As minhas banguelas

Ontem encontrei no computador um arquivo de fotos antigas das meninas. Um que eu não via há muitos anos. Foi um choque. Chorei tão sentida que fui dormir estragada.

A experiência de ser mãe nessa vida para mim, tem sido um desafio indescritível. Em todos os níveis, em todos os sentidos, em todas as camadas do meu ser.

Quando Clara chegou há 18 anos atrás, aconteceu uma coisa estranhíssima. Eu achei que ia morrer. Eu olhava aquele bebê e achava que não ia suportar o amor que tinha invadido meu peito. Que ia explodir de tanto amor. Engraçado né, mas eu lembro dessa sensação avassaladora como se fosse hoje.

Quando Catarina chegou, quatro anos depois, eu já sabia que não ia morrer. Sabia que aquele amor cabia dentro de mim. Mas mesmo assim, eu morri. E de novo não acreditava o que aquele serzinho gorduchinho podia fazer com o meu coração.

Foram anos completamente entregues a aquele amor. Tive a sorte de poder cuidar das minhas pequenas de perto. Acompanhar cada passo, cada mudança, cada transformação que acontecia no corpo e na alminha delas.

Mas ontem, quando encontrei aquelas fotos e aqueles vídeos delas pequenininhas, me dei conta de uma coisa muito estranha: nossos filhos vão crescendo, amadurecendo, se transformando e isso é maravilhoso.

Mas ao longo desse processo a gente vai perdendo os filhos das idades que vão passando. Eu sei que a Clarinha de 5 anos habita na Clara de 18. Mas aquela criança de maria-chiquinha, de pijaminha de urso, maquiada de gatinha, dançando Saltimbancos Trapalhões, não existe mais. Pelo menos não fisicamente.

Quando eu descobri isso, chorei um luto estranhíssimo.

Eu sei que é uma loucura isso que eu tô falando. Que parece uma bobagem que não tem tamanho. Mas a constatação disso ontem me deixou muito triste. E com certeza deve ter umas mãezinhas por aí que já devem ter sentido isso.

Achei um vídeo da Catarina dela de cabelinho Chanel, franjinha e sem os dentes da frente que eu fiquei quase louca. Nessa época ela fazia muitos vídeos no celular. Tipo uns vlogs. Onde ela começava o vídeo dizendo: “Oi gente. Meu nome é Catarina e eu tenho 6 anos. Bem-vindos a mais um Coisas da Vida.” E ela fazia uns closes na cara engraçadíssimos e andava pela casa da avó mostrando os cômodos e as coisas que estavam acontecendo por lá.

Olho para minha Catita de hoje, de 14 anos e vejo uma menina linda, doce, companheira, maravilhosa, adolescendo lindamente. Sei que aquela banguela está lá dentro dela… eu sei que está. Mas aquela menininha, com aquele tamaninho, eu não posso mais abraçar. Nem colocar no colo. E isso me dá uma saudade que dói.

Clara está virando uma mulher. Linda, engajada, militante, artista. Quer fazer cinema na UFF e mudar o mundo com isso. É uma grande amiga. Aliás as duas são. O que construímos juntas não tem preço.

Filho é amor que dói. É o nosso coração batendo em outros peitos. É um pedaço da gente que se foi em outro corpo.

Eu jamais poderia ter passado por essa vida sem ter vivido a experiência de ser mãe. Mesmo que não pudesse ter tido filhos do ventre, eu certamente teria adotado. Maternidade é uma coisa que a gente nasce com. Ou não. É uma coisa instintiva que você tem ou não tem. E tudo certo. Mas no meu caso especialmente… caramba… esse instinto veio atropelando. Acho que eu poderia ter tido mais uns cinco filhos que a cada um, eu ia sempre achar que ia morrer de amor.

Essa fase agora da adolescência é um desafio. A gente ouve falar, mas não imagina o que vai enfrentar. Cada dia é uma luta. Cada dia um aprendizado diferente. Horas amando incondicionalmente, horas querendo esganar. É preciso muita paciência. Paciência e muita conversa.

Eu tenho saudade de trocar fraldinha. De sentir aquele cheiro delicioso do cocô amarelinho de leite. De dar banho na banheira com água morninha e sabonete Granado. Secar o corpinho macio e cheiroso nas toalhas felpudas com gorro. Dar de mamar. Dar papinha de maçã. Ouvir a gargalhada das minhas gorduchinhas enquanto eu secava os dedinhos do pé. Eu tenho muita saudade de quando elas cabiam nos meus braços. E a gente adormecia junto na cama de tarde.

Que elas não me ouçam pelo amor de Deus, mas acho que eu não vejo a hora de virar vovó.

Mãezinha

varal

Um texto de Clara Meira

“É um dia ordinário, comum. Mais precisamente uma segunda. Minha mãe está cansada. É um dia relativamente quente. Me pego a observar esse ser que me segurou durante nove meses dentro de si. Está sentada sobre o nosso sofá cinza com um olhar mais perdido do que bote no mar. Me pergunto o que pensa aquela cabecinha mirabolante. Ela se levanta pois sabe que precisa cumprir suas tarefas diárias (as quais ela mesmo se impõe). Anda com passos leves e ligeiros até chegar à maquina de lavar onde tira as roupas lavadas de dentro. As traz para o sala junto do varal. Vai pendurando com muita leveza. Dá uma parada para desfrutar do cheirinho de roupa lavada que ela tanto ama. Ela sorri e junto dela eu sorrio discretamente para baixo. Ela está linda. Usa uma blusa rosa, um short preto e um coque mal feito. Respira profundamente de cansada. Mas parece tão feliz, tão serena. Me percebe sorrindo e conversamos um pouco. Acaba de estender a roupa e senta comigo, acompanhada de uma maçã descascada (a qual eu tento pegar uma fazendo-a gargalhar). Tão plena. Rimos no nosso gato Zeca dormindo engraçado. Essa é a mulher que cuida de duas filhas, dois gatos, uma casa e um relacionamento. Esta é a mulher que carregou duas crianças em seu ventre. Que passou dezoito horas em trabalho de parto para ter minha irmã. Que tenta nos manter distantes dos desastres do mundo, que lida com todos os problemas de uma forma adulta. E que mesmo assim nos ama, nos cuida, com cada célula de seu corpo. Então eu simplesmente digo: – como te amo.”

 

 

Adolescendo

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Para Clara Meira

Não. Definitivamente não há cursinho preparatório para gente ter filhos.

Ninguém avisou para gente do neném molinho que ia chegar aos nossos braços, nem da velocidade que as perninhas deles iriam ganhar quando aprendessem a andar. Ninguém avisou das perguntas que a gente precisaria responder, nem do amor avassalador que a gente iria sentir.

Todas as fases dão trabalho. Todas têm sua magia e complexidade. Todas são terrivelmente maravilhosas. Mas nenhuma delas se compara à adolescência.

Muito já foi dito sobre essa fase da nossa existência. Muitos já se debruçaram sobre esse tema. Por isso mesmo gostaria de tentar ir um pouco mais fundo nesse assunto. Essa coisa de dizer que os adolescentes estão desabrochando para a vida é uma visão muito simplista da coisa. Assim como chamá-los de aborrecentes é injusto e preconceituoso. A adolescência é um momento crucial de mudança, um estado dolorido, difícil e febril que todos nós passamos e precisa ser tratado com delicadeza e ternura, para que passe construindo seres e não destruindo essências.

Clara mudou muito desde que o calendário apontou essa mudança de fase em sua vida. Me lembro do aviso que nos deram na primeira reunião da escola, quando ela passou para o Fundamental II. A orientadora pedagógica teve muito cuidado para nos preparar. Mas a sentença era definitiva: em pouco tempo não reconheceríamos mais os nossos filhotes.

Eu tenho tentado com todas as forças enfrentar a coisa com sabedoria e humor. É isso ou me render a uma cartelinha de Rivotril. Mas confesso que os desafios são muito maiores do que podia imaginar. Cada casa deve ter seu drama, claro. Mas aqui a coisa é pesada: temos uma menina virando mulher, um bebê virando menina e uma mulher virando anciã. Uau.

Foi num desses dias de caos temporal que descobri um termo perfeito para o momento. Ela chegou aos prantos e me perguntou com os olhos transbordando de angústia:

– Mãe, peloamordedeus, o que tá acontecendo comigo?

Naqueles olhos eu via o tal desabrochar, mas via também um sentimento adoecido de confusão e medo. Ela tinha um misto de raiva, tédio e tristeza. A coisa saiu da minha boca como se tivesse acabado de ser inventado.

– Você tá adolescendo, filha.

– Como assim adolescendo, mãe?

– É uma fase esquisita onde a gente não é mais o que era e ainda não encontrou o que é. Imagina você se construindo, de dentro para fora e o mundo te moldando de fora para dentro. É meio conflituoso mesmo, mas você vai sobreviver e se tornar um grande ser.

Sabe que ela gostou? Acho que de alguma forma se sentiu explicada. Resumida. Bom, pelo menos naquele minuto.

Eu acho que a minha adolescência foi branda. Desde muito pequena me lembro da sensação de me sentir inadequada no mundo, então quando adolesci o sofrimento não foi assim tão grande. Eu não era desse mundo mesmo, para que sofrer? Eu não me lembro de ter muitos conflitos. Minha mãe já tinha me apresentado para a arte e ela de alguma forma me equilibrava para estar aqui, mesmo que eu me sentisse uma ET. Eu não me sentia obrigada a ser como os outros, nem me encontrar em nenhuma tribo, porque de alguma forma, já sabia que isso era uma ilusão. Então passei essa fase ocupada vendo muitos filmes, lendo muitos livros, escrevendo noites a fio nos meus cadernos. Eu tinha doze ou treze anos quando minha mãe um dia me encontrou numa vernissage no Shopping da Gávea, com uma taça de água gelada nas mãos, observando um quadro abstrato.

– Tá fazendo o que aqui sozinha minha filha?

– Ué mãe, to descobrindo a vida.

Minha mãe também não era fácil. Que mãe leva uma filha de treze anos para ver “Metropolis” do Fritz Lang? Ou “Koyaanisqatsi”, aquele documentário maravilhoso e barra pesadíssima com trilha sonora do Philip Glass, que fala sobre o desequilíbrio da vida moderna? Ela me ensinou muito sobre a vida no cinema. Me lembro de colocar saltinho, boina e óculos de grau para passar por mais velha nos filmes que tinham censura. Às vezes víamos até três filmes no mesmo dia. E tomávamos lanchinho entre um e outro. Era o nosso melhor programa.

Já minha irmã sofreu muito na adolescência. Nunca esqueço o dia que cheguei em casa e ela estava sentada no chão, de braços cruzados, olhando para a parede. Preocupada perguntei à minha mãe:

– O que é que ela tem mãe?

– Quem sabe, minha filha.

Manô pintou o cabelo com parafina e exigia que minha mãe comprasse roupas de marca para ela. Sua tribo era exigente. Ela convivia com a galera surfista do Leblon. Nada fácil.

Nos dias de hoje, Clarinha definiria minha irmã com maestria: ela estava bugada. Esse é o termo perfeito que se encaixa em quase todos os estados emocionais da Clara: quando a coisa não vai bem, ela se define estar bugada. Eu entendo. É muito bugado perder a inocência, ter que entender como funciona a vida adulta e ainda ter que decidir o que se vai fazer com um futuro que ainda nem chegou. É um processo muito pesado para uma criatura que outro dia mesmo tava brincando de boneca.

Ela tem se queixado de solidão. Que os amigos torcem o nariz quando ela fala uma palavra um pouco mais complicada. “É que eu leio muito, galera” se desculpa com um olhar sem graça. Já eu preciso disfarçar o orgulho que sinto dela e lhe digo com o coração apertado que a vida é assim mesmo, que as pessoas vão amadurecendo de forma diferente, em tempos diferentes, dependendo do jeito que cada um é criado e preparado para o mundo.

Hoje me dou conta do quanto valeu nunca ter mentido para ela, nunca tê-la poupado de nada. E ter forçado a barra para ela sempre ir além, além do sentimento, além do pensamento, além da superficialidade de todas as coisas.

Clara está adolescendo. E crescendo. E sofrendo. E todos os “endos” que é capaz. Eu não me preparei para esse pedaço da vida, mas como estou feliz em poder estar ao lado dela nessa caminhada. Estar com minha filha agora é estar imersa naquilo que chamo de resumo existencial: dói, mas é a dor mais bonita que a gente pode passar. Isso é viver.

As Máximas da Clara

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Hora de dormir. Quarto escurinho, beijos de boa noite, chamego.

– Mãe, aqui entre nós duas, me explica uma coisa? Por que tem gente que chama o fiófis de cú?

Tive que me segurar para não soltar uma gargalhada e acordar Catarina.

– Ué, deve ser porque é uma palavra pequenininha e feinha, exatamente como ele é.

Dessa vez foi ela que gargalhou. Daquelas gargalhadas que ela dá e a veia do pescoço pula de alegria.

– Eu sei que cú é palavrão, mãe… mas tem algum nome bonito para ele?

– Hum… tem. Ânus.

– Ânus é feio, mãe! Cú é mais simpático.

– Eu sei minha filha. Mas cú é palavrão. A gente não deve falar. É uma tremenda falta de educação.

– Cú não parece palavrão. Parece palavrinha…

Fiquei sem fala. Ela estava coberta de razão. Foi dali que ela começou sua pesquisa linguística antropológica.

– Sei… e qual o nome feio de pepeca?

– Vagina.

– Ah mãe, fala sério. Vagina é o nome técnico. Eu quero saber o palavrão mais horripilante…

Pensei um pouco. Não era justo mentir para ela naquela altura do campeonato. Ela tinha o direito de saber.

– Tá. Buceta.

– Buceta? Mas buceta é bonitinho…

– Clara, pelo amor de Deus minha filha, isso é um palavrão de quinta, não vai sair por aí falando isso e dizendo que fui eu que te ensinei que vão me chamar de louca.

– E se eu chamar minha pepeca só de Ceta, tudo bem?

– Não, não está nada bem. Todo mundo vai saber que é diminutivo de buceta.

– Hum. Então qual é o nome mais lindo para buceta?

– Pepeca filha. Pepeca é lindo.

– E para peru?

– Pinto.

– E pau?

– Pau nem pensar. É muito vulgar.

– Mas por que a gente pode chamar o peru pelo nome do bicho, mas não pode chamar pelo nome da madeira?

– Clara, o mundo das palavras é um pouco complicado.

– Tudo bem mãe. Mas o que é grelo?

– Boa noite, Clara!

As Mínimas da Catarina

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Saio do banho, Catarina está sentada no banquinho, tagarelando sem parar.

Dali a pouco, se cala e começa a olhar fixamente para o meio das minhas pernas.

– Mamãe, o que é isso?

– Isso o que?

Sem entender direito, olho para baixo e vejo para onde seu dedinho está apontando.

Abro um pouco as pernas. Ela arregala os olhos.

– Isso aqui filha, é uma parte da pepeca. Chamam-se grandes lábios.

Apavorada ela pergunta:

– E isso morde?

Bipolaridade materna

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Minha bipolaridade materna ainda vai me enlouquecer.

Não sei quantas mães passam por isso. Não sei dentro de quantas casas isso acontece. Mas a verdade é que tem dias que eu preciso sair correndo e ir dar um grito bem histérico na varanda. Mesmo que seja um grito histérico mudo, para não assustar as meninas nem os vizinhos. Uma das minhas tentativas desesperadas de equilíbrio psicológico.

Gente, criança é uma dádiva. Em todas as fases. Em todos os sentidos. Conceber, parir, alimentar. Depois ver crescer, se desenvolver, desabrochar. Esses anjos caídos do céu têm o cheiro mais inebriante que eu já senti. Eles têm pele de nuvem. São espontâneos, adoráveis, amorosos. E conseguem conter dentro daquele corpinho minúsculo, o melhor e mais genuíno da nossa espécie. Mas às vezes – muitas vezes – também são as criaturinhas mais insuportáveis do mundo.

Deixa eu explicar.

Quem me conhece sabe que eu sou, desde que as gurias nasceram, um coração partido em dois batendo fora do corpo. Foi depois que Clarabela e Catalinda chegaram, que minha vida passou a ter sentido. Não que antes a vida não fosse maravilhosa. Ela era. Mas sentido, não tinha não. Minhas meninas me trouxeram em suas asas uma certeza etérea de pertencimento ao mundo. Uma resposta concreta às perguntas mais existenciais que eu já tinha feito às estrelas. Um entendimento absoluto da minha capacidade de amar e me doar em forma de leite, afeto e compreensão.

Mas quando os nenéns deixam de ser nenéns e se tornam essas coisinhas que andam e gesticulam e falam e se acham gentinha, trazem com elas acoplado às bochechas, um teste diário de paciência, resistência e benevolência. E é aí que a gente entra em contato com um adormecido monstro do Lago Ness dentro de nós. Porque essas nossas criancinhas provocam na gente os mais contraditórios sentimentos. Dizem as más línguas psicanalíticas, que quem sofre o rompante dessa raiva colossal, nem sempre é a Tatiana adulta e consciente e sim, uma criança interna minha que de alguma forma foi ferida e reage lá de dentro com um sentimento quase sempre… infantil. Hã… é, pode ser. Mas independente de quem ou o quê acorda o meu monstro no fundo do lago, a questão é que me assusta muito a percepção dessa bipolaridade que meu coração é capaz de chegar.

A oscilação entre amor e ódio ocorre entre segundos. Dou o grito. Ela não obedece. Mas é quarta vez que eu estou pedindo para você entrar no banho! Ai ela dá um sorriso. Eu me desmancho. Finalmente entra no chuveiro. Outra mau criação. Agora o drama é para passar o xampu. E eu penso comigo: meu deus, eu tô tão cansada… Ela retruca: mas mamãe, eu tenho dileito de fazer tudo sozinha! Aí eu acho lindo. E me encho de orgulho por esse desejo dela de emancipação. O trocinho só três anos! O tempo passa. Vamos sair do banho, meu anjo? Agora a manha é para sair do banho. Mas você chorou tanto para entrar, não dá para variar um pouco o repertório e não chorar para sair? Não. Não dá. Ela tá cansada – eu penso. Paciência, mamãe, paciência… Dou-lhe uma, dou-lhe duas… Catarina! Ela cruza os braços e me dá as costas. Para não enforcar o pescocinho, vou até a cozinha tomar um chá mate. Respiro fundo. Volto e digo alto e em bom tom: Vamos sair A-GO-RA. Ela diz que não. Então eu desligo o chuveiro e uso minha força para colocá-la para fora. Firme, a coloco em pé em cima do tapetinho do banheiro. Ela recolhe as pernas. Senhor, alguém me ajuda! É quando finalmente eu dou o grito que balança a casa. Ela se assusta. Coloca os pés no chão devagarinho. E das duas bilhas castanhas saltam duas gotas de lágrimas sentidas e transparentes. Aquele choro sofrido. Mudo. Decepcionado. Meu coração se contrai e eu penso: como posso ser tão megera?

Alou? Alguém pode me internar?

Nessas horas eu não penso em mais nada. Claro, porque depois do choro ela diz sempre: mamãe, será que você pode me dar um abracinho agora? Mas depois… depois que eu me acalmo e volto a ter algum discernimento, entendo que não vai dar nunca para compreender o que é um coração bipolar.

Vocês acham que a coisa pára por aí? Não… a coisa não termina nesse happy end lindo. Minha noite ainda me reserva todo um processo de vestir pijamas, pentear cabeleiras e escovar dentes. É. Escovar dentes. Praticamente um pesadelo para mim. Por quê? Porque Catarina é o tipo de criança que tranca a escova na boca enquanto estou escovando os dentes dela. Uma delícia de criança. E quando eu acho que tudo acabou, que o quarto está escuro e elas estão em silêncio, minha grandona pula da cama e grita desesperada: Mas mamãe… e o nosso Toddy? Você esqueceu o nosso Toddy!

A verdade é que desde que eu fiquei sozinha a coisa toda piorou muito. Essa aventura de ter filhos pequenos é para quem sempre desejou ter uma vida selvagem. Mas eu nunca desejei ter uma vida selvagem sozinha. Porque por mais presentes que sejam os ex-maridos, é no cotidiano que a gente sofre essa solidão cansada e se descabela quando desconfia, que esse modo de vida, nunca mais vai mudar.

Eu sei que vai. Um dia esse tempo vai passar e eu vou olhar as fotos delas com uma saudade dilacerante de quando elas eram pequenininhas. É injusta essa parte da evolução da espécie. Porque eles crescem e viram nossos amigos. Companheiros de caminhada, espectadores da nossa história. É maravilhoso. Mas ainda assim é duro saber que de alguma forma, aquelas crianças bagunceiras e melequentas, a gente não vai poder segurar no colo nunca mais.

Hummm. Pensando bem… ainda bem.

 

Conversinhas com Clara

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As conversas com Clara antes de dormir podem ser surpreendentes.

– Mãe, tinha um menino na minha sala hoje com tanta cecê, mas tanto cecê…

– Sério filha? Que péssimo. Será que a mãe dele não sente?

– Não sei, mas era uma boa pessoa para avisar né.

– Cecê e bafo, se a gente tem intimidade com a pessoa, precisa alertar.

– Mas mãe, as pessoas não tão nem aí pros fedores. Precisa ver quanta gente na minha sala que peida e não tá nem aí.

– “Peida” filha? Mas isso é jeito de falar?

– Peida mãe. Todo mundo fala assim.

– Mas você é menina. Não dá para falar de outro jeito? Pior que o ato “peidar” é a palavra “peido”.

Nessa hora ela ri de gargalhar. Não aguenta a própria mãe.

– Tá mãe, como você quer que eu fale?

– Fazer um pum.

Ela gargalha de novo.

– Mãe, ninguém faz pum. As pessoas soltam pum.

– Tá. Fazer, soltar, não importa. Pelo menos a palavra “pum” é bem mais sonora que “peido”.

– Ah… isso você vai me desculpar, mas não é não.  Peido é bem mais legal de falar. E no mais, peidar já um verbo. Uma palavra só já explica a coisa.

– Eu acho deprê.

– Pior que peidar é mijar.

– Não, cagar é pior.

– Não. Mijar é pior.

– E cagar? Ouve bem: ca-gar.

– Cagar as sílabas combinam.

– Tá, mas você não fala assim né. Pelo amor de Deus.

– Óbvio que não, mãe.

– Ué, não sei. Para mim, quem fala “peidar” pode muito bem usar “mijar e cagar” para se expressar.

– Não, mãe. Eu falo “fazer xixi e fazer cocô”.

– Ah tá. Mas por que xixi e cocô podem usar o verbo fazer, e o coitado do pum não?

– Tá bom mãe…  a partir de agora vou soltar flatulências. O que você acha?

– Acho lindo.

– Melhor ainda: vou dizer que “ops, flatulei”.

– Flatulei é perfeito. Elegante e ainda por cima você ainda inventou um verbo. Mamãe gosta.

Ela ri de novo.

– Quem é você, mãe?

– Quem é você, Clara?

Cheirinho de Deus

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– Mãe, o que é olfato?

– É o sentido que faz a gente perceber os cheirinhos do mundo, filha.

– Cheirinhos do mundo, como assim?

– Ué, se alguma coisa tem cheiro, quem sente é o seu nariz através desse sentido engraçado que se chama olfato.

– Ah… eu gosto do olfato do bolo da vovó.

– Não filha, olfato é só o nome que se dá ao sentido. Você gosta é do cheiro do bolo da vovó. Principalmente quando ele acaba de sair do forno…

– Por isso que você dá aquele sorriso quando o papai faz café?

– Isso mesmo… porque eu adoro cheirinho de café passado.

– E aquela cara feia quando ele dá pum?

– Exatamente. Nem todo cheiro é bom…

– Cocô. Cocô tem cheiro ruim né mãe?

– Tem filha. Não sei por que Deus não inventou um cocô cheiroso.

– Eu sei outro cheiro ruim!

– Qual?

– Chulé.

– Ui. É mesmo.

– Mãe?

– O que foi?

– O que é cecê?

– Outro cheiro ruim. De sovaco que não tomou banho.

– Écate.

– Viu só como a gente tem que tomar banho.

– Mas eu gosto do cheiro do xampu do Bob Esponja. Tem cheiro de morango.

– É verdade. É muito gostoso.

– Qual é o cheiro que você mais gosta mãe?

– Hum, tantos. Gosto do cheiro da roupa que acabou de lavar. De doce de maçã, de cebola sendo frita no azeite. Cheiro de flor, de fruta. Mas de todos os que a mamãe mais gosta é de canela. Porque ela tem um cheiro mágico.

– Mágico? Por quê?

– Porque ela me leva a lugares distantes, imaginários. Como a terra do Aladim, sabe?

– Sei… puxa… que legal… você me mostra?

– Claro.

– Mas e a chuva, tem cheiro?

– Tem. Tem um cheiro maravilhoso de terra molhada.

– Mas o cheiro é da terra ou da chuva?

– Dos dois. Da mistura deles.

– Hum…

– Quando você nasceu seu pescoço tinha um cheirinho de Deus.

– O que é isso mãe?

– É o melhor cheiro do mundo filha. É o cheiro do amor.

– Ah, já sei. Seu colo tem esse cheiro.

– Querida…

 

Meninas acordando

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De todas as graças que sou abençoada nessa minha vida, uma das mais sutis e maravilhosas é ter a oportunidade de ver minhas filhas acordando todos os dias.

Minhas manhãs são simples e rotineiras. Abro os olhos e a primeira coisa que penso é na sensação estranha de me sentir viva mais um dia. Silenciosamente agradeço por isso e saio espreguiçando meu corpo como se precisasse desesperadamente dizer para ele que o tempo do quentinho da cama acabou. Me levanto, caminho lentamente para o banheiro, faço xixi, escovo os dentes. Depois sigo para cozinha para tomar meu religioso copinho d´água para ver se consigo me acordar por dentro.

Há qualquer coisa de divino no tempo da manhã. Uma luz diferente no horizonte, um frescor de orvalho deixado pela noite, um tom celestial no canto dos passarinhos. Não sei bem o que é. Mas acordar de manhã é como renascer sem ter morrido. Como voltar de uma jornada profunda sem ter partido. É como despertar de sonhos vividos e ter a certeza de que não estávamos lá, mesmo tendo certeza de que estávamos.

Enfim. Ainda na cozinha busco os ingredientes para fazer a poção mágica que desperta minhas bonecas há mais de dez anos: o nutritivo e achocolatado Toddy de todas as manhãs. Preparo a bebida, encho os copinhos do leite morno e doce que elas tanto amam e sigo ansiosa para o quarto delas.

Abro a porta. O quarto está quieto. Geralmente Clara está coberta até a ponta do nariz com o edredom. Catarina está virada do outro lado da cama, toda torta e descoberta. Olho para o rosto delas e percebo a profundidade do sono em que estão. Há um ronquinho no ar. O som de uma respiração que vem lá de dentro do corpinho de cada uma. Por onde andarão suas alminhas? Com o que será que estão sonhando? Me ajoelho perto das duas e começo o processo do despertar cheirando o cangote de cada uma. Cheirinho de Deus!  Tem a mistura do cheiro do xampu, com o perfume do amaciante que está na fronha e o cheirinho da pele delas que mais me parece com um doce de confeitaria.

Da cafungada no cangote, passo para o beijinho de leite – beijo inventado por elas – que é um beijo miudinho e sem som, quase imperceptível a olho humano. Esse beijo dou em todas as partes do corpo que estiverem descobertas… rosto, braços, pernas. Mas quando passo a beijar por cima do pijama, o beijo já pode estalar. Aliás, deve. Quanto mais alto, mais chances tenho de fazê-las despertar. É com os beijos estalados que as coisinhas começam a chegar.

O primeiro indício da chegada é o desejo de espreguiçar. Nesse momento me afasto para assistir a melhor parte do show, quando elas deixam de ser meninas e passam a ser uns filhotinhos, uns bichinhos desses que a gente morre de amor no zoológico quando começam a se espreguiçar. Elas fazem caretas. Soltam gritinhos. Grunhidos. Uma coisa muito deliciosa. Vontade que dá é de sair mordendo.

Os “bons-dias” geralmente saem da boca antes mesmo dos olhos se abrirem. Cada uma traz seu amor e sua doçura na forma com que me reconhecem. “Bom dia, Mamisquilis” diz Clara. “Bom dia, Lindoca” diz Catarina.

Emocionada, corro para abraçá-las como se não as visse há muito, muito tempo e rapidamente me transformo no que elas mais gostam: um enorme puf-mamãe. Elas sobem e pulam em cima de mim. E nos embolamos como se fossemos um corpo só. Como são lindos os olhinhos inchados e remelentos, como são cheirosas as boquinhas com bafo de tigre, como são perfeitos os cabelos enormes e descabelados, como são quentinhos os abraços com braços tão fortes.

Se eu pudesse resumir as partes boas que vivo no cotidiano da minha vida, estas manhãs certamente estariam na lista das mais queridas. É uma benção imaginar que num mesmo dia posso renascer e ver renascer aquilo de mais preciso que coloquei no mundo. Que maravilhoso dia para se ter alegria!

Férias espetaculares

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Férias é um período mesmo formidável. As crianças passam metade do tempo se divertindo, metade entediadas e as mães passam quase 100% do tempo querendo cortar os pulsos.

Para muita gente nesse mundo, férias é sinônimo de alegria e descanso. Dias deliciosos de repouso, pausa no trabalho, período sem compromisso. Viagens gostosas com a família para um hotel fazenda ou um resort daqueles de revista de viagem.

Não é o meu caso.

Férias no meu dicionário quer dizer: desespero. Um desafio hercúleo onde todas as minhas qualidades são colocadas à prova e todos os meus defeitos são grifados com marcador de texto fosforescente. Cara, eu sou uma pessoa paciente. Sou criativa. Tenho certeza de que sou uma mãe divertida. Mas sem dinheiro, sem empregada e sem ajuda, as férias tem se transformado num período de crises e superações. Vivo a beira de um ataque de nervos. Acordo todos os dias de manhã e me faço sempre a mesma pergunta – parodiando Pink e o Cérebro:

– Tati, o que você vai fazer hoje?

– O que faço todos os dias, tentar divertir minhas filhas.

Claro que as férias de inverno são mais difíceis que as de verão. Mesmo que intermináveis, as férias de dezembro, janeiro e fevereiro tem um poder de transmutação: o calor. Quando a temperatura esquenta, a galerinha vai lá para fora e qualquer programa aquático diverte. Por horas. Mangueira, banho de bacia, piscina, praia! No verão as crianças viram peixe e não se importam com absolutamente nada. Mas no inverno… no inverno a coisa complica. Todo mundo quer ficar entocado em casa, comendo tudo o tempo todo, jogando videogame ou vendo filme. Tudo lindo.  Até bater o tédio. Depois do terceiro filme e da 12ª bacia de pipoca, elas começam a dar curto circuito.

Clara até tenta. Fez uma listinha genial de ideias mirabolantes de coisas para fazer numas férias sem dinheiro, até mesmo a realização de um documentário sobre isso. A listinha tinha de tudo: criar um mapa de tesouros e depois ir atrás deles, vender brigadeiros (sendo que a mamãe faz e enrola claro), fazer um show no condomínio, fazer piquenique no topo do morro, montar uma barraca de lençol e fingir que está acampando, organizar uma festa a fantasia. Mas a melhor de todas foi A Cápsula do Tempo. Ela teve a ideia de produzir uma caixa onde colocaria objetos da nossa época (!) e cartas para gente guardar na caixa e só abrir daqui a 20 anos. Piramos. Ela e Catarina já fizeram as delas. Só falta a minha. Já comecei a carta umas três vezes, mas estou sem saber o que quero dizer a mim mesma quando estiver com sessenta anos. Loucura, gente. Coisa de Amelie Poulain! A questão agora é saber onde vamos enterrar a relíquia.

Não sei, mas nas férias todo o trabalho da casa aumenta tanto… Tudo se multiplica feito “Gremlins” na água. Roupas sujas nos cestos, roupas limpas na corda, sujeira nos cantos da casa, pipocas embaixo do sofá, bonecas saindo pelas gavetas, papeizinhos de BIS brotando do rodapé, essa fome infinita por gulodices, vizinhos entrando pelas portas e janelas buscando diversão na casa da Tia Tati. Ufa. Faço quilos e quilos de feijão mas não dou conta. Fui ao supermercado quase todos os dias, até que a moça do caixa me perguntou assustada com o aumento significativo de comida: mas a senhora não tinha duas filhas? É, mas os amiguinhos delas amam a nossa casa. Ai, ai.

Já fizemos de tudo. Argila, pintura, desenhos com giz, colagens. Peteca, bola, elástico. Jogos, mímicas, bolo de cenoura com brigadeiro. Cuca de banana. Spa. Tratamentos de beleza. Tardes de maquiagem. Filmes de aventura. Filmes de ação. Comédias. Já lemos livros, revistas, almanaques. Wii, Friv e todos os possíveis entretenimentos virtuais. Perdi a conta de quantas amiguinhas já vieram dormir. Já fiz e refiz um milhão de caminhas, um milhão de Toddys, um milhão de pães de queijo e as férias estão longe de terminar.

Tomara que nas férias de verão eu consiga relaxar um pouco. Me divertir mais do que me estressar. E poder entrar de verdade, de corpo e alma, na onda das minhas peixinhas. Não quero ser uma mãe chata, quero ser uma mãe sereia!