O café com leite da Ari

E por falar em conversinhas com Deus, outro dia minha amiga e parceira Arianne me contou que tomava doze canecas de café com leite por dia. Levei um susto. Mas ela arrematou. “É meu jeito de me encontrar com Deus.”

Gente, achei essa uma das declarações mais bonitas que eu já ouvi na vida. E parei para pensar que essa coisa de querer ser “catadora de lindezas” no fundo, no fundo, é um pouco isso: esse desejo incessante de de querer encontrar com Deus.

Quando escrevi “Onde Habita Minha Alma”, aquela lista nada mais era do que um mapa do tesouro para encontrar com o Criador. Não que eu o perca de vista de vez em quando. Não. Deus está em mim e em todas as coisas. Mas foi o que disse ontem, as vezes eu fico surda. E essa possibilidade de ter um mapa, de poder ter um encontro mais íntimo com ele, mais tête-à-tête, me faz encontrar um pouco de sentido nessa coisa mega sem sentido que é a vida.

Meu pai é ateu. E eu tenho um monte de amigos que não acreditam em Deus. Tá tudo certo. Aos 44, finalmente entendi que não preciso convencer ninguém de nada. Mas também entendi que não preciso me desculpar por ter essa facilidade de comunicação com o cara.

Guimarães Rosa dizia que a “felicidade se acha em horinhas de descuido”. Eu vou além. Eu acho que em horinhas de descuido, eu sou como a Ari, que encontra Deus dentro do seu cafezinho com leite.

Esse texto é para você minha amiga, que me ensina tanto sobre a vida, todos os dias.

O ancião de barro

Comprei um filtro de barro esses dias.

Depois de passar anos sonhando com essa peça de museu, outro dia achei uma loja no centro de Niterói que tinha um com preço ótimo. Trouxe o bichinho para casa com o amor e o cuidado como quem traz um filho recém-parido da maternidade.

Os primeiros dias foi uma história de amor. A gente não parava de se namorar.  Era eu passar pela cozinha que queria fazer um carinho nele.

Passada a primeira semana, comecei a perceber que ele era um pouco lento na filtragem. O vendedor tinha me alertado sobre isso, disse que a vela demorava um pouco para ganhar velocidade.

Esperei mais uma semana.

Duas.

Três.

Com um mês de filtro, a paixão começou a virar irritação. As meninas começaram a reclamar de falta de água, eu perdia a conta de quantas vezes já tinha enchido e esvaziado a botija e no frigir dos ovos, estava comprando mais garrafas d’água na padaria do que pão.

Foi quando me deu o clique.

Eu tinha sentado para tomar um café na mesa da cozinha, de tarde, sozinha. E enquanto esperava o café esfriar na xícara, olhei fixamente para o filtro. Com a mesma raiva embotada de antes. Até que o mundo ao meu redor escureceu. E o filtro, sozinho no meu campo de visão, sussurrou o que eu precisava ouvir. E eu entendi. Entendi tudo.

O filtro não era só um filtro. Era um retrato do tempo. Não como uma ampulheta, mas como um velho ancião, um sábio, que chega à vida da gente para nos ensinar lições profundas sobre a existência.

Eu senti vergonha de mim. Da minha pressa, do meu imediatismo, da minha surdez. Aquele filtro tava tentando, há mais de um mês, me ensinar que por mais que eu tente, por mais que eu corra, por mais que eu queira o tempo não vai ser o tempo que eu quero que ele seja. O tempo é do tempo que as coisas precisam para ser. Para existir.

Como a mãe que espera para ver o filho nascer, o arco-íris que espera a chuva cair, uma planta que espera para florescer, um dia que espera a noite chegar, uma lua que espera para mudar, uma maré que espera para encher, uma vela que espera para queimar, um fruto que espera para amadurecer, uma vida que espera para findar.

A gente não tem mais tempo de esperar. A gente quer a vida depressa, a gente quer a vida pronta. Tem microondas para descongelar o feijão. Tem despertador para acordar da ilusão. Tem Waze para cortar o trânsito, tem Whatsapp para encontrar as pessoas, tem Facebook para validar a vida. A gente tem isso tudo, mas tempo, isso a gente não tem mais.

Depois desse dia, passei a olhar para o filtro com uma enorme gratidão. Porque ele estava ali, na minha cozinha, para me lembrar todos os dias, que eu não preciso correr tanto para viver. E que para ser – ser num sentido mais profundo de existir – eu vou precisar mesmo caminhar no contra fluxo do mundo. Mesmo que isso seja difícil. Mesmo que todo mundo me estranhe.

O que está posto não muda. O que muda é o nosso jeito de caminhar. O nosso poder de escolha. Eu escolho por uma vida menos acelerada e mais cheia de sentido. Eu escolho filtrar e deixar para trás tudo aquilo que me não me alimenta e não me faz bem. Eu escolho desacelerar minha corrente sanguínea, meu batimento cardíaco, para simplesmente voltar a ter algum tempo.

Pensar que no dia que comprei o filtro de barro, estava comprando de volta a minha liberdade.

A vida é maravilhosa.

Os vizinhos do bloco 13

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Eu tenho um olfato de vampira.

Sou assim desde pequena. Sinto o cheiro da chuva muito antes da chuva chover. Reconheço perfumes de amores antigos em pessoas desconhecidas nas ruas. Percebo de muito longe quando alguma coisa está queimando, ou quando tem algum legume na geladeira querendo estragar. Se tivesse desenvolvido esse dom, poderia ter me tornado uma perfumista ou uma sommelier. Não teria sido nada mal. Dizem que é um dos trabalhos mais bem pagos do mundo: “ser um nariz apurado”. Claro que esse dom tem os dois lados da moeda. A parte boa é ser feliz por reconhecer de longe um bolo assando num fim da tarde, e a parte terrível é sentar ao lado de alguém no metrô e perceber que, mesmo de boca fechada, a pessoa tem um bafo de bode.

Mas enfim.

A questão é que desde que me mudei para o bloco 13 do meu condomínio, tenho sofrido muito ao entrar e sair do prédio. Todos os dias vivo um martírio sem fim. Porque eu não sei o que acontece, mas me parece que nesse bloco estão reunidos todos os Chefs Gourmets do Bosque de Pendotiba. É sério. Eles são os reis da culinária afetiva. Não há uma só vez que eu entre no bloco e não precise parar, antes de pegar o elevador, para tentar identificar a maravilha que está sendo preparada numa daquelas cozinhas. O cheiro é tão bom, tão bom, que me dá vontade de chorar. Ou bater na casa de um dos vizinhos e dizer que esse tipo de coisa deveria ser proibida no estatuto do condomínio.

A impressão que me dá é que lá dentro estão sendo preparados verdadeiros banquetes. Que numa das cozinhas deve ter uma Babette preparando uma festa para seus convidados. São sopas apetitosas. Assados, bolos, pudins. Molhos fumegantes. Odores encharcados de temperos, ervas, azeites. Comidas feitas com amor, daquelas que só são feitas em casas felizes. Um cheiro pode falar muito sobre uma casa. Ele pode ser a condensação de um pequeno universo. O resumo de um lar. A essência de uma família. Casas cheirosas são o retrato da harmonia. Do feng shui que deu certo.

Meus vizinhos do bloco 13 devem ser pessoas incríveis. Só podem ser. Acho que qualquer dia vou tomar coragem e me convidar para jantar. Tentar trocar um prato de comida por uma poesia. Será que alguém aceita?

Ahhh. Tomara meu Deus. Tomara.

 

Para quem não viu esse filme, dica imperdível:
A FESTA DE BABETTE

Eu era madame e não sabia

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Marly foi embora e com ela todo um tempo de monarquia doméstica onde vivi os últimos quinze anos da minha vida.

Não foi ela que quis ir embora. Fui eu que a demiti, por razões logístico-financeiras muito complicadas para serem explicadas aqui. Mas só hoje, um mês depois de sua partida, é que eu me dou conta da dimensão dramática do que isso significou para a minha vida.

Dos tempos áureos de Rainha do Lar hoje só me restam alguns trapinhos velhos, muitas tupperware sem tampa, algumas vassouras esgarçadas e a certeza de ter sido somente uma Maria Antonieta para o meu pobre reino nesses últimos anos. Sinceramente, eu não sabia de nada do que se passava por aqui. Abastecia a dispensa de brioches e achava que isso já era o suficiente.

Empregada doméstica é uma faca de dois legumes. Ela cuida de tudo para nós, é uma maravilha. Toma posse das funções maçantes do dia-a-dia, limpa-lava-e-passa, te alimenta, dirige sua vida e te enche de ilusões do quanto você é livre. Mas a coisa não é bem assim. O preço que se paga por essa liberdade é bem maior do que um salário mínimo e taxas. Para ter uma auxiliar administrativa cuidando de tudo que é nosso, a gente paga o preço incalculável de distanciar-se de tudo aquilo que nos restaura e fortalece, isto é, o nosso próprio lar.

Lar. Uma palavra tão pequena e tão querida. Palavra quentinha, macia e cheirosa. Que traz em si – imagine – todo o conceito de conforto existencial. Mas se a nossa casa é o nosso abrigo mais precioso, não seria mais correto cuidarmos nós mesmos dela? Desde que Marly foi embora fui obrigada a voltar a olhar para tudo do meu cotidiano com um novo enfoque. Olhar – não só no sentido de enxergar – mas num sentido de examinar tudo ao meu redor com mais profundidade, como se pela primeira vez em muitos anos, eu pudesse voltar a observar o espaço onde habito. Sabe quando a gente passa muito tempo viajando e quando volta, tudo parece diferente? Pois é. Essa foi a sensação que eu tive na primeira segunda-feira que me vi cara a cara com a minha casa super ultra mega bagunçada do fim de semana.

Tenho quase certeza de que segunda-feira é um dia complicado para todo mundo. Quando tudo precisa voltar para o lugar e a nossa alma ainda está cochilando a soneca de domingo. A gente precisa pensar no cardápio da semana, fazer supermercado, trocar a roupa de cama, as toalhas, fazer faxina, colocar a casa em ordem. Nossa, as minhas segundas-feiras sempre foram dias muito difíceis para mim. E a coisa toda agora piorou muito já que não tenho mais a minha salvadora virando a chave da porta bem cedinho de manhã, para tomar as rédeas do caos que eu mesma criei.

Eu não tenho mais essa salvação. Não tenho mais Marly. Agora sou só eu. Eu e Deus. E Agepê no som, porque se é para fazer faxina que seja ouvindo Agepê. Descobri que varrer a casa cantando “Deixa eu te amar” dói menos. Bem menos. E assim eu tenho passado o meu tempo: batendo cabeça, tentando me entender nas funções, cantando para não chorar. Fazendo listas e mais listas do que preciso fazer. Tentando priorizar o essencial, mas perdendo um tempo enorme limpando dispensa, arrumando armário, jogando muita coisa fora. Numa boa, empregada tem uma mania muito estranha de guardar coisinhas. Paninhos, potinhos, tampinhas. Ferrinho de amarrar pão. Pedacinho de Bombril. Eu odeio Bombril! No dia que Marly foi embora joguei fora todas as bolinhas de Bombril enferrujadas que ela guardava. Troço nojento.

E agora – agora assim muito recentemente – eu tenho percebido uma mágica acontecer. Depois de ter mexido na casa toda, deixado tudo do meu jeito, com a minha energia, passei a fazer as coisas com um cuidado diferente. Tipo: quando vou passar roupa, passo roupa fazendo disso um momento único. Nada de mau humor ou má vontade. Se é para passar roupa, que seja com tempo e calma. Porque assim aproveito um pensamento amarrotado e passo também. Cozinhar? Hora de mergulhar nas cores dos legumes e no perfume dos temperinhos. É para picar cebola? Então faço isso com gosto. Viajo na cor da cebola, no jeito da cebola, nessa coisa dela me fazer chorar. E aproveito pra chorar aquele choro que tava escondido em mim e eu nem sabia. Lavar louça? Essa parte é difícil, porque eu não gosto muito de lavar louça. Mas to reaprendendo. Lavar louça é um pretexto danado de bom para lavar saudade. Ou um sentimento ruim. O detergente tem feito milagre nas minhas agonias. É isso. Descobri que qualquer ação feita com devoção é uma espécie de meditação. E se eu sempre precisei desse momento de pausa para me equilibrar e nunca encontrei por falta de tempo, agora foi o tempo que encontrou um jeito de cuidar de mim. Sem cobrança, sem aflição. Só com sabão, vassoura, esponja e esfregão.

Marly foi embora. E dela agora só me resta a saudade de duas coisas insubstituíveis: o abraço que ela me dava quando eu tava triste e o seu incrível pudim de leite. O mais macio e perfeito pudim de todos os tempos.

As divinas azeitonas

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Eu só tenho três azeitonas para comer. Apenas três. Elas e uma taça de vinho.

E é nelas que está contida toda a minha inspiração para falar sobre um assunto muito sério para mim: a magnitude das azeitonas. Tenho um amigo que diz que sou muito exagerada no meu uso de adjetivos. Eu concordo. Mas como é que eu vou conseguir me controlar se o que eu quero esta noite é falar sobre azeitona?

Essa tal de Wikipédia revoluciona minha vida. Fui pesquisar sobre as azeitonas e levei um susto quando descobri que as pretas são as verdes envelhecidas. Questão de metamorfose. Gente, eu não sabia disso! Será que todo mundo sabe? Enfim, prefiro senti-las como o vinho… quanto mais amadurecidas, melhor. Sim, porque sempre tive predileção escancarada pelas pretas. As verdes são incríveis, principalmente aquelas gordas. Mas as pretas, ah… as pretas. Elas tem uma maturação no sabor, uma textura carnuda, um paladar visual. Elas me levam diretamente ao Mediterrâneo, ao seu calor e sol e casas brancas com janelas azuis. Dizem as más línguas que é super hiper mega calórico. Imagina só se alguém me vê com um pão entupido de grossas fatias de azeitona na mão? Vão pensar que enlouqueci. Quem liga para caloria quando se é feliz?

Essa coisa de gulodice misturada com avareza é coisa séria. Pecado brabo. Só pode ser. Uma vez eu quase morri por causa de uma azeitona verde. Eu estava dando uma festa de aniversário em casa e obviamente, ganhei de presente um pote de azeitonas verdes argentinas, daquelas enormes. Coloquei numa cumbuca algumas para servir junto dos petiscos. Comi uma. Como duas. Na oitava achei que devia parar. Eu queria prolongar aquele prazer. E no mais, estavam todos avançando na minha azeitona. Pois bem. Coloquei a cumbuca na geladeira e voltei para sala. Alguém pediu uma cerveja e eu fui buscar. Abri a geladeira, peguei a latinha e assim que eu ia fechando a porta, vi aquelas bolotas verdes indecentes olhando para mim. Ah, pensei, vou comer só mais uma… peguei a safada, joguei na boca e ela foi direto para a glote. Nossa Senhora. Aquela coisa se instalou na minha goela, não descia, nem voltava. Fiz de tudo. Me enforquei, tentei virar de cabeça para baixo. Foram minutos de uma angústia profunda. Achei mesmo que ia morrer. Que patético, pensei, morrer entalada por uma azeitona. Quando finalmente consegui fazer a bicha descer garganta abaixo, já tinha até me despedido da vida.

As azeitonas habitam minha alma num andar muito alto, quase cobertura. Lá estão também o milho verde, a canela, o queijo gorgonzola. Mas isso é assunto para outra prosa. Hoje fico aqui com esse último pedaçinho, da última azeitona que me restou. Isso é que é ser feliz com pouco. Ou com nada. Taí! A azeitona é o Tao do Sabor. Tudo e nada numa só bolota. Maravilha.

Milho verde

milho

O paladar é o sentido mais apreciado pelo meu coração, porque ele é de todos o mais generoso dos sentidos. Ao unir suas forças ao olfato, por exemplo, que desperta o aroma mágico dos alimentos, ele se potencializa ao seu grau máximo de prazer. Assim como também através da visão, suas características mais secretas podem se revelar pela simples aparência do objeto desejado. Mas não é só por isso que ele é genial. Mas por ser a porta de entrada para um mundo fascinante de sabores. Ele é o início de incríveis jornadas, um presente dos Deuses ao homem, um tesouro que nunca deixa de ser redescoberto a cada alimento experimentado.

Quando pequena pensei em seguir a carreira de nutricionista. Adorava pensar na intimidade que podia ter com a comida ao conhecê-la tão profundamente. Depois, os anos passaram e o teatro foi mais forte como vocação. Mas hoje penso que se, naquela época, já existisse a profissão de Chef Gourmet tão divulgada como é hoje, talvez ela tivesse superado minha paixão pelos palcos da vida. E eu seria uma feliz e contente doutora em gastronomia.

“Não há amor mais sincero do que o amor à comida” já dizia Bernard Shaw. Concordo profundamente com ele. Quem ama comer tem na personalidade uma característica passional com os alimentos. Eu sou assim. Ouso dizer que amo comer tanto que amo viver e isso se deve ao meu generoso e querido paladar.

Minha avó há alguns anos atrás perdeu o olfato e o paladar e só conseguia distinguir o salgado do doce. Sentia uma enorme compaixão por ela. Como, meu Deus, viver sem o universo de sabores que nos é oferecido de bandeja? Menus simples ou especiais, receitas afrodisíacas, pratos internacionais. Frutas, molhos, especiarias. Vinhos, pães, queijos! Doces, bolos, rocamboles. Dizem que os amantes do boa comida sentem mais intensamente os sabores que os outros mortais e que tem maior concentração de papilas gustativas na língua. Eu devo ser assim, porque não é possível tanto gemido a cada garfada.

Minha relação com o paladar é quase sexual. Digo isso porque sei o que sinto quando me deparo com uma barraquinha de milho verde no meio da rua. Quando percebo no ar o aroma de milho cozido, uma força cósmica me atrai ao carrinho prateado. Um arrepio me sobe o corpo e eu sou levada diretamente ao panelão de água fumegante. Em transe, escolho a espiga mais suculenta. Observo atentamente o vendedor envolvê-la carinhosamente na água salgada e a agarro com toda a força quando ela finalmente me chega às mãos. Minutos inesgotáveis espero até que ela esfrie para dar a primeira mordida. E num ritual quase vampiresco, cravo os dentes nos inocentes grãos macios e chupo o caldinho salgado até encher a boca. Mordo e chupo. Mordo e chupo. E assim fico, numa seqüência infinita de suspiros e gemidos até acabar com o último grão amarelo. Nossa. É quase um orgasmo. Ou, como explica com sabedoria meu companheiro Houaiss, uma excitação incontrolável do espírito!

Simplesmente divino!

Pão querido de cada dia

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Tem coisas que me ajudam a viver. Padaria é uma delas.

Tinha passado o dia todo de pé. Andando quilômetros da cozinha para sala, da sala para o quarto, do quarto para a cozinha. Estava exausta. Meio vesga. Mudança faz a gente ficar meio zureta. Me dei conta disso quando no meio da tarde, percebi que tinha parado tudo para fazer uma faxina na casa da Barbie. Isso porque já tinha vestido e penteado umas tantas bonecas antes. Me sensibilizaram as coitadas, nuas e descabeladas, espalhadas pela casa.

No final do dia resolvi ir à padaria. Precisava sair um pouco. Ver a luz do dia que já estava de saída, respirar um pouco de gás carbônico da Miguel de Frias, sei lá. Ver gente.

Entrei na padaria e dei aquela cafungada funda. Só faço isso quando tenho 100% de certeza de que o odor é confiável. Nas padarias, sempre é. Padaria tem cheiro de colo de mãe. Pãozinho misturado com bolo de fubá. Tem o burburinho dos apressados que estão voltando do trabalho, loucos para chegarem em casa para se livrar de seus sapatos apertados. Tem a risadinha das crianças, hipnotizadas pelos doces e picolés. Tem os solteiros na fila do frango. Tem as vovós tomando sopinha e vendo novela na televisão sem som.

Fui para fila do pão meio anestesiada. Uma dor no corpo. A cabeça bagunçada. A mente passando e repassando a lista de tudo que faltava empacotar. A moça perguntou quantos eu ia querer. Calculei rapidamente o lanche, a fome da madrugada e o café da manhã.

– Quero seis, por favor.

Quando ela me devolveu o pão depois de pesar, percebi que a fornada tinha acabado de chegar. Eles estavam quentinhos! Sem pensar, abracei o pacote e ali mesmo fiquei de olhos fechados, atracada com aquele calor cheiroso e revigorante, sentindo sem querer, uma profunda felicidade. Parecia que aquele instante estava me devolvendo todo o equilíbrio que eu tinha perdido, toda a energia que tinha me esvaziado encher tantas caixas. Encostei os olhos no pacote, depois o rosto todo. Respirei fundo e só então percebi o quanto me sentia só.

Abri os olhos e dei de cara com a mocinha me olhando torto, meio sem graça pela cena de tão explícita paixão. Nem liguei. Fui para a fila do caixa, pagar satisfeita por aquele tesouro incalculável que eu tinha acabado de adquirir.

Tem coisas que me ajudam a viver. Amar a vida é uma delas.