Ontem Clarinha perguntou:
– Mãe, você não vai escrever sobre isso tudo que tá acontecendo, não?
Engoli em seco. Sabia que essa pergunta ia surgir mais dia menos dia. Fiquei olhando bem firme na imensidão daqueles olhos que eu mesma coloquei no mundo e respondi sem titubear.
– Eu não sei o que tá acontecendo, filha. Não tenho como escrever sobre alguma coisa que eu não consigo explicar.
Ela me abraçou em silêncio. E aquele abraço me derreteu por dentro. E apesar da suavidade do gesto, foi como um soco na boca do estômago. Ela sabia como fazer para me destampar. Minhas filhas sempre tiveram esse dom. Como se soubessem intuitivamente o remédio para desentupir as veias da própria mãe.
Saiu devagar do abraço e mesmo vendo que meus olhos estavam cheios d’água, foi firme como um general:
– Tá na hora, mãe.
Na verdade tinha passado da hora. Desde o início da quarentena e de todas as primeiras notícias da pandemia, eu tive uma vontade desesperada de escrever. Como se eu pudesse de alguma forma ir registrando num diário de bordo essa viagem louca que a gente começou a fazer do dia para noite. Mas tudo foi ficando tão surreal, tão doloroso, tão apocalíptico, que as palavras não pareciam mais servir para traduzir a dimensão que a coisa tava tomando. Como se o mundo de repente tivesse virado do avesso e a gente não coubesse mais nele. E atordoada, fechei meu caderno e passei a viver os dias, ancorada no presente, planejando só o que era possível: o almoço e o jantar.
Mas ontem eu ouvi o chamado. E entendi que parte dessa revolução que o mundo inteiro tá vivendo, vem de uma transformação muito profunda de cada um de nós. É uma guerra biológica que a gente não tem nenhum controle? É. É um vírus avassalador que transformou o mundo em meses? É também. Mas como tudo nessa vida a gente pode escolher de que forma vai viver a coisa.
Então sentei no computador e estou aqui.
No início da quarentena eu via todos os jornais e acompanhava todas as notícias. Minha irmã veio para cá com os meus sobrinhos e vivemos umas semanas de férias forçadas, felizes por estarmos juntos, mas ainda assim, chocados com tudo que tava acontecendo. Mas o tempo foi passando e eles acabaram voltando para casa, porque cada um precisava reaprender essa nova configuração de vida. Foi então que as meninas foram para São Paulo passar uns dias com o pai e na primeira noite, recebemos a notícia da morte da Érika, professora de teatro da Clara, por Covid-19.
Aquela foi a primeira grande perda de alguém muito próximo. Uma pessoa maravilhosa, cheia de vida e alegria, tinha sido levada pelo vírus em menos de cinco dias. Ali naquele momento eu senti uma ruptura muito profunda com o mundo que existia antes. Como se a partir dali eu realmente fosse viver o luto não só da Érika, mas de um mundo que eu nunca mais veria igual.
Desde então a gente vem recebendo uma bomba atômica de informações, vídeos emocionantes, revelações sobre curvas, lives intermináveis, textos transformadores, instruções médicas e as estarrecedoras notícias diárias de milhões de mortes pelo mundo. Se alguém achava que o mundo ia acabar em 2012, não imaginava o que nos esperava 2020.
O mundo como estava posto morreu e nem sequer teve direito a um funeral. Nesse momento vivemos a entressafra de algo que não podemos dimensionar. Ninguém faz ideia do tempo que isso tudo ainda vai durar. Sem contar o medo paralisante que sentimos. Uns com mais, outros com menos. Mas certamente a vibração de medo que paira no inconsciente coletivo da humanidade é bem maior do que a gente tem coragem de confessar.
Numa dessas últimas semanas, tive uma crise de alergia muito forte. Passei uma noite péssima e de manhãzinha, acordei febril e com uns calafrios. Pronto. Era tudo que eu precisava para detonar o demônio do medo dentro de mim. Sintomas físicos para me desesperar e acessar todas as informações e estatísticas que tinham ficado impregnadas em mim com todos os Jornais Nacionais que eu tinha assistido.
O medo é sem dúvida, o mais corrosivo de todos os sentimentos humanos. Naquela manhã eu estava apenas com os sintomas de uma alergia muito forte, mas na minha mente, tinha contraído o Coronavírus, tinha piorado vertiginosamente em poucos dias, tinha sido internada, entubada, e sofria porque morria com falta de ar, sem conseguir me despedir de ninguém.
Agora parece hipocondriacamente engraçado. Mas na hora que eu tava vivendo a coisa, foi bem doloroso. Tenho conversado com muitos amigos e isso tem sido recorrente em muitas casas: o medo paralisante da morte.
Eu não tenho medo de morrer. Já escrevi isso em várias crônicas minhas. Mas essa doença me traz outra coisa a ser contemplada e que é quase tão difícil de pensar quanto à própria finitude: a nossa absoluta falta de controle sobre tudo. E isso é bem enlouquecedor.
Quando o mundo era outro mundo, o meu maior medo era sair de casa e sofrer algum tipo de violência na rua. Sabia que não tinha como controlar o destino e que se uma bala perdida tivesse que me encontrar, eu não tinha como escapar dela. Sinto que essa doença vem falar da mesma coisa, só que de outra forma. Nem com toda prevenção, isolamento, água, sabão, álcool gel e máscaras, se eu tiver que contrair a doença e passar por todo o processo que ela me trará, eu simplesmente, não tenho como escapar disso. Porque no fundo no fundo todo ser humano acha que pode ter algum controle sobre a vida. E não tem. Não tem e ponto.
Minha alergia melhorou e eu passei a cuidar da minha saúde da melhor forma que eu posso. Tomando geleia real em jejum, própolis com mel e limão, vitamina, homeopatia e floral. Me alimentando bem, tomando sol no meu terraço e tentando meditar todos os dias. Parei de ver o Jornal Nacional e só dou uma passada de olho nas notícias de manhã para ver se um milagre acontece e o nosso panorama político muda. Porque no Brasil, não só precisamos lidar com a pandemia como também com a psicopatia do nosso atual governante. E sinceramente, isso tem me feito adoecer mais que o próprio medo da Covid-19.
Mas enfim, quero terminar esse texto dizendo para Clarinha que, mesmo sem entender em profundidade tudo que está acontecendo no universo, aqui na minha pequena e divina existência, eu hoje já tenho condições de escolher por vibrar na gratidão das coisas essenciais que tenho a sorte de ter: minha saúde, a saúde daqueles que amo, meu alimento e essa casa que me acolhe e me permite estar protegida. A “gratidão” é o melhor lugar que podemos estar agora. Agradecendo aos médicos que cuidam dos doentes e a todos que estão fazendo a máquina do mundo funcionar.
Obrigada filha. Escrever me fez muito bem. Estou me sentindo mais viva do que nunca!
Que possamos todos juntos gestar com amor esse novo mundo que virá.
Sigamos fortes e com esperança.
Nada será como antes e isso é maravilhoso.