Meus seios doem

amor

Para Gisele Magalhães


Meus seios doem.

E são hoje o símbolo maior da minha existência e exaustão.

No alvorecer do dia eles estão cheios de alimento e frescor. Descansados e intumescidos, trazem no leite a aurora de toda a leveza do desabrochar da vida. E do mais recôndito do meu ser, oferecem energia vital ao que mais amo – minhas filhas.

Mas quando a noite se deita sobre o sol, é nos meus seios que vejo meu cansaço refletido. Contraídos, doloridos e vazios, não há fome, necessidade ou desejo que os façam fabricar mais alimento. Talvez para algum afeto possam servir, através do calor da pele ou das ondas sonoras que atravessam o meu peito e reverberam as batidas do coração. Mas mesmo assim… doem.

É quando isso acontece que percebo que o fio invisível que venho tecendo minha vida desde que minhas meninas nasceram é feito de algodão. Numa porção doce e cor de rosa, meu algodoar diário começa quando abro os olhos e antes mesmo do espreguiçar iniciam-se minhas infinitas funções maternas… A primeira mamada de uma se amarra ao copo de Toddy da outra, que vem morno e doce – não do peito – mas da cozinha. A primeira troca de fraldas tem um monte de sorrisos pendurados nela. A fraldinha puxa o café que tomo correndo já que tem uma turminha louca para brincar. Mamãe, vamos desenhar? Mamãe vamos montar a casa de boneca? E é no enrolar desse gigante algodão-doce que tenho confeitado os meus dias, pendurada numa roda gigante, num parque de diversões imaginário.

…ai o sino ta tocando – meio-dia, hora do almoço!

Clara, escovar os dentes – vamos correr para a escola

Catarina, agora seu banho – xíí… já está na hora do mingau!

passeio – sol – parquinho – outra fralda suja de cocô?

hora da soneca – mocinha…chegou da rua direto lavar as mãos – hora do jantar

vamos tomar um banho para dormir quentinha? – olha o pijama

Clara, escovar os dentes por favor filha

– quer que a mamãe leia um livro?

e depois cantar todo o repertório de músicas de ninar

boa noite meus anjinhos…

ai que bom que dormiram… finalmente…

Mamãe, traz um copo d’água! Tô com sede!

Meus seios doem.

Mas essa dor que vem do colo é a mais prazerosa das dores humanas. Porque é dor que significa, que se justifica, é dor que enche e esvazia. Que transborda e logo se esvai. Dor que formiga o mais profundo da essência feminina e sua potencialidade selvagem de nutrir um outro ser.

Nunca imaginei que o ofício de ser mãe fosse ser essa experiência tão surreal. Que fosse ser esse sacrifício – esse sacro-ofício. Essa alegria tamanha. Esse milagre que é vivido na intimidade dos dias, na simplicidade lúdica da infância, no compartilhar da melhor e mais autêntica versão que a humanidade pode alcançar vir a ser.

Meus seios doem.

E como não doer, se tudo o que tinha dei em forma de ser?

Doem mesmo porque dói tudo que se refere a essa coisa enlouquecedora que é ser mãe: doem as contrações, dói o parto, doem os bicos que se racham nas primeiras sugadas, doem na pele as horas não dormidas, doem as costas, doem os pontos. Dói o medo de perdê-los, de não compreende-los, de não saber educá-los.

Mas sobretudo, dói a imensidão do amor com que amamos essas criaturas que saíram de dentro de nós.

Minha menina do arco-íris

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Minha pequena acordou triste hoje.

Tomou café e ficou quietinha num canto da casa, sem sorrir, sem fazer bagunça, com o olhar perdido em algum lugar. Perguntei uma, duas, outras tantas vezes o que tinha acontecido para ela ficar tão triste. Ela não sabia responder.

Desmarquei todos os meus compromissos. Disse para ela: Hoje você vai passar o dia comigo, mocinha. Ela levantou os olhinhos e sorriu. Um sorrisinho mixuruca, mas sorriu.

Fomos ao cinema, comprei pipoca gigante, balinha, chocolate. Depois saímos de lá e ela se queixou de dor na barriga. A levei de cavalinho pelo shopping até uma sorveteria. Como eu imaginava – ela estava com dor – mas não tanta dor a ponto de negar um sundae.

Mamãe, quero ir para casa.

Fomos. Chegando ela se deitou na cama e continuou quieta. Comecei a ficar realmente preocupada. Tirei do coração uma última cartada para tentar alegrá-la. Já sei filha, vamos desenhar…

Peguei um monte de papel, lápis de cor, pilot, meu super bloco de papel canson, e sim… meu adorável estojo de giz de cera pastel que ela adora. Sentamos juntas e começamos a desenhar. Em silêncio. Eu tinha certeza de que alguma coisa ia acontecer ali. Ou ela ia se abrir comigo ou os próprios desenhos iam me dizer alguma coisa sobre o que estava acontecendo.

Devagarinho, ela foi puxando papo. Gostava mais de falar mal dos meus desenhos do que de prestar atenção nos dela. Começou a rir das coisas horrendas que eu desenhava. Até que disse baixinho: Mami, desenha um arco-íris vai… é o que você faz de melhor…

Obedeci imediatamente. Peguei as cores no giz pastel, separei uma folha em branco e reparei que ela fez o mesmo. Então juntas começamos a desenhar, cada uma, o seu arco-íris. Óbvio que eu não agüentei e comecei a cantarolar somewhere over the rainbow… e ela comigo… até que me deu uma coisa e eu disse: Quer saber? Vamos fazer esse arco-íris nas nossas paredes filha! Você no seu quarto e eu no meu.

Foi então que a mágica aconteceu.

Coloquei para tocar bem alto a música para que as duas ouvissem, cada uma em seu espaço. Ela lá projetava fervorosamente suas cores. E eu, cá no meu canto, pintava o meu arco-íris assistindo emocionada o que acontecia com ela. Minha pequena foi se transformando em luz em cada cor que pintava na parede. Do roxo para o vermelho, uma risadinha. Do vermelho para o laranja um grito: como é que tá indo aí? Do laranja para o amarelo ela veio correndo e me deu um beijo. O seu tá lindo, mãe! Do amarelo para o verde… uma gargalhada… a gente tá ficando toda colorida filha… do verde para o azul, ela começou a assobiar no quarto. Cheguei devagarinho e a vi, parada em frente à sua majestosa obra de arte, de olhos brilhantes e a alminha lavada.

Foi quando ela me viu na porta, correu pra me abraçar e disse: Mãezinha, põe a música de novo… vamos dançar?

Crescendo

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Foto Clara Meira

Minhas pequenas estão crescendo e cada dia que passa está ficando mais difícil explicar a vida para elas.

As questões estão se aprofundando. As dúvidas se misturando a medos desconhecidos. E por mais atenta que eu esteja, por mais calor que haja em meu colo, não há nada mais apavorante do que descobrir a efemeridade da nossa existência.

Minha avó paterna partiu há alguns dias. Minha avó materna está morrendo. E o assunto da morte invadiu nossa casa com a força de um furacão. Foi preciso uma rodinha no chão de mãos dadas, um minuto de silêncio e um pequeno altar no centro da nossa mandala de perninhas cruzadas – com flores, incensos e velas – para eu ter coragem de começar a falar sobre o assunto.

A vida é estranha e maravilhosa. Daqui nada levamos a não ser o amor que amamos. As relações que conseguimos construir, o bem que fazemos aos outros. Mas se temos uma missão a cumprir, estaremos vivos até que essa missão se cumpra. A morte é só uma parte dessa jornada que a gente vive. Somos energia como a luz da lâmpada, só que no nosso caso, essa energia ilumina nosso corpo e dá força para gente falar, pensar, comer, viver. Para fazer com que a gente experimente estar aqui nesse planeta – nesse mundo cheio de gente – preparados para fazer um monte de coisas legais. E as coisas não tão legais a gente vai aprender a desviar. Só isso. A vida é uma experiência.

– Mas e quando um bebezinho morre mamãe – diz Catarina, como pode alguém ter uma missão tão pequena?

A vida é estranha e maravilhosa. E cheia de mistérios e perguntas que jamais serão respondidas. O que a gente precisa é ao longo da vida, ir entendendo aquilo que nos ajuda a viver. E ter uma bolsinha mágica cheia de formas para gente conseguir lidar com o mundo. Mamãe por exemplo, não gosta de meditar, rezar e cantar esses mantras engraçados? Essas coisas estão na minha bolsinha. Porque me ajudam a caminhar sem medo. A ter confiança. A entender que mesmo sem explicação, a vida é estranha e maravilhosa.

Minhas filhas estão crescendo. Mudanças estão acontecendo em seus corpinhos e em suas almas. Até o amor começa a surgir de uma forma diferente para elas. Clara me faz perguntas complexas sobre ele. Como explicar que o amor é sublime, mas também pode machucar? Como se prepara alguém para o caminho do amor compartilhado? Não há fórmula segura para a mais sagrada das experiências humanas. Mas isso eu não vou poder explicar para elas. Elas terão que descobrir sozinhas.

Catarina anda muito ansiosa. “Estou confusa, mamãe. Porque quero tanto da vida, quero tantas coisas ao mesmo tempo. Minha cabeça está cheia e eu não consigo relaxar.”

Ah se eu tivesse descoberto as lições de Eckhart Tolle aos seis anos de idade não teria em meu currículo nenhuma crise de ansiedade ou pânico. E mando na lata, amando a ideia de ter pelo menos uma solução para um probleminha seu:

Filha, eu vou te ensinar um segredo que vai te ajudar para o resto da vida. Não existe de verdade nada além do que a gente está vivendo agora, como por exemplo, essa conversa que a gente está tendo. Ou o sorvete que você tomou agora há pouco. O que aconteceu ontem e o que pode acontecer amanhã não importa muito. Só o que existe de verdade verdadeira é esse momento de agora, que a gente vive no presente.

“Por isso que você vive dizendo que o presente é um presente, mãe?”. Isso aí, pequena. Isso aí. A gente acha que é complexo e que eles não vão entender… Mas eles entendem. Entendem tudo. Em profundidade.

Minhas filhas estão crescendo. E os pesadelos estão cada vez mais constantes, assim como as perguntas e as incertezas. Como explicar a estas duas pequenas criaturas que infelizmente não há nada que extinga o nosso imenso vazio existencial? E que esse mistério faz parte do pacote e por isso a vida é estranha e maravilhosa? Elas já sabem que há dentro de cada um de nós um enorme buraco. E que a gente vai passar a vida tentando preenchê-lo de alguma forma. Buscando uma vida legal, amando e respeitando os outros, construindo um mundo que seja de verdade para gente morar. Não há dúvida que existem um milhão de formas de ir preenchendo esse buraco. E é esse o esquema mágico que eu preciso aprender com elas, quer dizer… que eu preciso ensinar para elas.

O ungüento das canções de ninar

caderno

Alguma coisa aconteceu ontem.

Tem noites que eu me sinto muito sozinha. O dia vai bem. A manhã passa depressa e a tarde sempre me traz de presente algumas horas livres para escrever. E o dia tem o sol que acaba iluminando as minhas sombras, mesmo as mais sombrias. Mas quando cai a noite eu começo a me sentir muito só. Em outros tempos era a minha hora predileta, justamente o momento em que o sol saía de cena e a lua chegava me trazendo inspiração, quietude, reflexão.

Mas ontem aconteceu alguma coisa diferente.

A lua já tinha me trazido as bonecas da escola, exaustas e famintas e com elas a infinita lista de afazeres que se resumem as nossas noites. Eu sei que sou uma mamãezinha para lá de exagerada, mas fazer o que? Chegaram? Jantar, suco, sobremesa. Banho na primeira. Secar os dedinhos do pé, colocar talco, limpar as orelhas com cotonetes falantes, hipoglós, fralda, desembaraçar o cabelo. Banho na segunda – esse com um tanto de briga claro, para entrar e para sair – coordenar a esponja com sabão, o xampu, o condicionador. Depois outra luta para ensinar como se seca sozinha. Outro pijama, outro cabelo para desembaraçar, unhas compridas para cortar. Hora de fazer as camas. Preparar o quarto para dormir. Ligar o abajur. Sim, o Toddy, que ainda por cima tem que ser quentinho e da cor exata se não o freguês devolve… Finalmente escovar os dentes, passar fio dental. Bochecho, o ultimo xixi e cama. Ufa.

Deitei com elas e de novo me bateu aquela dor no peito. Eu as tenho tão perto do meu coração. A solidão que sinto não tem nada a ver com elas, é comigo. É essa solidão de não poder mais compartilhar esse amor nos moldes que sonhei de família. Quando a gente ama desesperadamente os filhos, precisa muito dividir esse amor. Até porque minhas filhas são duas preciosidades. De pijama então, me deixam louca de paixão. Clara e Catarina. Uma, miniatura da outra. Muitas vezes penso em como posso ter feito coisas tão perfeitas. É demais ver as duas agarradas aos seus respectivos ursos de estimação. Clara com Teddy e Catarina com… Teddynho, claro. Dois ursos iguais, só que de tamanhos diferentes, na proporção certa, para cada uma. São crianças de sonho. Devagarinho as vejo se acomodando entre minhas coxas, colo e os tantos travesseiros macios que estão sobre a nossa cama. Exalam um cheiro doce, puro, divino. De olhos bem abertos, me esperam abrir o mágico caderno das canções de ninar.

Sim, foi através dele que ontem aconteceu alguma coisa diferente dentro de mim.

Sempre cantei para as meninas dormirem. Foi uma tradição que herdei da minha mãe e fiz questão de manter. Nunca esqueci a voz dela me encaminhando devagarinho para o mundo dos sonhos. Só que ao longo dos quase sete anos de maternidade, foram tantas as músicas que acumulei no meu repertório, que comecei a confundir as letras e por isso resolvi fazer um caderno, escrito à mão, com uma caneta roxa de glitter, com cheiro de uva.

Ontem eu cantei o caderno inteiro.

E a cada canção cantada, eu dissolvia um pouco o nó que apertava o meu peito. Foi então que eu descobri que nas canções de ninar existe um ungüento mágico e poderoso. Que o som da minha voz cantando aquelas melodias podia fazer um caminho secreto dentro de mim, me levar por um túnel no tempo, para o melhor e mais iluminado pedaço da minha vida, quando eu era pequenininha e não conhecia a solidão. Foi extraordinário.

Hoje eu não tive receio da noite, nem da falta do sol, nem das minhas sombras. Porque eu sei que existe uma luz dentro de mim que ilumina qualquer medo. E nem precisa ligar o abajur. Basta cantar Alecrim, alecrim dourado que nasceu no campo sem ser semeado… o meu amor, que me disse assim, que a flor do campo se chamava alecrim…