Meu Novo Corpo

O corpo é a máquina que nos acompanha desde o primeiro momento em que somos cuspidos para fora do corpo da nossa mãe, até o dia em que voltamos para terra – no caso – a Mãe Terra. Um mesmo coração batendo ininterruptamente nesse mesmo corpo, uma vida inteira. Do girino até o último suspiro. Não é um troço incrível?

O corpo é um universo inteiro dentro dele, mas eu nunca tinha pensado muito nisso, antes de começar a envelhecer.

Quando a gente é jovem não pensa muito no próprio corpo: só usufrui dele. Tem muita energia, não usa protetor solar, não se cuida, sobrecarrega o fígado, não dorme, vira a noite, faz loucuras e sempre fica tudo bem.

Aí chega a hora de reproduzir. Pã! Hora de ter filhos.
As barrigas que trazem o milagre da nossa existência também serão as que mais vão nos cansar. Imaginem só: gestar, parir e depois criar a criançada toda? Não é brincadeira não. Tive duas e sei bem como foi.

Pois bem.

Ano passado eu fiz 50 anos. E achei um luxo fazer 50. Nunca me preocupei com pé de galinha nem com cabelo branco porque sempre achei rugas um charme e desde os 16 pinto meu cabelo de vermelho. Mas de repente, tudo começou a mudar. Sentimentos, sintomas e características físicas começaram a mudar meu corpinho da água pro vinho. E por mais que eu tenha consciência da efemeridade da vida, a ficha está demorando um pouco a cair.

É uma dor no joelho aqui, uma travada na lombar acolá. Os dez quilos que surgiram do nada (mentira: tudo cerveja, azeitona e amendoim) que acabaram virando umas curvinhas e dobrinhas que eu não reconheço no espelho. São os calores do climatério, as pintas brancas e marrons iguaizinhas da minha avó alemã, uma barriguinha desgraçada que nem com cinta se disfarça, as teias azuladas das varizes, o cansaço absurdo que eu sinto quando levanto da cama às seis da manhã. A preguicinha de sair no fim de semana, a melancolia sem explicação, as desculpas para não ir nadar, a disposição extraordinária que se precisa ter para uma noite de amor.

Outro dia passei na frente de uma vitrine, me olhei de longe e levei um susto. “Meu Deus! Será que aquela senhora ali sou eu?” E era.

Envelhecer…


Irene Ravache deu uma entrevista dizendo que não fez nenhuma plástica porque estava muito curiosa para saber como ia ficar enrugada. Achei genial. É assustador o que anda acontecendo com as jovens senhoras que estão com medo do tempo: estão todas ficando muito parecidas. Com a mesma bocona de Angelina Jolie e sem nenhuma expressão por terem se esticado. Será que elas não percebem que tirar as linhas de expressão vai justamente impedi-las de expressar-se? De ser quem são? E que as rugas são o registro físico de tudo aquilo que vivemos?


Ainda assim, estou aqui no meu processo de aprender a amar o meu novo corpo. Porque não sou mais a Tatiana gatinha, magrinha de 20 anos, que usava calça Saint-Tropez e dançava descalça nas festas até o amanhecer, mas também não sou a vovó fofinha e gordinha que serei aos oitenta. Que vai fazer muitos bolos, usar xale de tricô e contar histórias deliciosas para os meus netos. Me sinto agora como se estivesse num vácuo do tempo. Nem gatinha, nem vovozinha. Então, quem sou eu? Balzac escreveu sobre as mulheres de 30. Roberto Carlos fez música para as de 40. E as de 50? Ninguém vai homenagear não?


Meu novo corpo continua macio e cheiroso. Continua saudável e faminto. De amor e de vida. Talvez isso seja o suficiente para viver mais uns 30 anos. Mais 30 anos com o meu coração batendo sem parar. Nessa máquina mágica que abriga minhas histórias e minhas memórias. Não há nada mais lindo e digno do que envelhecer amando quem se é.

Recolhida

Adélia Prado tem uma frase que eu amo que diz assim:

“De vez em quando Deus me tira a poesia. Olho pedra, vejo pedra mesmo.”

Isso também acontece comigo e é muito estranho. Como se alma de repente se recolhesse e se negasse ao extraordinário. Tipo: cansei.

É bem assustador ser quem eu sou e não ver graça nas coisinhas miúdas do dia-a-dia. Porque eu não me reconheço. E me aguça ainda mais aquela velha sensação de que não sou daqui.

Dizem que é bom vez em quando recolher-se. Que a gente toma um fôlego desse mundo louco e se limpa um pouco de tanta informação, tanta história,  tanta emoção.

Existir para mim não é fácil. Vejo as pessoas existindo por aí tão facilmente. Tirando a vida de letra. Adoraria ser assim. Mas eu não sou. Para mim viver é uma luta diária. De sumô. Porque eu amo existir mas acho tudo bem esquisito. As pessoas são esquisitas, o que eu sinto é esquisito, o nosso tempo é esquisito.

Talvez o maior problema de me recolher e ficar quietinha seja o fato d’eu parar de escrever quando me recolho. Isso é fatal. Porque as ideias – que estão lá dentro de mim vivas, loucas para serem escritas e elaboradas e sentidas – ficam presas e começam a fermentar.

Daí danou-se. É azia, é enxaqueca, é prisão de ventre. Ficar sem escrever é mofar por dentro.

Mas como escrever quando Deus me tira a poesia? Eu não sei não. Por isso vim aqui hoje. Na força do amor. Para ver se conseguia espremer alguma coisinha.

É inverno, mas eu saí para ver o sol. Agora é pôr as ideias para quarar no varal, bater um papo com o carinha lá de cima e ver o que acontece.

Seja o que a gente quiser.

O máximo que consigo fazer

Tenho pensado em tantos projetos incríveis que rondam minha cabeça.

Mas o máximo que tenho conseguido fazer é um arroz com feijão com um legume e uma farofa, tirar o lixo e passar uma vassoura na casa.

Tenho planejado escrever pelo menos metade do meu livro até o fim do ano. Minha biografia. O livro tão sonhado.

Mas o máximo que tenho conseguido fazer é rabiscar umas frases no caderninho da cabeceira, dar conta da roupa suja e ir ao supermercado.

Está na lista o curso de meditação, começar a yoga, caminhar no condomínio. Até voltar a pensar na minha tão amada dança de salão.

Mas o máximo que tenho conseguido fazer é acender um incenso no fim do dia, tomar um Torsilax para a lombar e me alongar um pouco no chuveiro.

Tenho idealizado muito as viagens e as aventuras que quero fazer antes dos 50 anos. São tantos lugares para ir. Tantas coisas diferentes para viver!

Mas o máximo que tenho conseguido fazer é almoçar na Barra da Tijuca no fim de semana, caminhar no Muriqui e tomar um sorvete em São Francisco.

Tenho sonhado muito em encontrar equilíbrio. Achar o sentido da vida, o propósito da minha existência e o porquê de estarmos aqui.

Mas o máximo que tenho conseguido fazer é olhar o céu com devoção todos os dias, agradecer por estar viva e sobreviver. Ah! E escrever umas crônicas de vez em quando. Como essa aqui.

Onde estou

Se alguém me perguntasse “onde estou” há mais ou menos um ano atrás, eu saberia responder perfeitamente. Contaria da minha aventura de morar em Niterói há mais de 15 anos e ter me mudado para uma casa com céu no Bosque de Pendotiba. Falaria da missão de ser educadora e professora de teatro na Escola Nossa, do desafio e da alegria de ser mãe de duas meninas incríveis que transformaram completamente minha vida desde que chegaram. Contaria desse meu namorado companheiro com quem divido a vida há oito anos, e do filho dele que surgiu para mim como um presente. Falaria do meu sonho de ser escritora e da gratidão que sinto pela família que ganhei e os amigos que conquistei ao longo da estrada. Enfim!

Há um ano atrás eu sabia exatamente onde estava.

Mas hoje, um ano depois que as nossas vidas foram tomadas por essa pandemia e essa doença que ninguém conseguiu decodificar ainda, eu confesso que estou mais perdida do que jamais estive.

A sensação que eu tenho é que essa doença veio para virar a gente do avesso e colocar à prova tudo o que somos desde que nascemos.  

Então, responder “onde estou” hoje significa assumir que acordo de manhã e a primeira coisa que faço é recalcular a rota diante das notícias, para que o fim do dia chegue ao mínimo planejado.

Nunca fomos tão desafiados. Testados. Beliscados pelo destino.

Nunca tivemos tanta certeza de como não dá para ter certeza de nada.

Então, seu eu me pergunto “onde estou” hoje, posso responder pelas próximas 24 horas no máximo.

Estou aqui na minha casa, agradecendo quando acordo saudável e com a notícia que minha família e amigos também acordaram saudáveis. O resto do dia eu sigo tentando fazer tudo. Tentando dar a melhor aula online possível, tentando fazer um almoço nutritivo para gente, tentando dar conta das infinitas atividades domésticas que eu não tenho cabeça nenhuma para fazer. A tarde sigo tentando fazer alguma coisa de útil pela minha saúde emocional, depois tento dar uma boa aula presencial para os alunos que, como eu, estão se aventurando a estar na escola presencialmente. Depois passo no supermercado, tento pensar num lanche divertido, depois chego em casa, tento tomar um banho para tentar relaxar, depois tento escrever um pouco para tentar colocar para fora tudo que estou sentindo e depois vou para cama, tentar dormir. Mas essa tentativa tem sido a mais frustrada de todas.

Nunca tive tanta insônia como agora.

Então, é isso. No meu texto de hoje sobre “onde estou” o resumo é que estou tentando desesperadamente sobreviver a esse tsunami que virou nossa existência.

Alguns dias com sucesso nas tentativas, outros muito frustrada por só ter conseguido acordar/viver e voltar a dormir, sem nenhum acontecimento mais emocionante ou louvável para compartilhar. Mas é isso, pessoal. Tempos de guerra.

Amanhã é um novo dia. Eu vou seguir tentando. Quem sabe nas minhas próximas 24 horas tudo pode mudar. Sigamos… fortes! Não há nada que possa nos ajudar mais do que a esperança de acreditar que dias melhores virão.

Tô me agarrando nisso, gente. Aho!

De onde eu vim

Há um tempo atrás um senhor veio fazer um serviço elétrico aqui em casa. Era muito simpático e falante. Conversamos sobre muitas coisas e ele era tão querido, que lhe ofereci um cafezinho com pão e manteiga. Era fim da tarde. Os finais de tarde pedem um café com pão quentinho. Quando terminou, disse assim:

– Me desculpe perguntar, mas a senhora é mineira?

Eu respondi surpresa:

– Sim! Como é que o senhor adivinhou?

– A senhora tem todo jeitinho de mineira. Inda mais depois desse cafézim com pão que a senhora me serviu, isso é coisa de mineiro.

Eu sorri. E pensei comigo como voltar a Minas era um dos sonhos que eu ainda não tinha realizado nessa vida.

Eu nasci em Belo Horizonte. Mas saí de lá pequenininha, com três meses de idade. Mas pelo visto, Minas continuava a existir em mim de um jeito ou de outro.

Minha infância passei quase toda em Teresópolis no meio do mato e isso deve ter sido outra coisa que formou meu jeito de ser.

Crescer na terra faz a gente ser de um jeito bem diferente de quem cresceu na cidade grande.

Mas a grande verdade mesmo da minha história, da minha origem, é que essa sensação de inadequação no mundo sempre me acompanhou. Desde que me entendo por gente. Foi preciso muito tempo de terapia e uma compreensão maior da espiritualidade, para eu finalmente entender que tinha vindo lá de cima, lá do povo das estrelas e que por isso o mundo me parecia tão incompreensível. Isso existe sabia gente? Tem muita gente que anda por aí que não é daqui.

Bom, isso explicou muita coisa sobre a minha trajetória de vida. Uma delas é essa busca frenética e apaixonada por decodificar o ser humano e esse lugar esdrúxulo que coabitamos chamado Planeta Terra. Passei a vida flertando com a arte, mas foi na escrita que eu encontrei meu caminho, minha melhor e mais afiada ferramenta para estar aqui.

De onde eu vim não existe maldade. Não existe dinheiro, nem ganância, nem esse monte de sombra que esse mundo aqui tem. Mas tá beleza. Eu já entendi que estou encarnada e que ainda tenho um monte de coisa para fazer. Uma delas é voltar a Minas. Qualquer hora eu chego lá…

DesEsperança

Hoje acordei muito triste pelas notícias que correm nesse nosso Brasil.

Não há como estar bem com a situação desesperadora que vivemos.

Por mais que eu tente, não estou conseguindo trazer leveza ou poesia para um momento tão crítico e chocante.

Tento, tento, mas não consigo entender de que são feitas essas outras pessoas que coabitam o mesmo espaço e tempo que eu.

Se há dois anos eu me choquei com a ruptura que vivia o país que nos dividiu nas urnas, hoje tenho a mesma sensação quando saio nas ruas e vejo pessoas sem máscaras, lotando barzinhos e vivendo suas vidas como se nada fosse, como se não estivéssemos na pior fase da pior pandemia que a nossa geração já viveu.

Eu não consigo me conformar, não consigo entender. Não consigo aceitar que falte tanta empatia e compaixão à tantas pessoas.

Me lembro que quando fiz a formação em Constelação Familiar (prática terapêutica que busca resolver conflitos familiares através de gerações) uma das coisas que mais me marcou foi uma fala do Bert Hellinger (criador da técnica) sobre o Brasil. Ele costumava dizer que para sermos um país próspero e saudável, precisaríamos constelar infinitamente tudo que fizemos de mal aos nossos antepassados. Que sem essa ação de “limpeza” e cura sistêmica, o Brasil nunca iria para frente. Tudo que fizemos aos nossos indígenas, tudo que fizemos aos negros escravizados ao longo de séculos… será que hoje vivemos essa cegueira coletiva por um retrocesso energético de todo mal que já derramamos em nossa terra?

Quando nosso atual presidente foi eleito, meu susto foi tão grande que eu fiquei em choque por semanas. Liguei para minha terapeuta e pedi se peloamordedeus ela tinha como me dar uma explicação simplificada sobre essa loucura que estávamos vivendo. Foi quando ela disse com sua tradicional calma e clareza: “O Brasil merece esse presidente. O povo vai precisar passar por essa provação para entender quem é e o que fez.”

Uau.

Depois disso eu fui tentando sobreviver. Fui fazendo o meu melhor aqui no micro da minha existência. Mas quando a pandemia chegou dividindo de novo o nosso país em dois tipos de brasileiros, volto a me perguntar por que diabos eu tinha que encarnar aqui. Caramba. Por que não nasci na Nova Zelândia?

Tá. Eu já sei a resposta. Porque nós temos trabalho a fazer aqui… Mas que loucura.

Eu sei.

Eu já sei o que a minha consciência vai falar: agradece. Agradece Tatiana. Agradece sua saúde, a sua consciência. Agradece sua casa, seu alimento e sua chance de lutar todos os dias. Agradece não ter perdido ninguém da sua família para essa doença. Agradece estar viva e poder lutar.

Já tenho a palavra Coragem tatuada em mim.

Acho que tá na hora de tatuar a palavra Esperança.

Planner da Alma

Janeiro a gente tem uma energia bárbara para recomeçar.
Por mais que a gente tenha aprendido que não dá para fazer mil promessas de mudança no ano novo, não dá para negar que tem uma força cósmica de abertura para novos propósitos e acertos do que ainda sonhamos fazer.

Aí a gente corre para comprar uma agenda nova, daquelas cheirosas e em branco que vê na prateleira da papelaria e se apaixona, como se aquele objeto pudesse conter todas as nossas chances de recomeçar do zero e sonhar com a nova vida que mora dentro dela.

Faço agendas desde os meus 10 anos de idade. Naquela época contava com detalhes meus dias vividos como se a vida fosse um filme a ser compartilhado com o mundo. Tenho até hoje as agendas que tive até parir as meninas. Um verdadeiro tesouro para minha futura biografia.

Agora existem os planners. Agendas ainda mais estilosas e feitas sob encomenda para nos dar ainda mais esperança de conseguirmos nos organizar com os planos da vida. Uma coisa.

Pois bem.

Mas não era exatamente sobre isso que eu queria falar.

Ontem, olhando um tempão para um fila de formigas extraordinária que atravessava meu terraço, eu pensei no quanto não nos planejamos, ou abrimos espaço, para os compromissos da alma. Sim, porque as agendas e os planners da vida guardam todos os encontros importantes, compromissos de trabalho, reuniões, lembretes de consultas de médicos, listas das infinitas tarefas que precisamos dar conta no nosso dia-a-dia, mas não contempla um único espaço para a demanda do que anseiam fazer nossas almas.

A gente precisa lembrar do oftalmologista? Claro que precisa. Mas e parar para ver o pôr-do-sol? Não deveria ser tão importante quanto?

John Lennon dizia uma frase perfeita sobre isso: “a vida é aquilo que acontece enquanto você está fazendo outros planos”.

Talvez a gente pudesse pensar a partir de agora em fazer um Planner da Alma também em janeiro. O que vocês acham?

Abrir uma agenda para as demandas da alma. Compromissos que a gente pudesse honrar com tudo aquilo que a nossa alma deseja, mas nunca encontra tempo para fazer. Por exemplo: dar um mergulho no mar. Ir a praia e escutar o vento. Ir tomar um sorvete com um amigo e pedir para ele escolher um sabor surpresa. Planejar um banho de cachoeira por semana. Marcar hora para um banho bem relaxante e cheiroso. Rever o filme que mais amamos nos últimos tempos, só para curtir de novo o sentimento maravilhoso que ele nos deixou. Meditar olhando a chama de uma vela. Comer um milho verde na barraquinha da esquina. Dançar uma música bem alta em casa sozinha. Tocar tambor. Assoviar na janela. Ir em busca de um pomar para colher uma fruta do pé. Tomar banho de chuva. Tirar uma soneca sem culpa de tarde. Bater um bolinho só pelo cheiro que vai deixar na casa. Nossa… minha lista não tem fim.

Cada alma sabe exatamente o que anseia fazer. Elas vivem nos dando dicas do que desejam, mas a gente quase nunca tem tempo para elas.

Algo muito profundo em nós vai agradecer. Disso eu tenho certeza. Afinal, a vida não é feita só de compromissos. Muitas vezes, ganhamos vida quando perdemos tempo. E isso, só a alma sabe fazer direito. Mais ninguém.

Eu só sei sentir

Dizem que o homem não vale pelo que é nem pelo que tem. Mas sim para o que serve.

Acho essa frase um soco na boca do estômago, mas ela me faz pensar.

Outro dia, desesperada com as contas para pagar, eu subi no terraço e fui olhar o céu para ver se me acalmava. Naquele exato momento, o sol estava se pondo e as cores do céu estavam explodindo nuns laranjas misturados com uns violetas. Tinha umas nuvens carregadas de branco e um cinza chumbo, porque estava armando uma chuva daquelas de fim de tarde. Tudo aquilo parecia uma enorme e deslumbrante tela abstrata que Deus tinha acabado de pintar. Fui tomada por uma emoção indescritível. Tive vontade de chorar, de gritar, de chamar as meninas, de tirar uma foto ou sentar ali mesmo com um bloquinho e uma caneta para ver se eu conseguia traduzir em palavras o que eu tava vendo.

Dinheiro para pagar as contas eu não tinha.

Mas tinha um céu inteiro explodindo em cores na minha frente. Só para mim.

Depois que a coisa passou eu pensei:

“Como é que pode um pôr-do-sol me fazer sentir tantas coisas?”

Foi quando um pensamento me invadiu: porque eu só sei sentir. Aliás, sentir é o que sei fazer de melhor nessa vida. Sentir e eternamente tentar traduzir aquilo que sinto. Ia ser bem legal se um dia alguém me oferecesse um emprego só para sentir.

Porque se eu não valho pelo que sou nem pelo que tenho e sim para o que sirvo, eu sirvo para sentir. Isso devia existir no mundo!

Já imaginaram? Eu preenchendo uma ficha de cadastro? Profissão: SENTIR.

Tem um provérbio xamânico muito lindo que diz:

Sinto, logo compreendo.

Esse é o meu lance com a vida.

Talvez por isso não seja considerada pelo mundo como uma pessoa de sucesso. Quase não consigo pagar minhas contas, não tenho casa própria, não acumulei propriedades nem bens.

Mas sei sentir as coisas mais extraordinárias e esdrúxulas e inexplicáveis que um ser humano já sentiu. Isso deve ter seu valor, não?

Em algum mundo deve ter. Só não descobri qual.

Perdigotos da Alma

Arte de Anne Marie Zilberman

A vida às vezes se revela de forma estranhíssima. Mas é preciso estar atento e forte para decodificar os sinais, por mais esdrúxulos que eles pareçam ser.

Tudo começou na semana passada quando Catarina reclamou comigo, amorosamente, que eu agora tinha dado para cuspir enquanto falava.

Depois de fazer cara de nojo e rir, pedi desculpas para ela e disse que era um movimento involuntário. Que eu nunca tinha percebido isso em mim. Mas que ficaria atenta.

De noite comentei com Edu sobre o episódio e ele danou a rir. E confirmou que já tinha reparado que de uns meses para cá eu andava cuspindo para falar.

Cruzes, eu pensei. Troço mais nojento alguém que cospe para falar.

Dali em diante passei a me policiar. Até que um dia consegui confirmar o crime. Vi com nitidez o perdigotozinho ser expelido da minha boca. Que coisinha nojenta. Na hora me deu muita vontade de rir.  Depois me veio uma enorme curiosidade de entender, porque de um dia para o outro, eu tinha começado a cuspir para falar.

A resposta veio de uma forma mágica e surreal, como quase tudo na minha vida.

Eu estava folheando meu livro de cabeceira, “A Doença como Símbolo” de Rüdiger Dahlke (Pequena Enciclopédia de Psicossomática) a procura das possíveis causas emocionais da pressão alta do meu namorado, quando dei de cara com a palavra PERDIGOTO no dicionário.

– É agora, pensei comigo. É agora que eu vou entender esse cuspe na minha vida.

Qual foi o meu choque ao me deparar com o que estava escrito. Como um soco na boca do estômago, ou um safanão na cara daqueles de novela, as causas emocionais dos perdigotos me jogaram num vazio existencial profundo.

Lá dizia:

“Plano corporal: boca (expressão). Plano sintomático: cuspir ao falar, cuspir nos outros durante uma conversa: expressar agressividade inconsciente, fala molhada, fala da alma: a carência de uma participação anímica interior torna-se visível. Tratamento: tomar consciência dos planos que inconscientemente vibram junto com a fala, proporcionar válvulas libertadoras à alma em sua própria expressão, conceder espaço aos conteúdos que vem através dos modos de expressão.”

Gente! Que loucura!

Eu tô cuspindo nas pessoas porque não escrevo, porque há meses não expresso meus turbilhões internos, não dou vazão às questões da minha alma e não escrevo mais.

Caramba.

Caramba.

Aquilo foi para mim um dos maiores insights dos últimos tempos. Sem terapia, eu tinha conseguido sozinha entender de onde estava vindo tanta tristeza, apatia, desânimo, confusão mental e cuspe: falta de escrita.

As minhas desculpas são sempre as mesmas. Falta de tempo, excesso de demanda. Mas a verdade é que nos últimos meses desse conturbado ano de 2018 a gente tem vivido uma depressão coletiva. Com tudo que tá acontecendo fora, tem sido difícil acessar o dentro. Porque essa coisa de matar um leão por dia cansa muito. E quando eu chego em casa de noite, só penso em comer, tomar banho, engolir uma melatonina e cair dura na cama. Acho que esse processo é um desejo inconsciente que o sonho resolva para mim, tudo aquilo que eu não consigo resolver na realidade. Não é a toa que tenho tido tanto pesadelo. Mas enfim.

A verdade nua e crua é que talvez eu precise entender que muito mais importante do que dormir, seja despertar. E que escrever seja uma forma de salvar-me desse apocalipse que a gente tá vivendo. Há um peso generalizado. Da violência, da crueldade. Da impunidade, da falta de perspectiva de mudança.

Essa semana eu tive uma visão que estava perdida em alto-mar. Completamente sozinha. De longe eu me via, e não sabia o que fazer para me salvar. Até que a frase do Ferreira Gullar me chegou como um bote salva-vidas: a arte existe porque a vida não basta.

Pronto. Foi o que bastou para eu acordar e perceber que não dá para ficar cuspindo nas pessoas. Eu preciso escrever para entender o mundo. Eu preciso escrever para não morrer. Eu preciso escrever porque em algum lugar da minha alma, eu sinto que ao expor meu coração, eu ajudo a alguém a ter coragem de fazer o mesmo. É preciso encontrar uma forma de salvação em meio ao caos que vivemos. É preciso acreditar que a esperança é a última que morre. E quem sabe até, acreditar que a esperança não morre. Jamais.

Carta aos meus pés

Meus queridos pés,

Caminhamos juntos há quase quarenta e quatro anos.

Chegamos a esse planeta num parto rápido e indolor, num país chamado Brasil, mais precisamente nas terras de Minas Gerais, no outono de abril de 1973.

Não demoramos muito a nos firmar no chão. Nossos primeiros passos foram dados em Teresópolis, numa solitária casinha no Vale São Fernando.

Nossos primeiros anos foram preciosos.

Nos refrescávamos em riachos, pisávamos felizes em pedrinhas, grama verde e chão de terra batida. Corríamos livres por colinas e bosques. Subíamos em árvores altas, escalávamos montanhas, percorríamos nosso pequeno mundo com curiosidade. Tínhamos muita coragem.

Crescemos e fomos parar na cidade grande. Estranhamos muito o Rio de Janeiro. A dureza do asfalto, a pressa das pessoas, a ausência dos vaga-lumes. Mas nos encantamos a primeira vez que pisamos na areia da praia de Ipanema. Encontramos o mar e o mar nos curou da saudade da terra.

Foram anos bonitos também.

Andávamos de patins, de bicicleta. Aprendemos a dançar, a gostar da cidade, tínhamos muitos amigos. Até que um dia encontramos um solo tão precioso para nós quanto um dia tinha sido a terra. Lembram? Foi quando pisamos num palco de teatro pela primeira vez. Depois de muitos anos, tínhamos encontrado de novo um lugar no qual nos sentíamos em casa.

Foram anos emocionantes.

Brincávamos de ser outros pés, de existir de outras formas. Sonhávamos acordados, voávamos para onde queríamos. Descobrimos que a vida era sonho e que sonhar também podia ser uma forma de caminhar pelo mundo.

Mas o tempo passou. E o tempo nos trouxe o tempo de carregar outros pés dentro de nós. Colocamos no mundo dois pares de pezinhos encantadores. E encontramos de novo o sentido de existir.

Foram anos incríveis. E muito trabalhosos também.

Porque passávamos quase o tempo todo ou alimentando os pezinhos ou correndo atrás deles. Acho que nunca podíamos imaginar o que significava colocar outros pés no mundo.

Foi quando a vida nos levou a percorrer outros solos do nosso país. Fomos para São Paulo, para Joinville. Mudávamos de endereço como quem muda de sapato. Buscávamos alguma coisa que nunca encontrávamos.

Foram anos estranhos.

Até que chegamos a Niterói. Cidade que vivemos hoje. E durante muito tempo aqui fomos felizes. Até que vocês adoeceram.

Há mais de um ano, vocês passaram a sentir muitas dores para caminhar. No início, a dor acontecia somente na hora de sairmos da cama. Eram os primeiros passos depois do sonho que nos faziam sofrer. Mas com o passar dos meses, a dor no caminhar foi se transformando em algo constante e muito angustiante para nós.

Falo com vocês, tento entender o que sentem, mas nenhum dos dois parece me ouvir. É onde nós estamos que vocês não querem mais estar? É por onde caminhamos que vocês não querem mais caminhar? A dor paralisou vocês e eu preciso entender por que.

Temos vivido um período de profunda tristeza. Cuido de vocês com toda a dedicação. Já fiz de tudo que podia. Tudo que estava ao meu alcance. Massagem com cremes, banhos de óleo com canela. Salmoura com ervas. Gelo úmido. Comprei sapatos confortáveis. Tomei anti-inflamatórios, babosa, florais. Encomendei pantufas coloridas. Toalhas felpudas para secar vocês. Fiz fisioterapia com bolinhas, moxabustão. Fiz carinho. Escrevi em vocês palavras de amor e cura. Os abracei com amor. Mas nada parece ajudar.

Meus pés, meus queridos pés

O que é que vocês estão tentando me dizer com essa dor que não cessa nunca? Que vocês não querem mais caminhar? Ou que não suportam mais o caminho que escolhemos trilhar?

Será que não nos enraizamos o que precisávamos para estar aqui? Será que nunca ancoramos na Terra como deveríamos? Ou será que precisamos agora de asas para voar?

Meus pés, falem comigo. Me digam o que preciso fazer para que parem de chorar.

Sei que sentem falta do tempo que andávamos livres por riachos e também sentem saudade dos palcos da vida. Mas será que são essas ausências que fizeram vocês adoecerem? Me deem uma pista do que posso fazer. Por vocês… por nós.

Se estamos vivos, é sinal de que nossa missão ainda não chegou ao fim.

Mas não me deixem aqui sozinha. Caminhar sem vocês não faz sentido algum. Porque não conseguirei caminhar por inteiro. E muito menos ser feliz.