Picasso e tudo aquilo que eu entendi

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“A arte é o vazio que a gente entendeu”
Clarice Lispector

Semana passada fui ver o Picasso. Sozinha. Ah! Tem coisas que eu a-do-ro fazer sozinha. Exposição é uma delas. Se cada um tem um tempo diferente para entender a vida, imagina uma obra de arte. A viagem precisa ser individual para que cada viajante possa vivenciar a experiência da forma que desejar. A arte é um mergulho profundo no vazio de cada um. Estar só nesse momento – pelo menos para mim – me ajuda muito no processo de entrega para a coisa.

Mas então. Picasso.

Me comove muito essa coisa do povo enfrentar uma, duas horas de fila só para ver uma exposição de arte. Gente! É demais. Esse tipo de coisa me devolve a esperança no mundo. Na humanidade. E me faz lembrar aquele livro da Celina Fioravanti “Os Curadores do Espírito” que fala dos artistas como principais agentes de cura e equilíbrio do mundo.

Bom, eu enfrentei uma hora de fila feliz. Li um pouco, observei as pessoas, ouvi conversa alheia, comi pipoca, liguei para uma amiga, lixei minhas unhas, arrumei minha carteira, tomei água com gás, masquei meia dúzia de chicletes. Na verdade nem terminei de fazer minhas tarefinhas de bolsa quando recebi a senha para entrar.

O Centro Cultural Banco do Brasil é um espetáculo por si só. Aquele lugar é uma viagem no tempo. Todas as vezes que entro naquele prédio e sinto aquele cheiro característico dele – uma mistura de café, cultura, refinamento e elegância – agradeço por existirem lugares no mundo como ele. Na verdade o espaço é uma garantia de prazer. Não importa que exposição esteja em cartaz. Nem que peças de teatro estejam passando. Ir ao CCBB é um programa barato e de satisfação garantida. Não sei o que é. Tem uma coisa na atmosfera daquele lugar que me fascina. A começar por aquela cúpula que fica no centro do prédio. Aquilo não é uma cúpula. É um portal para outra dimensão.

Mas voltando ao Picasso.

A fama do cara é uma coisa indiscutível. Picasso é considerado hoje um dos mais importantes artistas plásticos do século XX. Num leilão em maio desse ano, alguém pagou quase 180 milhões de dólares por um quadro dele. Pensa. É uma quantia astronômica por uma obra de arte. Mas eu entrei na sala e dei de cara com uma pintura dele. E naquele momento, não havia nada entre nós. Nem a fama, nem a história, nem o valor da obra, nem o tempo. Só eu e ela, a tela. E dentro dela, a alma dele, impressa na textura daquela tinta a óleo.

Uau.

Primeiro quase não consegui respirar. Como pode? Eu estava ali e podia sentir a presença dele. Não a presença do mito, mas do Pablo, o cara que tinha nascido na Espanha, que desenhava e pintava desde pequeno, que quase morreu de escarlatina, que sonhava em morar e trabalhar em Paris, que tinha amado e maltratado muitas mulheres e tinha revolucionado a arte com suas ideias. Minha fértil imaginação me capacita a coisas incríveis. Em alguns segundos, voltei no tempo. Ao dia, ao exato momento que ele pincelava naquela tela aquelas impressões que o mundo lhe causava. E pensei na brevidade do tempo diante de certos fenômenos da nossa existência. Essa é uma das razões da arte me fascinar tanto… Ela é imune ao tempo.

Mas voltando ao quadro.

Devo ter ficado alguns minutos em frente à primeira tela da exposição. Depois de passado o deslumbramento da viagem no tempo, voltei à sala do CCBB e fiquei tentando imaginar porque que aquela pintura era tão famosa. Lia e relia os resumos do curador da exposição e ria sozinha daquelas definições esdrúxulas que os entendidos em arte insistem em escrever, tentando definir o indefinível. Taí uma coisa que eu não entendo nas exposições. Para quê tanta explicação intelectual para algo que deve apenas ser sentido com o coração? Nada do que está escrito ali pode me ajudar a buscar uma emoção se ela não vem. Geralmente nas exposições que vou, elejo o quadro ou o objeto que mais me emocionou na sala e vou seguindo a jornada, os guardando na memória e no coração. Antes de ir embora, volto para me despedir de cada um, agradecendo silenciosamente sua existência, como se eles de alguma forma tivessem despertado algo mágico dentro de mim.

Na exposição do Picasso um único quadro me emocionou. E é o tipo da coisa que não dá para explicar por que. O pintor mesmo tem uma frase que gosto muito. Ele diz: “a qualidade de um pintor depende da quantidade de passado que traz consigo”. Talvez o mesmo possa ser dito do espectador. Gostar ou não de uma obra de arte também pode depender de tudo que o espectador tenha vivido. Como nos filmes. Dificilmente conseguimos explicar a alguém que odiou determinado filme, o porquê de termos gostado tanto dele. Nosso passado. O que vivemos. O que vimos do mundo. A forma que vimos. O quadro que amei da exposição era pequeno e sem destaque. Mas calou em mim alguma coisa que não sei explicar. E nem preciso. Sei o que senti e pronto.

A verdade é que essa exposição do Picasso – e todo estranhamento que ela me causou – me trouxe uma reflexão profunda em relação à arte. Um artista traz ao mundo sua criação. O que as pessoas vão fazer com o que sentiram em relação a ela só compete a elas. Tá. É engraçado estar parado em frente a um quadro e ouvir atrás de você uma pessoa tentando explicar o que está vendo. É difícil decodificar o que se está sentindo, principalmente quando o que se está sentindo é algo profundamente abstrato. Pérolas saem dessas situações. Mas surreal mesmo é ouvir um intelectual metido a entendedor de Picasso afirmar categoricamente o que aquele quadro quer dizer. Como assim? Como ele acha que pode afirmar o que estava se passando dentro do Pablo naquela hora que ele pintou um minotauro cego sendo guiado por uma menina que carregava uma pomba?

O surrealismo de Salvador Dali eu até alcanço. Mas o cubismo de Picasso! Poxa vida. Eu até tentei estudar o movimento, mas foi quase impossível para mim. O que entendi do processo – e por isso não importa se eu gostei ou não da exposição – é que ele criou um movimento por um profundo desejo de contravenção. E para isso eu bato muitas palmas para ele. O cara ficou exaurido de um sistema, foi lá e reinventou as perspectivas no que deu na telha dele. Pô. Isso é genial. E precisa ser respeitado. E admirado. Se as pinturas são estranhas, tortas e o cara parecia estrábico, definitivamente não importa. O que importa é celebrar a coragem que ele teve de ir lá e fazer.

Tenho recebido muitas críticas aos meus textos. Hora porque estou colocando vírgulas onde não devo, hora porque estou conjugando verbos de maneira errada, hora porque não me aprofundo, hora porque me aprofundo demais. Depois de ver Picasso pensei no quanto as pessoas que vão lá e fazem, mexem com as outras que apenas assistem. É preciso muita coragem para se expor e colocar para fora o que nos inquieta a alma. É preciso coragem para enfrentar o mundo de dentro, mas é preciso ainda mais coragem para enfrentar o mundo de fora.

20 pensou em “Picasso e tudo aquilo que eu entendi

  1. Amei o seu texto! Quanta sensibilidade! Não se importe com as críticas, erga a cabeça e siga em frente como vc sabe e acha q deva ser. Adoro suas crônicas!!! Bj grande no coração. Soninha

  2. Queridíssima!!!! A-do-rei!!!
    Quando você relata aquela cúpula que fica no centro do prédio do CCBB como um portal para outra dimensão, é genial! É exatamente isso o que sinto e nunca me dei conta. Você conseguiu descrever a sensação desta pisciana! E amei o relato da exposição do Picasso e de tudo o que você disse a respeito! Acabei indo à exposição contigo, depois da leitura deste teu texto corajoso!
    Beijoquinhas em ti e na tua expressão!
    Livinha

  3. Sério que tem gente que critica o que vc escreve?? Acho que críticos são verdadeiros covardes, são pessoas que não põem a mão na massa mas adoram apontar o dedo para os que dão a cara a tapas! Bjs

  4. Oi prima! Que bom te ler aqui! Seja bem-vinda! Pois então, tenho vivido um pouco isso mas acho que é justamente o que falou… é fácil falar… mas fazer… Beijo e obrigada pela presença!

  5. ADOREI… adorei cada parágrafo… que delicia sermos livres para nos expressarmos…não é?

  6. Ai Tati. Não estudei arteterapia à toa. Vc conseguiu descrever algumas sensações que tambem tenho! É muito bom poder me reconhecer passeando por sua palavras. A arte é o ar que respiro.
    Gratidão querida! Muitas saudades!

  7. Catita, minha amiga querida… que delícia e dor a gente ser o que é! Bom demais te ler aqui… Beijo de amô!

  8. Fabi! Que saudade querida! Que vontade de ir a Sampa só para gente tomar um cafezinho! Obrigada pela presença! Muitos beijos!

  9. Leia, minha flor! Respirar arte é um grande privilégio! Acho uma forma maravilhosa de ver a vida… arteterapia deve ser uma coisa sensacional… muito bom te ter aqui! Beijos querida!

  10. Putz meu doce. Demais. Acredito que Picasso esteja sorrindo, rsrs. Gostei muito desse texto e a partir de agora não vou mais sentir um idiota tentando entender o “inintendível” de uma arte, mas… senti-la. Obrigado. bjs

  11. Muito bom, querida! Pra mim também (como você bem sabe!) visitar uma exposição de arte é também me divertir!!! Deixar fluir toda a energia presa ou contida dentro de mim! Acredito que os artistas nos proporcionam o privilégio da aberturas de janelas! Por isso tanta emoção, riso, estranhamento, críticas… fazer o quê?! Cada um expõe o que pode no momento em que se permite expor! Adorei Picasso!! Ri e me diverti muito com seu universo “quebrado” e colorido! bjs grandes Parabéns pelo texto.

  12. Nunca esqueci a exposição dos impressionistas que fomos juntas Rô… dia inesquecível! Te adoro querida!

  13. Só me deu mais ódio de mim mesmo por não ter conseguido ver! Que bom que vc está animadíssima! Meu tempo está parco, mas vou lendo aos poucos! Beijos!

  14. Taí… acho que o Pablito ia querer te conhecer (e comer, talvez…) Delícia esse texto descontraído e tão verdadeiro! Picasso na verdade fez muito mais do que pintar quadros, ou fazer esculturas, ele reinventou o olhar sobre o mundo e deu inicio a uma enorme libertação no mundo da arte. Os outros artistas que estavam na exposição são a demonstração da revolução que se instalou após suas “ousadias”. E que obras magníficas foram produzidas a partir da possibilidade desse novo olhar.

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