De todas as provações humanas talvez uma das mais perigosas e patéticas seja o trânsito.
Penso, penso e não consigo encontrar um lugar mais perfeito para radiografar a nossa alma do que esse covil de máquinas ambulantes. Bestas e santas criaturas se revelam e não podem esconder sua face porque a coisa está toda ali, na cara de todo mundo e não há disfarce que possa esconder quem você é.
Vejo por mim. Eu não sou nenhuma santa, mas estou trabalhando muito pela minha tentativa de evolução espiritual. E mesmo eu, que ouço mantra, medito, rezo e peço a Deus todos os dias por muita paciência já me peguei no trânsito com desejos compulsivos e assassinos.
Veja bem: se eu estou numa via rápida distraída, dirigindo lentamente e vem alguém e me dá uma piscadinha, eu acho chato, mas saio para pista do lado. Agora, se eu estou numa via rápida, dirigindo rapidamente e vem um carro, desde lá debaixo, piscando o farol freneticamente para eu sair da frente dele, o tempo fecha. Como é que essa pessoa se acha no direito de me mandar sair da frente dela se eu estou na velocidade adequada para a pista? Não, porque a mensagem subliminar desta infame piscadinha é: “sai da frente sua mosca, porque você está me atrapalhando”. E aí, o que acontece, é que toda a minha suposta elevação espiritual começa a ir por água abaixo. O meu sangue ferve e dele desperta o monstro negro que mora nas minhas entranhas. Ao invés de simplesmente sair, eu diminuo a velocidade e fico no retrovisor fazendo um gesto de “ué, fofinho, passa por cima.” Feio. Muito feio.
A pergunta é: por que uma coisa dessa tão simples me tira tanto do sério? Eu não sei responder. A verdade é que eu faço isso, mas morro de medo do apressadinho atrás ser um psicótico e se irritar com o meu sarcasmo e apontar uma arma para minha janela, gritando: “quer morrer, madame?” Às vezes os caras insistem. Se isso acontece, geralmente acabo engolindo a raiva e saio da pista por medo da loucura dos outros. O carro passa por mim e eu faço um esforço enorme para não mandar um dedo do meio para o desgraçado. Se estou num dia mais tranquilo, até consigo respirar fundo, contar até dez e desfiar meu rosário de frases feitas que me ajudam a me acalmar do tipo “apressado come cru hein” ou “vai tirar a mãe do puteiro vai!”. Mas essas frases ridículas nunca me isentam de sentir no fundo um peso enorme pela tristeza da mediocridade humana.
Claro que onde há sombra, há luz. E da mesma forma que me irrito profundamente com a falta de educação das criaturas humanas no trânsito, também me emociono e tenho vontade de chorar quando as pessoas mostram o lado mais bonito delas em gestos simples e generosos. É a mesma piscadinha do carro da frente que me faz sorrir, quando estou para entrar numa rua que não tem sinal e o carro pára o fluxo do trânsito para educadamente me ceder a vez, para que eu entre antes de todos. Poxa, isso é lindo demais.
Mas voltando ao lado negro da força, o trânsito já enlouqueceu muita gente. Às vezes uma fechada, uma vaga roubada ou apenas uma buzinadinha pode trazer a tona uma fúria cega que mora dentro da gente. Outro dia recebi um texto muito bom sobre isso (dizem que é do Arnaldo Jabor, mas texto de internet sempre é uma incógnita) Chama-se “A Lei do Caminhão de Lixo”. Ele fala que as pessoas são como caminhões de lixo, que acumulam um monte de raiva e frustrações dentro delas e que na primeira oportunidade, querem despejar toda a porcaria em cima de quem topar. Deus me livre um lixão desses.
Tudo é mesmo uma questão de como a gente se coloca na vida. Outro dia um velhinho me deu uma fechada daquelas de doer. Minhas filhas já me conhecem, não me aborreço com velhinhos dirigindo porque acho que eles têm licença poética de fazer umas besteirinhas no trânsito. Mas esse dia a fechada foi feia. Eu já ia reclamar quando passo pelo velhinho e ele está fazendo um gesto de desculpas… E em seguida me manda um beijo. Fala sério! Morri de amor com aquele velhinho!
Desses retratos de quem somos nós, nunca vou esquecer o enjoo de estômago que saí do cinema, no dia em que vi “Ensaio sobre a Cegueira”. O mundo perde a visão e com ela toda a dignidade humana. Saramago costumava dizer “Não é que eu seja pessimista. O mundo é que está péssimo”. Essas visões sobre nós são assustadoras. Mas nós somos assustadores mesmo. Somos complexos e de uma potencialidade absurda. Para o bem ou para o mal. Podemos ser arrogantes, prepotentes e egoístas. Assim como podemos ser generosos, solidários e profundamente amorosos.
Seja como for, o lema é sempre o mesmo: a vida da gente será o que alimentarmos dela. Se aquele velhinho beijoqueiro me emocionou tanto, é aquele sentimento que eu preciso regar. E não a fúria diabólica que eu senti por aquele Emerson Fittipaldi de araque, piscando alucinadamente para mim, no fundo desejando me transformar em pó. Afinal, de todas as superações humanas talvez uma das mais bonitas e emocionantes seja o perdão.