. Vejo amor na dona do cachorro dando água para ele num potinho no calçadão. Vejo amor no rapaz que dá moedas para o artista de rua que soprou fogo nesse calor de 40º. Eu vejo amor na moça de patins, dançando de fone. Vejo amor no rapaz que acaba de piscar para ela.

Há amor em muitos lugares. A gente só precisa estar com os olhos da alma bem abertos para perceber.

Das coisas que a gente não vive sem

“As melhores coisas da vida não são coisas”
Autor desconhecido

Ontem assisti o documentário da Netflix sobre minimalismo e fiquei muito mexida. Não pelo filme em si que não é lá essas coisas, mas pelo conceito que ele traz de essência que é um assunto muito estrutural para mim.

Eu sempre fui uma pessoa desapegada. Sou capaz de tirar uma roupa do corpo se alguém me disser que se apaixonou por ela. Não sou de guardar cacarecos ou coisas quebradas. Não tenho gavetas com coisas que nem sei que estão lá. Em todas as mudanças que fiz na vida, sempre me desfiz de mais coisas do que adquiri. Até porque nunca tive dinheiro para comprar muitas coisas. Quase tudo que tenho na minha casa herdei ou ganhei de presente. Ainda assim, vivo constantemente tentando passar para frente o que não me serve mais. Aprendi que quando deixamos as coisas velhas irem, damos espaço para coisas novas chegarem. Mesmo que não sejam 100% novas.

Quando conheci Marie Kondo (aquela especialista em organização pessoal) e sua filosofia de como devemos nos colocar diante do que temos, entendi meu jeito de ver o mundo. Em seus livros, ela nos aconselha a nos desapegar das coisas que não servem mais ou aquelas que nos causam algum tipo de sofrimento. Na hora de se desfazer de alguma coisa, você precisa olhar para o objeto e perguntar: “Esse objeto me deixa feliz”?

Gosto muito desse conceito. Ela também fala sobre como nossa casa reflete nosso estado de espírito. Quantas vezes não me sinto bagunçada por dentro e a casa está notoriamente de pernas para o ar? Ou ao contrário: quando estou em paz e consigo calmamente arrumar qualquer caos na maior fluidez do universo? Muitas. Muitas vezes.

Mas ontem entendi que o minimalismo vai além. Ele fala de uma postura perante a vida. Um posicionamento político nosso diante do acúmulo e peso que as coisas nos trazem. Ser minimalista é estar sempre em busca do que é essencial para você. Em todos os sentidos, em todos os campos. Uma busca incessante pelo supra sumo da vida. Isso não é muito potente?

Ah! E tem mais uma coisa importante. Quanto mais coisas você tem, mais bagunça você faz. Não sei como é aí na sua casa leitor, mas aqui na minha vivo de cabelo em pé para tentar manter as coisas em ordem. Não quero viver numa Casa Cláudia, mas viver numa casa onde as coisas morem em seus devidos lugares é o mínimo para me sentir em equilíbrio. Eu já tive TOC e sei o quanto uma arrumação pode se tornar uma obsessão. Foram anos de terapia trabalhando nisso. Ainda hoje preciso me controlar muito quando vejo uma pilha de livros toda bagunçada. Me lembro como se fosse hoje as lições que eu tinha da terapeuta de olhar uma pilha assimétrica de livros e dizer para mim mesma: “Respira Tati, respira na desordem que a ordem é só o seu desejo de controle.”

Eu já aprendi muitas coisas nessa minha vida, e eu agradeço muito por isso. Mas o minimalismo é mais um passo para essa caminhada de desapego que eu quero exercer. Fazer o exercício de se perguntar quais coisas nesse mundo a gente não pode viver sem, pode ser uma ótima oportunidade de se olhar para existência de uma forma bem profunda.

No meu caso, quero que fiquem os livros e os objetos que trazem nele um pouco do que foi a minha história. Minha avó já dizia que quando a gente morre, não leva pro outro lado nem a roupa do corpo. Isso eu já entendi. Mas para as minhas filhas eu prefiro dizer que quando a gente morre, não leva a roupa do corpo mas leva uma coisa muito mais importante: todo o amor que a gente pôde amar. Pôde e teve coragem de amar. Isso sim é bagagem para se levar pro além.

Nos tempos que a gente saia para dançar

Dizem que os cronistas são pessoas profundamente nostálgicas.

Não sei quem inventou essa teoria, mas está coberto de razão.

É um complexo “Meia-noite em Paris” incontrolável.

Um desejo constante de voltar no tempo para viver certas coisas que nunca mais se ouviu falar.

Como sair para dançar, por exemplo.

Outro dia me peguei tentando explicar para as meninas o que significava “sair para dançar” na minha juventude.

(acho que chamar o passado de juventude já é uma dica do meu jeitão saudosista, mas tudo bem)

Elas simplesmente não conseguiram imaginar o que seria esse programa.

Agora estamos numa pandemia, mas quando o mundo era normal – outro dia mesmo – e a gente queria sair para se divertir, quais eram as opções? Um restaurante, um barzinho com música ao vivo? Com sorte uma festinha de amigos?

Nos meus tempos de gatinha, o programa era sair para dançar. 

A gente até parava antes em algum barzinho para tomar umas biritas, mas o maior objetivo da noite era ir para uma boate para dançar. Arrasar nos passinhos ou “abrir as asas para cair na gandaia”. Ah gente. Que maravilha que foram os anos 80 e 90. Parece que tudo aquilo aconteceu há um século atrás. Eram outros tempos, eu sei. Mas a impressão que me dá é que em três décadas o mundo mudou completamente.

Comecei a vida indo a matinês. Circus. Help. Depois cresci e comecei a frequentar os lugares mais descolados da noite carioca. Numa época que não existia celular, ir ao Wells Fargo e poder paquerar com a mesa ao lado através de um telefone instalado na mesa era uma coisa extraordinária. Quem lembra do banho de espuma que rolava no fim da noite na Zoom em São Conrado? Gente, a boate derramava um banho de espuma na pista de dança para encerrar a noite. Vocês entenderam? Depois teve a fase de dançar lambada no Hippopotamus. Ser expulso duas da manhã da boate do Piraquê. Correr atrás dos shows da Rio Sound Machine onde eles estivessem tocando: Ballroom, Jazzmania, Mostarda, Mistura Fina. Nossa Senhora. Showzinho da Rio Sound era o auge naquela época. Ainda teve a fase de ir dançar Black Music na Public. e Co na Pacheco Leão, numa noite surreal comandada pelo Gustavo Corsi, guitarrista da Rio Sound, que fazia tremer o Jardim Botânico. A gente voltava para casa amanhecendo sem sapato, com a alma lavada, de tanto dançar. 

Isso não existe mais. A galerinha que quer dançar hoje só tem duas opções: ou eles vão para o baile funk. Ou para alguma boate dançar… funk. 

Tá, eu sei que de vez em quando rolam umas festinhas com um ar de “anos 80”, tipo festa PLOC ou festa do Flashback, mas não é a mesma coisa. Minha irmã diz que tem uns bailinhos de charme na zona norte do Rio maravilhosos, mas eu nunca fui. Um pouco de preguicinha talvez. Ou eu tô ficando velha mesmo.

A última vez que me acabei de dançar foi na minha festa de 45 anos. Os amiguinhos das meninas ficaram chocados como eu não saia da pista. Meus amigos também se acabaram. No dia seguinte eu não conseguia levantar. Só depois de dois Dorflex e muita bolsa de água quente na lombar e um escalda pés nas bolhas do joanete.

É pessoal, acho que eu tô mesmo é com saudade de fazer qualquer aglomeração, para me sentir viva de novo. Jovem não, porque não troco minha vida de hoje nem por 15 minutos da juventude. Mas a alegria e a descontração de alma que a gente tinha naqueles tempos, não tinha igual.

E o que temos para hoje? Dançar bumbum tantan para a vacina. Ah gente? Não dá para ser com  I WILL SURVIVE?

Presença e morte

Destacado

Quase tudo se falou sobre a pandemia no ano passado. Muito foi dito. Pouco foi compreendido. A verdade é que passamos o ano desesperados por respostas. 

Os poetas tentaram nos trazer alguma leveza. Os especialistas, alguma explicação e clareza. Os médicos, o cuidado que fosse possível. Os otimistas, a esperança. Os bolsonaristas nos trouxeram sua intolerância. Os egoístas, sua inconsciência. Os espiritualistas, a capacidade do olhar mais ampliado sobre todas as coisas. E os artistas, a dura missão de tentar transmutar a dor do mundo.

As viúvas, filhos e netos, avós, tios e irmãos de quem partiu, não disseram nada. Só choraram por seus mortos, a dor aguda e seca de quem perdeu seus amores com a estranha sensação de terem partido mais cedo do que se esperava. 

Para mim, sobre 2020 e a pandemia só ficaram três cicatrizes profundas que eu não consigo parar de sentir: o desejo de agradecer, o novo olhar sobre o presente e a coragem de pensar sobre a morte.

A gratidão é uma prática espiritual muito poderosa. Porque tem a capacidade de virar as coisas do avesso. De encontrar na sombra, uma luz. No vazio, uma imensidão. Agradecer pelo que se tem é uma forma muito bonita de passar pela vida. Reverter o pouco em muito e reconhecer nas pequenas coisas, a grandeza de toda uma existência. Eu já tinha o hábito de agradecer pelas coisas que a vida me deu. Já escrevi várias vezes sobre isso. Mas no fim do ano, quando me vi embaralhada nas reclamações do mundo pelo ano terrível que vivíamos, resolvi fazer uma lista das coisas boas e ruins que tinham me acontecido. E foi uma surpresa. A lista de acontecimentos positivos e superações era infinitamente maior às perdas e danos que a minha alma tinha sofrido. Naquele momento alguma coisa destravou no meu peito e desatei um monte de nós que o ano tinha feito.  

Sobre a presença. O aprendizado foi tão fundo que tenho pensado em tatuar a palavra para ver se ela vira parte integrante do meu corpo. Presença. Já tem anos que eu penso sobre isso, mas em 2020 a ideia de me voltar ao presente todos os dias se transformou numa peça-chave para eu não pirar o cabeção. A gente que se projeta nesse futuro hipotético o tempo todo, que tá sempre lá na frente, na ânsia do que virá, sofreu muito ao ver as estatísticas irem matando um a um dos nossos amigos numa doença de filme de ficção científica. Víamos a coisa perplexos, sem nenhuma certeza de como seria se o vírus entrasse dentro de nós. Foi então que eu aprendi a duras penas que o controle é só mais uma ilusão dessas que a gente coleciona. E que exercitar estar presente no presente era a única arma que eu tinha para não enlouquecer de verdade. Foi um exercício. Que continua aqui dentro de mim como um desafio diário. Viver sem controlar o que vai acontecer. Mais nada a fazer a não ser confiar. E seguir. Vivendo um dia de cada vez.   

E por fim, a morte. 

A morte é um assunto tão delicado, tão difícil de ser abordado, tão nevrálgico, que é até complicado trocar ideia com os outros sobre isso. A não ser os espíritas, que falam de tudo com muita desenvoltura porque sabem exatamente o que vai acontecer quando a gente morrer, mesmo sem terem morrido antes. Eu não tô implicando, gosto de conversar com eles, mas ficando mais velha tenho tido um pouco de dificuldade de conversar com pessoas que tem tantas certezas sobre tudo. A morte é um assunto que congela um pouco a gente. Porque para quem está vivo, pensar nela é colocar um ponto final em alguma coisa que não parece ter chegado ao fim. A não ser em pessoas centenárias. Mas para quem ainda sente que tem tempo e faz planos, pensar na morte é algo petrificante. Inconcebível. Mas a pandemia me fez ficar de frente para essa ideia da morte tantas vezes, que eu acabei passando da fase do pavor para a fase da aceitação. Ao exercer presença, eu já tinha aprendido a abrir mão do controle. E aí foi só juntar uma coisa na outra para sentir um mínimo de libertação. O coronavírus é uma loteria biológica. O que tiver que acontecer vai acontecer. Antes dela, também era assim. Mas a ficha não tinha caído.  

Por isso termino meu texto com Belchior que anda na boca do povo, pedindo a ele uma licença poética para reescrever:

Ano passado eu não morri, talvez esse ano eu não morra. Vamos ver. Tô torcendo. Tanto para fazer! 

Viagem ao fundo de mim

“Se você quer pegar um peixinho,
pode ficar em águas rasas.
Mas se quer um peixe grande,
terá que pescar em águas profundas”
David Lynch

E aí, eu resolvi escrever um livro.

Porque não dava mais para ficar calada, não dava mais para ficar parada.

Não dava mais para sentir e não registrar. Mas também não dava para registrar só as coisas que eu sentia na superfície. Era preciso ir mais fundo, era preciso ter coragem, era preciso tomar uma decisão.

Foi preciso dar um salto na escuridão.

E foi assim que a ideia do livro nasceu. Do desespero. Do choro vazio das coisas que se perdem sem sentido. Da falta absoluta de outra escolha que não fosse escrever. A ideia do livro nasceu da aflição da existência. Essas coisas que vem de um lugar muito estranho nos artistas. Das vísceras. De um profundo tão difícil de explicar quanto a própria existência.

E o salto na escuridão aconteceu. Não como quem se mata. Mas como quem renasce.

E desde então, escrevo sem parar. Há meses me sinto voando. Tentando não reler nada, não criticar nada. Tentando segurar a língua ferina do ego que pode silenciosamente me plantar a dúvida. Às vezes choro enquanto escrevo. Às vezes rio. Às vezes sinto uma clareza absoluta. Muitas vezes me perco. Mas lembro de Clarice quando ela diz: “perder-se também é caminho”.

Escrevo à mão. Jamais no computador.

E por vezes, me vejo como uma médium espírita incorporada, psicografando algo do além. Porque escrevo depressa, com os olhos semicerrados. Uma mão na caneta e outra segurando a cabeça, que pesa com tantas ideias e sentimentos. Numa urgência estranha, dessas que faz a gente achar que não tem mais tempo, porque talvez vá partir. Não para a morte. Mas para o parto. De algo que precisa desesperadamente nascer.

Esses últimos meses tem sido maravilhosos e sofridos. Na mesma proporção. Porque o meu escrever é simples, mas a tradução não é. Ela requer entrega. Verdade. Coragem. Ela requer uma escuta muito, muito apurada de um mundo invisível. O mundo paralelo das memórias. Tenho visitado lembranças de tempos remotos. Coisas da infância, da juventude, da luz e da sombra que já habitei. Da alegria e da dor. Do fácil e do terrivelmente difícil de ser visto. Mas é isso. Não consigo fazer diferente. Minha escrita é o que é e isso está posto.

Talvez eu nunca tenha me sentido tão feliz. E tão confusa. E eufórica. Mas eu agradeço.

Estou livre.

Sou um pássaro voando alto no céu de muitas nuvens. Me sinto o próprio vento, ventando ventanias. A chuva que chove abundante para encharcar a terra de tudo aquilo que ela precisa.

Estou livre. Porque pela primeira vez escrevo livremente.

Não sei se chegarei a algum lugar. Não sei se esse livro poderá ser compreendido. Não sei nem se algum dia conseguirei organizar tantos manuscritos. Não posso pensar nisso agora.

Se eu rezo para que esse livro termine?

Sim.

Eu rezo para que esse livro termine. Assim como rezo para ver minhas filhas crescidas e criadas para que possam voar sem mim. Assim como rezo para envelhecer lúcida, para que possa contar aos meus netos tudo que vivi. Rezo por saúde e a mínima compreensão do mundo antes de partir.

É.

Eu resolvi escrever um livro.

E isso está mudando tudo, dentro e fora de mim.

Que assim seja. E assim é.

Um Certo Doutor Rodrigo

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Para Rodrigo Vianna

Há pessoas e pessoas nesse mundo de meu Deus.

Se eu pudesse classificar meu ginecologista e obstetra Dr. Rodrigo, diria que ele é uma das pessoas mais incríveis que eu conheço.

Antigamente, lá nos tempos onde tudo era tão diferente, existiam médicos que eram considerados verdadeiros curandeiros. Eram médicos de família e conheciam profundamente a história de seus pacientes. Não só a história de suas enfermidades e órgãos, mas a história de suas almas.

Dr. Rodrigo é um médico de antigamente.

Nos conhecemos na época que eu estava grávida da Catarina. Na época estava tentando um parto mais humanizado e tinha escolhido ter meu neném em casa, com uma parteira. Ele era o médico que estaria de plantão caso alguma coisa acontecesse. Como de fato aconteceu.

Antigamente, lá nos tempos onde tudo era tão diferente, talvez nossa situação pudesse ter ficado mais séria. Eu tinha o cordão tão curto, tão curto, que a bichinha fazia força para sair, mas a placenta – como um ioiô – fazia força para ela voltar. Apesar de ser um grande entusiasta do parto normal, Dr. Rodrigo acabou sendo meu herói naquele dia. Fez uma cesariana emergencial super bem sucedida e no final da história, acabou salvando a minha vida e a vida da minha pequena.

Nunca me esqueço do dia que ele foi me visitar em casa depois da cirurgia. Com seu sorriso de sempre, entrou no meu quarto, mediu minha pressão, examinou meu corte, fez algumas perguntas, sorriu, brincou com a Catarina, indagou como andava meu coração depois de todo aquele susto, receitou alguns remédios e foi embora levando com ele minha profunda gratidão por aquele instante. Eu nunca tinha sido visitada por um médico em casa. Nunca tinha sido cuidada dessa forma por um profissional da saúde. Fiquei me achando importante. Única. E isso faz a maior diferença. Não só para uma mãe frágil no pós-parto, mas para qualquer pessoa que precisa de cuidado.

Depois daquele dia, nunca mais pude me imaginar consultando outro médico.

Dr. Rodrigo deve ser o obstetra mais amado de Niterói. Seu consultório vive abarrotado de barrigas-luz e ele atende todo mundo como se não existisse mais ninguém na sala de espera, esperando. E não é só de grávidas não. Moças, mulheres e senhoras esperam o quanto for para serem atendidas porque sabem que poucos médicos tem um respeito tão profundo pelo sagrado feminino como ele. E isso para gente, faz uma diferença enorme na hora H.

Com sua voz serena e uma calma hipnotizante para falar, ele cuida da gente como quem cuida de um jardim. Tem umas mãos de nuvem que fazem do Papanicolau parecer um suspirinho de três segundos. E conversa sobre o tempo, explica questões médicas sérias com leveza, troca experiências, reclama do Fluminense, conta histórias e ri da vida como quem já entendeu quase tudo.

É por essas e outras que eu digo: há pessoas e pessoas nesse mundo. Mas algumas fazem a gente ainda ter um monte de esperança na humanidade. Dr. Rodrigo é uma delas.

ComCiência

 

Em tempos de luta e combate aos preconceitos explícitos e implícitos que moram na gente, a exposição de Patrícia Piccinini “Comciência”, em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil, é uma oportunidade imperdível para uma profunda e emocionante reflexão sobre o tema.

Eu já tinha ouvido falar da exposição. Já tinha lido sobre ela. Mas nada que pudesse me preparar de fato para tudo aquilo que me esperava. Fiz questão de levar minhas filhas. Já que o buraco era mais embaixo, achei uma oportunidade riquíssima da gente vivenciar junto, o que quer que fosse.

É impressionante como a gente caminha, caminha, mas está sempre precisando reeducar o nosso olhar. E como a arte é generosa para isso. Porque ela sempre nos leva por um caminho sensorial inexplicável que vai nos mudar para sempre. A gente querendo ou não.

Entramos na exposição e ao caminhar pelas primeiras salas, tivemos todas a mesma sensação de termos entrado num mundo paralelo ao nosso. Numa outra dimensão.

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O lugar era habitado por criaturas bizarras, esdrúxulas e esquisitíssimas. Senti nas meninas e na minha alma uma inquietação engraçada. Uma curiosidade picante daquelas que a gente só sente quando viaja pela primeira vez para um lugar bem exótico e diferente.

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A maioria das obras é de um realismo impressionante. Me lembrou um pouco as esculturas hiper-realistas de Ron Mueck, aquele australiano que faz umas pessoas gigantes em cenas do cotidiano. Talvez pela textura da pele, pelos cabelos de verdade ou pelas expressões que nos parecem tão humanas. Patrícia Piccinini também é australiana. Fui pesquisar um pouco sobre eles depois e descobri que fazem parte de uma patota de artistas plásticos que são considerados “artistas realistas” e que estão fazendo o maior sucesso no mundo.

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Mas seguindo o barco, depois de passado o primeiro estranhamento da coisa, percebi que aos poucos, estávamos nos apaixonando pelas criaturas. E eu sabia o porquê. Todas, absolutamente todas as criaturas estavam imersas numa amorosidade indescritível. Todas tinham uma fragilidade e um carinho no olhar, na expressão, no gesto, na forma de ser e se apresentar ao público. Pareciam tão vivas e querendo nos dizer algo tão importante. Eram tão diferentes e tão parecidas conosco.

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Estranho. Estranho e maravilhoso. Estranho e profundo. A experiência foi me tomando de uma forma intensa e definitiva. E percebi que o mesmo acontecia com as meninas. Primeiro o estranhamento. Depois a admiração. Depois a paixão. Por fim, um respeito profundo por aqueles seres.

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Para quem ainda não viu, aqui está uma grande e fabulosa oportunidade de rever conceitos, valores e impressões sobre o mundo. O mundo de fora e o mundo de dentro.

Sobre os artistas realistas, aqui está o link:

http://www.guiadasemana.com.br/artes-e-teatro/noticia/alem-de-patricia-paccinini-e-ron-mueck-conheca-5-artistas-realistas