Onde Habita Minha Alma

vinho

O lar da alma é o abrigo onde mora a minha alegria
É o lugar onde conservo com todo o cuidado a seiva que me alimenta
Onde preservo algumas das minhas últimas ilusões
Onde eu guardo as minhas criativas estratégias de salvação
Meus ungüentos para as dores mais fundas
A esperança de um dia ainda encontrar algum sentido
qualquer que seja
para toda essa bagunça que me meti quando resolvi nascer…

por isso vos digo
onde minha alma habita
é onde eu estou em essência e excelência…

no adágio de Albinoni
na taça de vinho tinto – cheia!
no mar, onde a lua reflete a prata
e o sol reflete o ouro
num enxame de vagalumes
no vento que varre pensamento
na água corrente
numa revoada de borboletas
na primeira mordida do brigadeiro
na sala de cinema
nos filmes que viraram célula
nos sacos grandes de pipoca
nas declarações de amor, feitas ou recebidas
nas caretas da Clara
no banho quente e cheiroso
no prazer de fazer algo de bom para alguém
no entardecer
no amanhecer
num varal de roupas lavadas
numa roupa recém passada
num trilho de trem
numa estrada de terra
na sutileza das poesias do Mario Quintana
na poesia das crônicas do Rubem Braga
na melodia das letras do Chico Buarque
na caneta esferográfica
no olhar da minha mãe
no bigode do meu pai
na gargalhada da minha irmã
na parede pintada de verde-limão
no céu azul quando está muito azul
no numinoso das nuvens
no escuro da noite que revela as estrelas
nos meus cabelos quando estão vermelhos
na dor das esculturas de Camille Claudel
nos corpos com gavetas de Salvador Dali
na paz que me dá ouvir Gurumayi cantar
nos desenhos da fumaça do incenso
na página de um livro bom
nas palavras preciosas
nas estantes cobertas de livros
no café expresso da livraria
na minha coleção de penas
no apito do trem
no badalar dos sinos
no assovio de alguém
nos canais de Veneza
nas cores de Veneza
no desejo diário de voltar à Veneza
na chuva – antes, durante e depois
no cheiro de esperança que ela impregna o mundo
na horta
no pomar
no balão colorido que um dia eu ainda hei de voar
na pipa que ensina leveza
na cereja que ensina a beleza
no passarinho que ensina a gente a ser livre
na gentileza inesperada
no olhar demorado de alguém desconhecido
no suspiro
no espirro
na saúde
na lágrima que escorre
no bocejo que contamina
na semente do morango que estala entre os dentes
no peixe frito na beira da praia
no caldo de cana na beira da estrada
no pacote fechado de presente
no orgasmo
(acho que nessa hora ela não habita, ela grita)
na dor feminina que é sangrar todo mês
no meu blush
no meu perfume de almíscar
nas minhas botas novas de camurça
nas cartas escritas
nas cartas escondidas
nas cartas esquecidas
no cheiro de pão no fim da tarde
no cheiro de canela, de pó de café
de manjericão no molho de tomate
no primeiro gole do chopp
nas fotografias que tem sorriso
na compaixão que me arrebatam os mendigos
na lembrança do que fui na memória dos melhores amigos
na esperança do que ainda posso fazer com a minha própria vida

Essa lista não tem fim. Nunca terá, só no dia que eu morrer. Até lá…

 

Tem alguém olhando para mim

rosto

Coisas esquisitas acontecem todos os dias.

Nem sempre a gente dá a devida atenção a cada uma delas. Porque nem sempre a gente tem tempo para isso. Nem sempre a gente tem consciência da coisa. Até repara na coisa. Mas de uma forma inconsciente. Até que acontece de novo. E de novo. E aí a gente leva um susto. Porque a coisa é muito esquisita e não tem explicação.

Foi o que aconteceu comigo ontem. Eu tava no banheiro, fazendo xixi, olhando para o chão do corredor. O chão do corredor é de mármore. Daqueles que são chapiscados de desenhos: bege com desenhos preto e cinza. É uma pedra bonita, perfeita para esconder sujeirinha que eu não tenho tempo pra limpar. Mas eu tava lá, com o pensamento muito longe, quando de repente, meus olhos focalizaram um desenho. Um desenho perfeito de um rosto olhando para mim. Uai. De novo. De novo aquilo tava acontecendo.

Semana passada eu tava no telefone. Sentada no sofá. E eu tinha à minha frente um varal de pé, cheio de roupas penduradas. Eu coloco na sala quando chove porque minha área de serviço é coberta mas sempre molha tudo. E foi daquele jeito, distraída, que eu vi surgir de dentro da estampa de um vestido preto e branco, um rosto perfeito de mulher olhando para mim. Olhos, nariz, boca.

Foi quando eu me dei conta de que esse troço tava se repetindo há um bocado de tempo. E a coisa acontecia justamente quando eu tava distraída. Um rosto nas folhas do arbusto. Um rosto na textura da parede. Um rosto no estampado no papel do embrulho. Um rosto feito de gotículas de água, desenhado no embaçado do box. Estranho – pensei comigo. Será que isso acontece com todo mundo? Nunca ouvi ninguém falar sobre isso…  

Mas ontem detectar aquele rosto no mármore olhando para mim me deu um estranhamento diferente. Um desconforto. Porque aquele rosto tinha vida. Tinha expressão. Era uma moça, tinha cara de moça e ela estava sorrindo para mim. Me encarando. Foi quando resolvi encarar ela também. E então ficamos as duas ali – uma encarando a outra – durante um tempão. Até que me dei conta de que ela podia estar tentando falar comigo. Sei lá. Me mandar um recado do além. Sabe Deus! A gente não tá careca de saber que “há mais coisas entre o céu e a terra do que supõe a nossa vã filosofia”? Vai saber se a mocinha não tava tentando um jeito de comunicação tridimensional?

Mas não. Ela não disse nada. Ficou muda o tempo todo e eu acabei cansando de esperar.

Eu sei que coisas esquisitas acontecem todos os dias na vida da gente. Mas vou te contar viu, eu to virando uma colecionadora de experiências esdrúxulas. Ainda bem que eu não fumo nem bebo. Se eu passo por isso careta, imagine com a consciência alterada. Deus me livre.

A Liquidez da Compreensão

liquido

Um dia fui numa mãe de santo que me disse assim:

“Fia, suncê tem que escrever com humor.”

Torci o nariz. Humor? Mas essa preta velha incorporada nessa moça bonita acha o quê hein? Que é todo dia que a gente tá para alegria? Só consigo escrever com humor ou quando eu tô muito inspirada ou quando meu estado de espírito acabou de chegar de férias do Caribe. Não é todo dia que a gente tá solar e vê o mundo colorido. Caramba tem dias que saio da cama com uma lente cinza chumbo nos olhos que não há Cristo que me tire aquele ânimo gris da alma. Melancolia pura.

Parecendo ler meus pensamentos, a preta puxou um tanto do cachimbo, soltou aquela fumaça cheirosa em cima de mim e falou:

“Num é esse humor que ocê tá pensando. Tô falano daquele humor, aqueles líquido que a gente tem no corpo e governa o coração. É com eles que suncê tem que escrevê.”

Hã?

Demorei um tempão para processar aquela informação. Só quando cheguei em casa e fui procurar no dicionário a palavra humor, é que vi numa tacada só, todas as fichas da minha vida, caindo em cima de mim, como naquelas máquinas de cassino, quando te premiam 1000 mil dólares em moedas de um.

Humor são todos os líquidos secretados pelo corpo e que determinam sua condição física, mental e emocional. Genial! Devia ter enchido aquela preta velha de beijo. Como é que eu não tinha entendido isso antes? Usar o humor como guia para o que escrevo, é nunca mais desperdiçar uma alegria ou tristeza sequer. É não me envergonhar da raiva, é grifar o amor, é permitir o negrito de tudo que vejo com as minhas lentes cinza chumbo. É entender que meu barco pode confiar na bússola que pulsa no meu sangue, porque é justamente lá nas minhas veias, que está o melhor e mais confiável oceano para navegar.

Descobri com meu compadre Houaiss, que existem os humores oficiais: o sangue – aquele que faz a gente ferver de raiva ou de paixão, a fleuma que é causadora da apatia, a atrabílis ou bile negra que é responsável pelo último grau da raiva… a cólera, e a bile amarela, aquela que faz a gente ficar com o pior e mais nefasto mau humor!

Mas com a licença poética que me concedeu minha preta velha, depois daquele dia, comecei a pensar em todos os nossos líquidos – mesmo os que não estão catalogados no Houaiss – como outra forma sublime de entender a magnificência da natureza ao criar, por exemplo, a lágrima.

Pode existir coisa mais poética do que uma lágrima? Aquele líquido límpido e salgado que verte de dentro da gente por dor ou emoção exagerada? Viviane Mosé já dizia que: um olhar de lágrimas cristalizadas é como um vidro de carro batido.

Suor acho meio nojento. Também é salgado e geralmente tem companhia de odores fortes de origens quase sempre duvidosas. A não ser o suor que vem do amor. Esse suor é santo. Dois corpos encharcados de suor podem ser considerados sagrados. Talvez porque se misturem aos líquidos do sexo: os fluidos vaginais e o sêmen. Nesses humores estão contidos todos os segredos da humanidade. Nossa origem, nossa semente, nossa evolução. Isso sem mencionar a saliva, o único humor que tem o poder de consagrar no beijo, a história de um grande amor.

Entender os humores do meu corpo me faz entender muito mais coisas do mundo. E principalmente desse pequeno planeta que habitamos. Se os humores da Terra forem como os humores humanos, dá para entender perfeitamente porque o planeta hoje chora mais… do que jamais choveu. Não dá?

Que a liquidez da compreensão possa a partir de hoje, expandir minha consciência. É por isso que vivo, é por isso que escrevo, é por isso que vim.

Experiência de amor

boanoite

Outro dia fiz uma viagem extraordinária na hora de dormir.

Foi só fechar os olhos que vi minhas duas pequenas, encolhidinhas na cama dormindo na maior tranquilidade do mundo.

Aproveitei a visão e dei um beijo de boa noite em cada uma delas. Daí lembrei dos meus sobrinhos, que dormem lindos de boca meio aberta, e imaginei os dois, cada um em sua cama, já adormecidos. Senti um amor profundo por eles dentro de mim, como se fossem meus filhos.

Então de repente, me deu um impulso de sair voando por aí, visitando pessoas da minha família, amigos pelo mundo, fazendo na verdade uma jornada interna, lembrando de todas as pessoas que eu amava e sentia saudade.

A experiência foi incrível. Porque consegui visualizar todas as pessoas que desejei. Aconchegadas entre travesseiros e cobertores, em estado profundo de sono, algumas encolhidas como minhas bonecas, outras espalhadas pela cama. Para cada uma eu inventei um jeito. Mas dentro de mim, o que batia forte – sempre – era essa divina possibilidade de poder amar a cada uma daquelas pessoas, num simples gesto de dar-lhes boa noite.

Foi umas das experiências de amor mais fortes que já vivi. Uma viagem que eu tenho desejado repetir todas as vezes que preciso me alimentar dessa egrégora que me fortalece, esse círculo de amigos de alma que eu ganhei da vida, que são hoje meu elo mais forte com o mundo.

O pentelho voador

mosquito

Poucas coisas nessa vida me tiram do sério. Inseto é uma delas.

Minha vida nova na casa nova é um paraíso. Apartamento térreo, predinho de quatro andares. O lugar é um sonho. Estou onde sempre sonhei estar. Num lugar tranqüilo, silencioso, rodeada de árvores por todos os lados, convivendo com passarinhos, corujas, flores de todas as cores… e insetos. Muitos insetos.

Tudo nessa vida tem um preço. E já tem um bocado de tempo que eu aprendi essa lição. Mas há alguns dias, quando completei um mês de vida na roça, tive meu primeiro surto psicótico no adorável condomínio de Bosques de Pendotiba.

Tudo por causa de um microscópico mosquito.

Gente, o que é um ser humano, adulto e inteligente, travar uma batalha de titãs com uma criatura ordinária como o mosquito? Foi uma cena patética.

No entardecer, é preciso fechar todas as janelas porque é no lusco-fusco, a hora em que os mosquitos procuram abrigo. Ok. Mas nossa… eu estava apaixonada pela brisa fresca que adentrava minha bucólica janela, iluminada pela lua cheia daquela noite. Pensava comigo no quão privilegiada era minha nova existência, ali deitada, no lugar mais calmo do planeta. Estava quase pegando no sono, quando ouvi o primeiro rasante da criatura no meu ouvido. Arrancada do momento mágico que antecede nosso primeiro soninho da noite, abri os olhos e pensei: “Cara, não acredito que tem um mosquito no quarto.”

Silêncio. Voltei a olhar para lua e a pensar que no fundo, estava tudo bem. Mosquitos fazem parte desse lugar encantador. Então, vagarosamente fui deitando na cama de novo, pesando a cabeça no travesseiro macio, quase embarcando na jangada dos sonhos, quando…

Zzzziiuuummmmm

Respirei fundo. Tentando me controlar, levantei devagar e fui fechar um pouco a janela. Voltei. Deitei. Outro rasante. Só que dessa vez do outro lado, no outro ouvido. Pronto. Agora eu tinha ficado irritada. Permaneci na cama imóvel e de olhos bem abertos, tentei adivinhar o próximo movimento do pentelho voador. Outro rasante. Foi quando eu dei um pulo da cama, acendi a luz e gritei para as paredes: “Cadê você seu desgraçado!”. Abri correndo o armário, peguei a raquete, liguei no ON e gritei de novo, para quem quisesse ouvir, provavelmente de olhos bem arregalados: “Agora eu quero ver você vir para cima de mim, seu mosquitinho de merda… vem! Vem que eu vou te fritar de uma vez só! ”

Louca. Louca. Louquinha de pedra.

Foi quando começou a guerra. A ridícula guerra entre um gigante e um micróbio. Corri atrás dele uns bons segundos até conseguir, numa jogada de mestre, incinerar o pobre coitado. Um cheiro de defunto invadiu o ar. Olhei o corpinho da coisa pulverizada no chão. Uma meia perninha. Um pedaço da cabeça. Senti culpa. Não pelo mosquito, que tem vida curta mesmo e nem merecia viver depois de me atormentar tanto. Mas culpa pela dimensão do prazer sádico que me deu ver aquela morte. Olhei para raquete e pensei: isso aqui é uma arma carniceira. Um jeito bem esquisito da gente entrar em contato com a nossa sombra mais maquiavélica.

Ainda bem que poucas coisas nessa vida me tiram do sério. Caramba.