Os ossos literais do ofício

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Para Mickaela Lindermann

Passamos por muitos enfrentamentos na vida. Mas talvez um dos piores seja ir ao dentista.

Eu não sei direito o que é. Em que lugar de mim esse medo se transformou em bicho cabeludo, mas sei que não estou sozinha nessa estatística. Praticamente todas as pessoas que eu conheço morrem de medo daquela cadeirinha nefasta.

Ontem, depois de desmarcar cinco vezes, resolvi voltar ao meu dentista para reavaliar um canal que não pára de doer. Que parto! Parto para dormir na noite anterior, parto para enfrentar os pensamentos sombrios no café da manhã, parto para conseguir chegar até lá.

Eu já tinha passado pelo processo de autoencorajamento para fazer o canal, desde que descobri que a minha simples cárie tinha se transformado num monstro do Lago Ness. O primeiro canal a gente nunca esquece. Emagreci alguns kilos até o dia da coisa, mas acabei saindo de lá feliz. Com metade do rosto paralisado, mas feliz. A anestesia específica para tratamento de canal é uma porrada. A agulha da injeção tem o comprimento de um lápis, vai até as suas entranhas, mas em compensação paralisa seu maxilar. Eu gosto. Dói para caramba, mas antes essa dor do que aquela dor que você não sabe nunca quando vai doer. Dizem que é esse mesmo o fantasma do dentista. O medo que a gente sente não é o medo da dor em si, mas o medo de uma dor que de fato ainda nem doeu.  Enfim, eu fiz o canal, voltei para casa em estado de alívio letárgico pela coisa enfrentada e dias depois a porcaria do dente voltou a doer. Pronto. A emenda tinha saído pior que o soneto.

Todas as vezes que um sentimento me toma por inteiro – como esse de passar semanas amedrontada por ter que voltar ao dentista e enfrentar o fantasma de um canal que supostamente deveria estar morto – eu tenho o instinto de mergulhar no tal do sentimento para ver se descubro a origem de tanta mobilização emocional. É uma espécie de pesquisa auto biológica. Um dos jeitos que eu encontrei para me aguentar.

Pois bem. Fiz a pesquisa e descobri um bocado de coisas interessantes.

Os dentes são a parte mais dura do nosso corpo. Eles simbolizam em nós tudo que é imutável, rígido e inflexível. Quando alguém morre e todas as características desse ser se perdem por algum acidente, ainda é possível reconhecer a pessoa através de sua arcada dentária.  A dentição fala profundamente de cada um de nós. Sonhar com dentes tem um enorme peso emocional. Significa que a pessoa está passando por um profundo processo de transformação. Os dentes simbolizam a energia instintiva e, ao mesmo tempo o aprisionamento das palavras liberadas pela inconsciente. Eles são a grade da boca, os protetores da língua e os juízes de praticamente todos os nossos pensamentos. Caramba!

Se os dentes tem essa simbologia tão profunda, imagina o que significa mexer nos carinhas. Mexer nos nossos dentes é remexer naquilo que somos em essência. Revolver coisas que estão lá nas entranhas. E isso camaradas, às vezes pode ser muito doloroso. Como é o próprio tratamento de um canal.

Se eu pudesse escolher, todas as vezes que tivesse um problema dentário, pegaria um avião e iria a Joinville tratar dos meus dentes com a Dra. Mickaela Lindermann. A Micka é uma amiga querida, que mora em Santa Catarina e é um anjo em forma de dentista. Ela não se encaixa nas características dos dentistas porque tem uma mão de nuvem, uma voz suave encantada que hipnotiza a gente durante a consulta e para completar tem os olhos azuis mais azuis que eu já vi na vida. Ela obtura as minhas cáries e eu fico com a impressão de que to olhando para o céu! Assim não vale!

Mas o fato é que a Micka não está aqui. E querendo ou não, eu vou precisar enfrentar o bicho cabeludo que está sentado no meu dente. Ontem o dentista mexeu nele até a raiz. Sem anestesia. E não consegue descobrir a origem da minha dor. Próximo passo: uma tomografia computadorizada da face. Fala sério! Acho que vou é ligar para minha terapeuta e tentar descobrir que joça é essa que o meu dente tá querendo me dizer. Se o corpo fala, imagina o que tenta dizer um dente com uma dor fantasma? Acho que essa, nem Freud explica.

Fios brancos na ruivice

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Desde que eu me entendo por gente, eu pinto o cabelo.

Esse sempre foi um artifício para a fuga da mesmice da vida. Mudar fora para ver se dentro a coisa mudava também. Já tive o cabelo de quase todas as cores, apesar de na minha época não existir esses azuis, verdes e roxos lindos que existem hoje. Mas todo o tipo de extravagância que foi possível eu fiz no meu cabelo. Cortes, cores, reflexos, luzes.

Um dia eu encontrei o vermelho.

E o cabelo vermelho passou a ser a minha identidade. Eu costumava dizer para todo mundo que tinha a alma ruiva e isso era verdade. A ruivice me dava uma impressão de dejavú. Ela me fazia lembrar de vidas passadas. De alguma civilização celta ao qual eu tinha pertencido ou de alguma bruxa que eu tinha sido na época da inquisição.

E assim, foram anos experimentando o melhor tom do vermelho. Usei e abusei da henna numa época mais hippie. Virei especialista na coloração na década de 90. Chorei com tintas saindo de linha. Comemorei encontrar tons que me representassem. Me aborreci com pessoas que me acusavam de querer “colocar fogo nas minhas ideias”. Me alegrei em ser seguida na rua para ser questionada sobre que tom maravilhoso era aquele que eu estava usando. Me preocupei com artigos que falavam do perigo do chumbo na tintura vermelha a longo prazo no organismo. Enfim. Foram anos pintando o cabelo por vaidade, não por necessidade.

De uns anos para cá, começaram a surgir os meus primeiros fios de cabelo branco.

E eu pensava: “Tá vendo! Agora mesmo que eu não posso mais de deixar de pintar o cabelo”, como se aqueles fios brancos pudessem finalmente justificar minha subversão.

Mas esse ano tem acontecido uma coisa estranha. Geralmente pinto o cabelo uma vez por mês ou quando os fios já estão muito aparentes. Nas últimas férias eu não quis pintar o cabelo com a desculpa de precisar descansar os fios. Agora já vai entrar o terceiro mês e eu ainda não tive coragem de pintar. E ontem eu descobri o porquê.

Eu estava na frente do espelho tirando minha sobrancelha. Fiozinho por fiozinho. Ah troço chato que é fazer sobrancelha. Quando de repente percebi que na minha franja estavam se juntando muitos, muitos fios brancos. Levei um susto. Larguei a pinça e abri o cabelo com as mãos para ajudar a entender o caso. Não havia como duvidar: ali jazia o meu primeiro tufo de fios brancos. Uau. Perceber aquilo me inundou de uma emoção profunda. Como se pela primeira vez em muitos anos eu estivesse tendo um encontro verdadeiro comigo mesma. Como se naquele pequeno pedaço de DNA estivesse contido todas as últimas duras e fortes experiências que me fizeram envelhecer. Simplesmente envelhecer.

Eu não entendo porque as pessoas tem tanta dificuldade de envelhecer. Envelhecer é uma coisa tão linda. Tão carregada de poesia. Tão digna. Tão verdadeira. Nunca esqueço uma frase da atriz italiana Anna Magnani que li anos atrás que dizia: “Não retoques minhas rugas, eu suplico, porque precisei de muito tempo para ganhá-las”. E é isso. Olho minhas rugas hoje e acho incrível que minha pele esteja enrugando. Claro que ela está enrugando. Estou com 42 anos! É a mesma coisa que digo quando falam da minha barriguinha sexy. Como não ter nenhuma barriga se aqui fecundei e fiz crescer duas criaturas. Só se eu fosse uma daquelas atrizes globais que tem neném e um mês depois estão com a barriga tanquinho de tanto malhar. Sim, se eu malhasse eu poderia não ter a minha barriguinha sexy. Mas malhação, definitivamente, eu já deixei para a minha próxima encarnação.

Mas voltando aos fios brancos.

Talvez haja uma reclamaçãozinha sobre eles. Assim, uma coisa bem pequena. É essa coisa deles nascerem tonhonhoim. Porque será que os cabelos brancos nascem sempre meio frisados, espetados, esquisitos? Será que é de velhice também? Hummm. Se for isso tudo bem. Eu aceito. Mesmo que eles não cheguem com o vigor e beleza suprema dos cabelos jovens e virgens, eu vou amá-los do jeito que são.

Cabelos me fazem lembrar da Clara. A minha filha que tem os mais lindos cachos do mundo – aqueles que eu rezei muito na barriga para que nascessem exatamente do jeito que são. É ela que me ensina com leveza sobre essa dualidade que tenho vivido sobre minha ruivice e minha adorável velhice que vem chegando. Como? Cantando essa música que está embaixo.

É ou não é para morrer de amor?

***

(Esse vídeo é uma animação de Maira Teruko Nisi e a música “Cabelo meu” é cantada por Marina Santana e foi feita especialmente para a campanha da Natura Plant)

Box Transcendental

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Todo box é uma nave espacial.

Não importa se é de blindex, se é de vidro temperado, azulejos coloridos ou fechado com cortininha de argolas. Todo box é uma possibilidade de viagem intergaláctica.

A coisa é simples. Basta entrar na cabine, ligar a torneira-turbina e iniciar a jornada rumo ao desconhecido de diversas sensações. Aquelas que serão despertadas a cada pingo que cair sobre a pele nua do viajante. Para quem gosta de banho quente a travessia pode ser ainda mais prazerosa. O calor é um poderoso catalisador de emoções. E a fumaça o condutor perfeito para uma possível transmutação genética de pensamentos. Está comprovado que o fog londrino dissolve dias cansados e desmancha as mais severas preocupações.

O primeiro contato da água quente com a pele traz uma sensação de descarrego. Chega a ser doído de tão bom. A pele se arrepia e começa a por para fora todas as toxinas que se aglomeraram em sua superfície ao longo do dia. E o corpo, tomado por essa emoção de limpeza astral, nos leva a buscar imagens que se encaixem a essa sensação de renovação: ondas do mar invadem nossa mente, rios e afluentes navegam em nossas veias, cachoeiras cachoeiram dentro de nós.

Todo box é uma nave espacial.

Uma nau despertadora de sentidos: no prazer auditivo e revigorante do barulhinho da água, no gosto da liberdade de viver o instante, na cura aromática dos xampus, no contato da gente com a gente mesmo, matando a saudade no sabonete. Ele é uma embarcação lúdica que nos permite infinitos destinos. A possibilidade real e concreta de uma verdadeira renovação biológica. Muito mais do que um simples banho, o box é o nosso passaporte para o espaço sideral que há dentro de nós.

Clara e as cores

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Tudo começou quando dia desses eu entrei numa livraria.

Não posso ver uma livraria que uma força estranha me puxa para dentro. É sempre assim. E quando o lugar tem uma seção de papelaria então, é fatal. Não sei o que me atrai mais: se são os livros ou os papéis, as canetas ou os afins. Fui entrando sem pensar quando de repente vejo uma prateleira de produtos da Faber Castel. Ah… aquilo parecia um retorno ao jardim de infância. Tinha de tudo. Tintas, lápis de cor, giz de cera, massinha de modelar, hidrocores. Que delícia! Que vontade de sair por aí colorindo o mundo.

Foi quando de repente eu dei de cara com os potinhos de anilina. Vermelho, azul, amarelo, verde. Na mesma hora me deu a idéia de fazer um banho com espuma colorida para Clara. Imaginei a pequena mergulhada num arco-íris e não resisti. Passei a mão numa cesta e sai escolhendo a dedo cada cor para pintar a cena.

Chegando em casa, anunciei a aventura com pompa e circunstância. Nem bem deixei as bolsas, percebi Clara ao meu lado, já pelada, prontíssima para entrar no chuveiro. Que ótima estratégia – pensei – preciso de mais idéias como essa para o esquema do banho. Mas na verdade, acho que nem eu nem ela podíamos imaginar o que nos aguardava.

Catei todos os baldes e bacias que vi pela casa e entramos no box. Liguei a água, coloquei um pouco de xampu em cada um dos potes e deixei o jato bater na água com força para fazer a espuma. Aos poucos, fui abrindo os potinhos de anilina e derramando um bocadinho em cada um dos montinhos de nuvem branca. Mas a mágica foi acontecendo através dela, que tinha nas mãos como uma bruxa, uma enorme colher de pau para mexer e remexer em seu caldeirão mágico de poções extraordinárias. Conforme a alquimia das cores foi tomando forma, ela foi sendo tomada por uma emoção indescritível. Era lindo de ver. Ela dava gritinhos a cada cor que se revelava. Pulava. Gritava de novo. Olhava para mim estupefata. Estava em estado de graça. Não acreditava no que via. Nem eu.

Saí do chuveiro desesperada atrás da máquina fotográfica. Como é que eu não fui pensar nisso antes? Não podia perder aquela cena… aquela menina-fada de varinha de condão nas mãos, ao lado de mil potes coloridos!

Aos poucos, Clara largou a colher e começou a pintar os azulejos com as mãos. Os cabelos. A pele. E foi ficando multicolorida. Aquela cena transbordava poesia. Como podem as cores ter esse efeito tão mágico?

Aguardando à hora do final apocalíptico, finalmente derrubamos juntas todos os baldes coloridos. Com a predominância do azul, sem querer, acabamos transformando o box num imenso e agitado oceano. Cheio de ondas, marolas e espuma. Bom, isso foi o que eu vi. Para ela, que estava literalmente mergulhada na água azul, o lugar era outro.

Ela gritava sem parar, como se tivesse descoberto o sentido de tudo: “Mamãe, mamãe, eu tô nadando no céu! Eu tô nadando no céu!” Aquele box nunca mais foi o mesmo. Para nós duas.

Os bobs da discórdia

pinmaior

Vivo na contramão do meu tempo. Não é apego ao antigo. É amor ao demodê.

Outro dia entrei na Tonisha e dei de cara com uma gôndola de bobs, aqueles rolinhos plásticos adoráveis, de todos os formatos, cores e tamanhos. Enlouqueci. Comprei uma penca deles e fui para casa sonhando com a minha cabeleira cacheada.

Nunca houve um movimento tão brutal nos salões de beleza para se alisar o cabelo. Queria muito entender o porquê. Tá. Eu sei o que a mulherada fala: que a gente nunca está satisfeita com o que tem. Tem cabelo liso? Sonha com cacho. Tem cabelo crespo? Sonha com fio reto. Eu até já fiz uma escova de chocolate. Mas é porque já tinha pintado meu cabelo de três tonalidades diferentes naquele ano (insatisfeita, eu?) e a escova inteligente explica muito bem para o seu fio de cabelo o que ele precisa fazer… para ficar bonito.

Mas é impressionante o movimento chapinha que se vê nas ruas hoje em dia. Tudo tão igual. Tão enlatado. É nessas horas que eu percebo como não sou a mulher moderna e contemporânea que gostaria de ser.

Eu não sou in, gente. Gosto de torradeira, vestido de bolinha, ouvir Dolores Duran. Meu ouvido não entende o funk, nem o rebolation, muito menos a dança da motinho. Não tive idade para tomar um chopp com Vinícius mas desmaio quando ouço ele cantar Samba do Grande Amor. Acho o cafona muito digno, já tive um brechó e não é a toa que eu olho para os carros na rua hoje em dia e simplesmente não consigo discernir a marca de nenhum deles. Para mim, são todos iguais. Sou do tempo do Alfa Romeu, do Chevette e do Monza. Não freqüentei drive-in mas já namorei numa Caravan Comodoro e achei que estava numa nave espacial para a Lua.

Antigamente as mulheres eram mais femininas. E curtiam muito suas próprias curvas. Hoje tem essa alucinação de malhação. Competição de quem tem o melhor corpão. O Brasil é um dos países campeões de cirurgia plástica no mundo! Por que? O que aconteceu que a gente se perdeu do feminino básico e perfumado das nossas belezas próprias?

Mesmo que eu não tenha nascido com os cachos que eu sonhei… é saudável querer ficar bonita. Só acho estranho querer ficar igual ao modelo que se estabeleceu do belo. Tudo é tão relativo.

Eu ainda quero sonhar com um tempo que a gente pode viver o tempo que quiser. E sonhar em não ser classificada de retrô só porque acho charmoso usar cílio postiço. Que troço chato é esse de todo mundo querer ficar codificando a gente.

Amanhã vou lavar meus cabelos e encher minha cabeça de bobs. Vocês vão ver. Em tempos de chapinha, eles vão acabar se tornando meu maior símbolo de rebeldia. Supimpa!