Adolescendo

Canon Clara 098

Para Clara Meira

Não. Definitivamente não há cursinho preparatório para gente ter filhos.

Ninguém avisou para gente do neném molinho que ia chegar aos nossos braços, nem da velocidade que as perninhas deles iriam ganhar quando aprendessem a andar. Ninguém avisou das perguntas que a gente precisaria responder, nem do amor avassalador que a gente iria sentir.

Todas as fases dão trabalho. Todas têm sua magia e complexidade. Todas são terrivelmente maravilhosas. Mas nenhuma delas se compara à adolescência.

Muito já foi dito sobre essa fase da nossa existência. Muitos já se debruçaram sobre esse tema. Por isso mesmo gostaria de tentar ir um pouco mais fundo nesse assunto. Essa coisa de dizer que os adolescentes estão desabrochando para a vida é uma visão muito simplista da coisa. Assim como chamá-los de aborrecentes é injusto e preconceituoso. A adolescência é um momento crucial de mudança, um estado dolorido, difícil e febril que todos nós passamos e precisa ser tratado com delicadeza e ternura, para que passe construindo seres e não destruindo essências.

Clara mudou muito desde que o calendário apontou essa mudança de fase em sua vida. Me lembro do aviso que nos deram na primeira reunião da escola, quando ela passou para o Fundamental II. A orientadora pedagógica teve muito cuidado para nos preparar. Mas a sentença era definitiva: em pouco tempo não reconheceríamos mais os nossos filhotes.

Eu tenho tentado com todas as forças enfrentar a coisa com sabedoria e humor. É isso ou me render a uma cartelinha de Rivotril. Mas confesso que os desafios são muito maiores do que podia imaginar. Cada casa deve ter seu drama, claro. Mas aqui a coisa é pesada: temos uma menina virando mulher, um bebê virando menina e uma mulher virando anciã. Uau.

Foi num desses dias de caos temporal que descobri um termo perfeito para o momento. Ela chegou aos prantos e me perguntou com os olhos transbordando de angústia:

– Mãe, peloamordedeus, o que tá acontecendo comigo?

Naqueles olhos eu via o tal desabrochar, mas via também um sentimento adoecido de confusão e medo. Ela tinha um misto de raiva, tédio e tristeza. A coisa saiu da minha boca como se tivesse acabado de ser inventado.

– Você tá adolescendo, filha.

– Como assim adolescendo, mãe?

– É uma fase esquisita onde a gente não é mais o que era e ainda não encontrou o que é. Imagina você se construindo, de dentro para fora e o mundo te moldando de fora para dentro. É meio conflituoso mesmo, mas você vai sobreviver e se tornar um grande ser.

Sabe que ela gostou? Acho que de alguma forma se sentiu explicada. Resumida. Bom, pelo menos naquele minuto.

Eu acho que a minha adolescência foi branda. Desde muito pequena me lembro da sensação de me sentir inadequada no mundo, então quando adolesci o sofrimento não foi assim tão grande. Eu não era desse mundo mesmo, para que sofrer? Eu não me lembro de ter muitos conflitos. Minha mãe já tinha me apresentado para a arte e ela de alguma forma me equilibrava para estar aqui, mesmo que eu me sentisse uma ET. Eu não me sentia obrigada a ser como os outros, nem me encontrar em nenhuma tribo, porque de alguma forma, já sabia que isso era uma ilusão. Então passei essa fase ocupada vendo muitos filmes, lendo muitos livros, escrevendo noites a fio nos meus cadernos. Eu tinha doze ou treze anos quando minha mãe um dia me encontrou numa vernissage no Shopping da Gávea, com uma taça de água gelada nas mãos, observando um quadro abstrato.

– Tá fazendo o que aqui sozinha minha filha?

– Ué mãe, to descobrindo a vida.

Minha mãe também não era fácil. Que mãe leva uma filha de treze anos para ver “Metropolis” do Fritz Lang? Ou “Koyaanisqatsi”, aquele documentário maravilhoso e barra pesadíssima com trilha sonora do Philip Glass, que fala sobre o desequilíbrio da vida moderna? Ela me ensinou muito sobre a vida no cinema. Me lembro de colocar saltinho, boina e óculos de grau para passar por mais velha nos filmes que tinham censura. Às vezes víamos até três filmes no mesmo dia. E tomávamos lanchinho entre um e outro. Era o nosso melhor programa.

Já minha irmã sofreu muito na adolescência. Nunca esqueço o dia que cheguei em casa e ela estava sentada no chão, de braços cruzados, olhando para a parede. Preocupada perguntei à minha mãe:

– O que é que ela tem mãe?

– Quem sabe, minha filha.

Manô pintou o cabelo com parafina e exigia que minha mãe comprasse roupas de marca para ela. Sua tribo era exigente. Ela convivia com a galera surfista do Leblon. Nada fácil.

Nos dias de hoje, Clarinha definiria minha irmã com maestria: ela estava bugada. Esse é o termo perfeito que se encaixa em quase todos os estados emocionais da Clara: quando a coisa não vai bem, ela se define estar bugada. Eu entendo. É muito bugado perder a inocência, ter que entender como funciona a vida adulta e ainda ter que decidir o que se vai fazer com um futuro que ainda nem chegou. É um processo muito pesado para uma criatura que outro dia mesmo tava brincando de boneca.

Ela tem se queixado de solidão. Que os amigos torcem o nariz quando ela fala uma palavra um pouco mais complicada. “É que eu leio muito, galera” se desculpa com um olhar sem graça. Já eu preciso disfarçar o orgulho que sinto dela e lhe digo com o coração apertado que a vida é assim mesmo, que as pessoas vão amadurecendo de forma diferente, em tempos diferentes, dependendo do jeito que cada um é criado e preparado para o mundo.

Hoje me dou conta do quanto valeu nunca ter mentido para ela, nunca tê-la poupado de nada. E ter forçado a barra para ela sempre ir além, além do sentimento, além do pensamento, além da superficialidade de todas as coisas.

Clara está adolescendo. E crescendo. E sofrendo. E todos os “endos” que é capaz. Eu não me preparei para esse pedaço da vida, mas como estou feliz em poder estar ao lado dela nessa caminhada. Estar com minha filha agora é estar imersa naquilo que chamo de resumo existencial: dói, mas é a dor mais bonita que a gente pode passar. Isso é viver.

35 pensou em “Adolescendo

  1. Tati, choro de te ver tão plena escrevendo. E também se saber dessa Clara. Sua filha, claro. Amo vocês. Mesmo daqui. Muito.

  2. Sensacional! Vcs são demais! Lendo as experiências da Clarinha, eu me vi. Em tudo, sem tirar nem por.
    Parabéns as duas por serem tão únicas, especiais e iluminadas.
    Obrigada, Tati, por florir nossos dias com seus textos. Não pare nunca!

  3. *de saber dessa Clara (quis dizer. Nao sei editar aqui…)
    Lindas! Seres de puro amor.

  4. Brunna, minha companheira de jornada… nos amamos plenamente. Aqui. Porque o aqui é dentro da gente. Não há distância! Gratidão por existir na minha vida. E a sua arte? Como anda?

  5. Bibi, minha querida! Que bom saber que minhas palavras podem florir seus dias. Obrigada pela presença e apoio. Beijos com amor!

  6. Maravilhoso e emocionante! Não precisa dizer que estou chorando!!!
    Tati, que bom que vc voltou a nos presentear com os seus textos lindos e cheios de simplicidade e ternura! Mil beijos! Amo vocês, meus amores!!!

  7. Zelinha, meu amor! Sua presença aqui é uma honra! Uma benção! O meu talismã da sorte! Te amo!

  8. amiga, querida,
    lendo teu texto acabo me agarrando a um álibi: acho que a adolescência ainda tem, de alguma forma, um quê de mágico. Mágico no sentido poético do não-saber. Como as crianças ainda não sabem tantas coisas, tenho um sentimento cá comigo de que os adolescentes tb não… Coisas mágicas encontram-se em histórias. Fico cá pensando que os contos Sufis de iniciação talvez sejam bálsamos para a gente de 13, 14 anos. Será que estou sendo muito romântica? Sei lá…
    Amo sua franqueza, amiga. Sim, entendo perfeitamente quando dizes que hoje percebes que “valeu nunca ter mentido pra ela”. Isso é lindo! E confirma nossa existência na beleza. Obrigada por nos deixar seus textos tão ricos e tão delicados e simples, como a própria vida! Beijo muito grande

  9. Lindo demais Tati, e além disso, perfeito! Até consegui me identificar! Minha adolescência tbm foi meio conflituosa, cheia de dúvidas, medos e incertezas. Agora é só me preprar para o que vem pela frente com o meu príncipe ruivo! Parabéns Ti! Não vejo a hora de ler o próximo texto! 👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻

  10. Logo acima desse espaço para escrever está a pergunta: “O que achou?” Ah! Deusas do feminino sagrado, me ajudem! O que eu achei é que, uma vez mais, você vai nos levar lá pra dentro, lá pra longe, lá pro fundo e pro alto. Vai nos fazer viajar no tempo e nos espaços pra cada vez mais perto de nós mesmas e de você. Isso é o que eu acho. Cá estou eu cheia dessa emoção sem nome, olhando pra minha própria adolescência, pra sua e da sua irmã, pros meus netos, pra Clara… e pensando na frase da ‘Doctor Estés’ em Vasalisa: “Largamos a teta e estamos aprendendo a caçar”. Não tenho dúvidas de que a adolescência é o período mais difícil e perigoso da nossa jornada. Acho também que preciso agradecer e agradecer, Tati, por este maravilhoso espaço que você nos oferece na sua ‘casa’ onde habita a sua e a nossa alma. Ahow, Jaya Jaya!

  11. Ana Luiza, minha querida amiga… Te leio com deleite também porque fico com a impressão de falarmos a mesma língua amorosa que insiste em ver o mundo com poesia. “Mágico no sentido poético do não-saber”. Que frase danada de linda! Sim, concordo contigo. Há muito magia nesse período do vazio onde há tudo, ou, a potencialidade de tudo. Eu que agradeço a presença. Um beijo de amor para você!

  12. Vinha, que bom te ler aqui cunhada… que bom te ter na minha vida, que bom saber que vamos compartilhar experiências até estarmos bem velhinhas! Um beijo meu amor!

  13. Mama mia, te ter aqui significa uma grande e abençoada presença. Como é bom ler suas impressões… São fortes e sensíveis, como você. Já viu em quantas memórias minhas você está? Você habita minha alma, Irene. Eu te amo!

  14. Amiga-irmã, compreendo e compartilho suas impressões, sentimentos, emoções porque me identifico com você nesse momento! Só que minha adolescência não foi tão fácil assim… e por isso me vejo com muitas dificuldades hoje, nesse papel de mãe de menina adolescente! UFFFA!!! Jamais imaginei que seria assim!… O grande consolo é que passa!!… rss

  15. Tia Tati, que coisa linda! Muito agradável ler experiências cotidianas como essa e poder enxergar a poesia que a vida é! Lindo também ver que, mesmo eu, que estou entrando pra faculdade agora, me identifico tanto com ela que está entrando no fundamental II. Fico muito feliz por ter tido a oportunidade de fazer parte de alguns dias na rotina de dessa família linda! Vou amar poder acompanhar seus textos por aqui. Ta dando banho na Thalita Rebolças ahhaha
    Parabéns e muitos beijos da sua vizinha admiradora nada secreta!

  16. Castanha! O grande consolo é saber que estamos juntas nessa caminhada, se ajudando, se apoiando… buscando respostas, saídas, buscando ver a coisa com leveza. Que bom que estamos juntas, querida! Muitos beijos!

  17. Anita querida! Seja bem-vinda! Que esse lugar possa sempre te dar alegria e aconchego. Bom demais te ler aqui. Sinto tanta saudade das nossas trocas! Beijos, riqueza!

  18. Ana querida! Ai que delícia te ler aqui… também te admiro muito! Sua ternura, seu jeito tão especial de ser… espero que a gente possa trocar muito nesse novo espaço. Suas impressões e opiniões são muito importantes para mim. Você é demais! Obrigada… beijos!

  19. Amada, vc me traduz! Fale por nós, fale pelo outro, pelo mundo todo; porque vão querer te ouvir!

  20. Meu amor! Como é bom te ler aqui… sinto tanta saudade! Obrigada pela força e apoio… agora com o site ninguém mais me segura! Beijo e abraço apertado!

  21. Tati querida….muito lindo! Você revela o que sentimos de maneira singular… É lindo maravilhoso! Me encontrei e encontrei minha filha muitas vezes em seu texto! Parabéns!

  22. Maria, querida! Obrigada… seja muito, muito bem-vinda ao Onde Habita! Beijo de saudade

  23. Mônica querida! Que bom você aqui minha flor! É bom demais quando a gente se encontra em alguma coisa que fala ao nosso coração, não é? Obrigada pela presença. Beijos!

  24. Tati, minha bela mulher mãe, amei a definição de adolescendo: “É uma fase esquisita onde a gente não é mais o que era e ainda não encontrou o que é.”
    E que maravilha você nunca ter mentido para sua filha. Isto só cria e fortalece a confiança.
    Beijo cheio de alegria,
    Livia Caetano

  25. Coisa linda de se ler Tati,se fosse so ler…Mas este seu texto me levou la longe, onde uma adolescente de 12 anos nao sabia o que fazer com seios nascendo pernas compridas e uma vontade irresistivel de se esconder nas arvores…A cabeca e o corpo nao se entendiam…assim acho que e adolescer…uma confusao…Que bom que a sua adolescente tem uma avo como a Irene e principalmente uma mae como vc…
    Ela vai fazer igual a todas nos mulheres que corremos com os lobos…vai chorar,sofrer mas principalmente sorrir muito, pois ela tem o elemento principal que nem todas tem ou tiveram…AMOR..Parabens!

  26. Querido Rafa, que saudade de vocês. Bom te ter por aqui. É uma benção para casa! Beijos!

  27. Livinha, te agradeço a presença e te digo: essa confiança de estar no caminho certo é o que me ajuda a viver. Isso e ter amigos para celebrar! Te adoro! Beijos!

  28. Amiga querida,

    Entrei só hoje na sua casa. Não entrei antes não por falta de vontade, mas porque queria ter tempo para desfrutar das suas palavras como quem adormece em uma tarde chuvosa. Devagar, aconchegada e de coração quentinho. Assim são suas palavras, Tati. Aquecem e embalam o pensamento. Não dão sono, pelo contrário. Se eu estivesse, de fato, debaixo do edredom, levantaria de pronto pra escrever e pensar na vida. Suas palavras são de efeito imediato, amiga. Acabei esse texto tão iluminado sobre Clara e me peguei na ânsia de devorar todos os outros textos. Mas não o fiz. Não fiz porque também quero degustar um a um, cada palavra, cada gesto seu, como se estivéssemos, como no outro dia, na sala da sua casa, tomando um chá e um café e regateando o pão de mel com as crianças. Todo o amor do mundo pra você, Tati, você merece. Bem-vinda de volta ao mundo digital. Ele precisa de você. Nós precisamos. Beijo enorme.

  29. Puxa vida, Chris… você me emocionou com esse depoimento aí. Acho que toda a força, todo o empenho, todo o trabalho para lapidar minhas palavras… tem no fundo esse profundo desejo de aquecer e embalar os corações. Resignificar a vida. Aí está o sentido do que tanto busco. E que bom, que bom meu Deus, ter esse retorno do que escrevo. Me sinto menos sozinha por saber que está aí do outro lado. Obrigada querida, por tanto carinho e amor em forma de palavra. Te gosto demais. Seja bem-vinda!

  30. Anna Maria, querida. Obrigada pelas palavras de carinho! Você é muito bem-vinda aqui mulher que corre com os lobos! Somos todas da mesma matilha de amor! E que maravilhosa escritora você é! Adorei seu vlog, agora vou sempre passar por lá! Beijos de gratidão pelo carinho!

O que achou?