A crônica de um caos anunciado

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A pilha de roupas emboladas dentro do armário revela: aí vem um tempo de caos.

É impressionante como sou previsível. Tudo parece bem na minha vida até que começo a perceber pequenas bagunças se acumulando nos cantinhos escondidos do meu dia-a-dia. É batata. Sinal de que a coisa por dentro não está nada boa. Lido muito mal com a bagunça. A falta de ordem é a denúncia do avesso. Gosto da ilusão de que a ordem é prima-irmã do controle. Se tudo está arrumadinho, quer dizer que tudo está bem.

Não faço idéia de como as pessoas consigam viver no caos. Na minha casa, por exemplo, não há um único item em desuso. Não guardo nada que não precise nem nada que esteja quebrado. Não tenho depósito e geralmente o alto dos armários está vazio. Não tenho apego a coisas antigas. Não guardo alguma coisa porque “talvez precise dela um dia”. Tralha é a antítese do equilíbrio. O inimigo número um do feng shui. Acho até bonita a coleção de inutilezas de Manoel de Barros, mas se ele fosse meu marido com certeza já teria lhe pedido o divórcio.

É por isso, e somente por isso, que em tempos de desequilíbrio interno, é meu armário quem me denuncia.

A coisa começa devagar. Na pilha de blusinhas. Antes muito bem dobradas e empilhadinhas, começam a ser guardadas de qualquer jeito e tamanho. As meias e calcinhas que antes pareciam gaveta de loja de lingerie, da noite para o dia, viram uma coleção de bolotinhas indefinidas. Os sutiãs se confundem com as meia-calças e uma saia que deveria ter sido colocada para lavar, passa a morar no lugar das bolsas. A gaveta de pijamas, outrora cheirosa, agora tem nela jogada um cinto, uma pulseira e uma escova de cabelo. Cheia de cabelos. Nos cabides, começo a pendurar coisas que são dobrar e as de pendurar, empilho. Amassando vestidos, calças e lenços. Os casacos de frio – lindos que estavam guardados por cores – vão se misturando e perdendo a identidade, mafuados no fundo do armário.

Até que a coisa degringola mesmo. E o caos de fora anuncia no grito a confusão de dentro. Já não encontro mais nada em questão de dias. Quanto mais o tempo passa, mais se percebe o grau da minha desconexão. E o que antes se podia desembolar com facilidade, se transforma por preguiça ou medo, num grande e complexo nó. Todos os cacarecos da casa foram parar dentro do armário. Sem me dar conta, estou entupida de questões até a última gaveta.

É nesse momento que chega a hora da faxina. Sem mais nenhum centímetro cúbico de espaço para guardar nada, é tempo de vomitar todas as meias sujas que deixei acumulando tristeza e confusão. Já perdi a conta de quantas vezes isso já me aconteceu na vida. Deixar se instalar o caos só pelo prazer de me achar de novo dentro dele. Brincadeira de gente grande.

Devo confessar que sinto muito prazer nisso. Nesse processo catártico-espacial. Esvaziar gavetas me recicla. Esvazio tudo. Todos os cantos. Todos os cabides. Deixo o armário pelado para me desnudar. E como num ritual de purificação, passo água de lavanda em tudo e recomeço do zero a pilha das blusinhas. Me desfaço da calça comprida que não me cabe mais. Separo uma caixa de doações para todos os trapinhos, que numa boa, não tem mais nada a ver comigo. Até mesmo aquela calcinha – aquela maldita que me dói o coração só de olhar – aquela que tem nela um amor grudado que eu preciso me desfazer… até essa não escapa da limpeza final.

Meu armário é o espelho mais fiel de mim mesma que eu conheço. E é por isso que se ele diz que é preciso desopilar cabides, é isso que eu faço. A gaveta de lingerie ficou vazia. Sinal de que preciso comprar calcinhas novas? Não, sinal de que meu armário está tentando me dizer que é hora de me abrir para novas histórias de amor.

Então tá. Quem sou eu para desobedecer meu alter-ego de seis portas.

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