Como posso ser tão cega e não perceber o que essa criança está a horas tentando fazer?
Acordei de madrugada mais uma vez para escrever. A inquietude da minha alma tem me despertado todas as madrugadas, por volta das três horas da manhã como se fosse oito. Resignada, levanto, lavo o rosto, preparo um chá e vou para frente do computador tentar descobrir o que de tão urgente precisa sair de mim.
Mas nada acontece. Me distraio então com alguma pesquisa na internet, dou uma olhada nos meus e-mails e me lembro, como um despertadorzinho interno, da maravilhosa declaração de David Lynch a respeito da criação artística: “Se desejamos pegar peixes pequenos, podemos viver em águas rasas. Mas se desejamos pegar peixes grandes, então não escapamos de mergulhar em águas profundas”. Sei bem o que isso significa: meditação.
Meditar para mim é um esforço sobre-humano. Todas as vezes que tento meditar me deparo ainda mais com as turbulentas águas em que transbordam minhas idéias. O contato com essa realidade é assustadora. Somos um povoado de imagens e sentimentos que se misturam violentamente dentro da cabeça. Minha guru diz que a meditação é o único caminho para a paz interna. E que a paz é a única chance que temos de sobreviver ao caos em que o mundo se instalou. Através dela temos a chance de expandir nossa consciência e ir ao encontro da divindade que habita no fundo da nossa alma. Ela diz também que meditação não é nenhum bicho de sete cabeças. Basta sentar-se e permanecer em silêncio. Mas e quem disse que eu consigo ficar em silêncio com todas as urgências gritando dentro de mim?
Pois bem. Estava eu aqui de madrugada debruçada sobre essas questões, quando chega Catarina, minha filha caçula, descabelada agarrada ao seu urso e chamando chorosa por “mamãe, mamãe…” Ai puxa vida, pensei comigo, agora mesmo que a meditação foi para o beleléu. Peguei-a no colo e a coloquei na cama.
– Não mamãe, quero colo.
– Catarina, pelo amor de Deus minha filha, tá de noite, olha só lá fora, o sol ainda não chegou, você tem que dormir…
– Tá, mas no seu colo mamãe.
– Tá bem…
Coloco-a no colo e canto baixinho uma canção de ninar. Minha cabeça continua a ferver. Ansiosa, desejo desesperadamente que ela durma para que eu possa voltar ao meu universo conturbado de tão sérias questões a resolver. Devagar, a acomodo sobre o travesseiro macio. Saio de mansinho. Um minuto depois, ela sentada na cama, de olhos molhados, me chama:
– Mamãe, eu quero você.
– Filha, o que é que tá acontecendo com você meu anjo?
– Mamãe, quero colo.
– Tá bem, eu vou deitar do seu lado.
– Não, eu quero colo. Colo sentada.
Impaciente, saio de novo do computador e a pego no colo. Sento na cama. Ela me olha fundo nos olhos, dá um sorriso, faz um carinho no meu rosto e fecha os olhos. Só então eu compreendo. Meu anjo miúdo de cabelos cacheados tinha saído de sua caminha para vir até aqui me ajudar a meditar. Que burra! Como pude ser tão cega e não perceber o que essa criança estava a horas tentando me dizer? Deitada eu pegaria no sono com ela. Sentada, precisando fazê-la dormir, era uma chance de ouro que eu tinha de entrar em profundo estado de meditação. Bastava fechar os olhos e sentir nossos corações baterem juntos.
Nessa madrugada fiz uma meditação profunda. E agora sentada aqui no computador escrevendo, com o pensamento mais tranqüilo, percebo um barulhinho que vem da janela e que me chama a atenção. Olho depressa. É um passarinho, outro anjo miúdo, que me olha através do vidro da janela. O que ele veio me dizer eu já sei: não existe um caminho para a paz. A paz é o caminho.